E, sem excluir a hipótese de se tratar de uma determinante cultural oriental, interroguei-me da razão de ser deste número, admitindo, desde logo, haver ali uma mãozinha missionária ocidental. E a cronologia da história, que deixou Marco Polo lá muito para trás, diz-nos que na China, “em 1773 o Papa suprimiu os jesuítas; em 1784, Chien Lung suprimiu os católicos. Foram presos muitos padres europeus, alguns dos quais sofreram martírio e outros morreram numa prisão chinesa” (…) em 1805 os padres católicos, que tinham regressado secretamente, foram expulsos, presos ou enforcados. Em 1807 chegou Roberto Morrison, o primeiro missionário protestante, enviado pela Sociedade Missionária de Londres. Sendo impedido de fazer a sua obra de evangelização, dedicou os seus talentos extraordinários ao estudo do chinês; pelo sue grande dicionário e pela sua tradução da Bíblia abriu verdadeiramente, o caminho aos seus sucessores” (SOOTHILL, W.E. “Pequena História da China”, Inquérito, 1942, pp. 66-67).
Absorvido este conhecimento, que não é propriamente “noves fora nada”, eu poderia dar por terminadas as reflexões suscitadas por esta MESA DE CENTRO, só que, nesta minha vida de professor-investigador aposentado, tendo presente o ditado popular “quem tem vagar faz colheres”, frase lapidada em homenagem à gente camponesa que, trabalhando noite e dia para se poder sustentar e cumprir com o pagamento dos foros estipulados nas escrituras de “emprazamento”, só no tempo das chuvas e das neves tinha “vagar” para fazer as escudelas (colheres) de madeira que, da malga de barro tosco, às vezes cosida em pedaços, lhes levava o caldo à boca, digamos a sopa de couve galega, um feijão que, qual submarino furtivo se escapava à colher, metida naquele mar de água fervida onde, à superfície, sobrenadavam, também furtivos, dois olhinhos de azeite ou gordura de unto, preservado nas salgadeiras após a matança do porco. Uma malga que nada tem a ver com a conhecida e tão desejada porcelana chinesa exposta em museus ou à venda em antiquários.
Podia ter-me ficado por aí, dizia eu. Mas não fiquei. E cá estou eu de olhos postos nas figuras que ali estão e me dizem muito da HISTÓRIA do mundo e da CHINA, país que está conquistando o globo por tratos comerciais e não por força das armas, num tempo em que os canhões se fazem ouvir ali bem perto das suas fronteiras. Estamos em 2023.
Lembro que, na crónica anterior falei de Marco Polo e da Rota da Seda, também hoje muito falda. . E lembro também, agora mesmo, que, em 2003, publiquei extensa crónica ilustrada sobre a chegada dos primeiros chineses a Castro Daire, quatrocentos anos depois do PRIMEIRO CONTRATO COMERCIAL ter sido feito entre PORTUGUESES E CHINESES. Assim:
“Quatrocentos anos após os português Leonel de Sousa ter firmado com os chineses o primeiro tratado comercial visando a fixação de gente lusa na península do Kwangtung, a troco de 10% dos direitos comerciais, eis que a História dá a volta. Neste princípio do século XXI, os chineses descobrem a Europa, Portugal inteiro e, em fins de Julho de 2003, chegam também a Portugal. Estabelecidos na vila, chegaram 450 depois dos portugueses terem feito pela vida lá pelas terras do Oriente, incluindo as costas da China”. (Crónica on line in TRILHOS SERRANOS)
E dito tudo isto, o que falta dizer sobre tão fascinante MESA DE CENTRO?
Bem, direi que, adquirida e recuperada que foi, ela passou a fazer parte da LEGÍTIMA material que deixo aos meus filhos, mesmo que eles venham a desfazer-se dela, na primeira curva do caminho. E sendo ela um QUINHÃO DA LEGÍTIMA MATERIAL que lhes lego, eu quero somar-lhe algo IMATERIAL que resulta de leituras e estudos que, sendo-me familiares por força da profissão que escolhi - PROFESSOR DE HISTÓRIA - a eles pode escapar, legitimamente, por força da profissão que escolheram.
E o caso é que, fazendo uma minuciosa leitura hermenêutica das figuras que dão corpo à MESA, conhecida que seja a HISTÓRIA DA CHINA, as convulsões porque passou aquele vasto “império” ao longo do tempo, “nascimento” e “morte” de “dinastias” sucedânias, não só se explica que nela esteja patente o NÚMERO NOVE, como também identificada a DINASTIA a que pertenceram os elementos ali representados. Como assim?
Direi que, com a chegada da REPÚBLICA, chegava ao fim a DINASTIA QING (1644-1912) e com ela o fim do “corucho”, o “carrapito”, o “ rabicho manchu”, usado durante séculos. Com efeito, a partir de 1911, desapareceram da China “as compridas tranças de milhões de cabeças”. Com a República “passou a ser moda o vestuário estrangeiro de todas as espécies”. (SOOTHILL, W.E. “Pequena História da China”, Inquérito, 1942, p.p, 79)
Retornando assim à estrutura da MESA, v.g. TRÊS dragões na base; TRÊS elefantes ao meio; e TRÊS figuras femininas na parte superior, postas em posição de sustentarem o TAMPO redondo, bem podemos dizer que os elementos moldados em relevo, nesse TAMPO, seja, um coche puxado por um cavalo, um homem atrás, duas senhoras dentro dele, um cocheiro, todos eles com o cabelo repuxado a compor o “rabicho manchu”, mais não vemos do que o quotidiano “fidalgo” chinês, nos tempos da DINASTIA QING.
Esta MESA é um documento histórico, um repositório de vasta informação ligada à política, à religião e ao valor simbólico dos animais mitológicos, das flores, frutos e árvores nativas. E sendo bem identificadas as UVAS (que nos remetem para a lenda ligada à origem do vinho) as três “cariátides” (chamemos assim às figuras femininas, à semelhança das gregas) sustentando o TAMPO, também seguram, nas suas delicadas mãos, frutos e flores que bem podem ser de LÓTUS e MAGNÓLIA. A primeira ficou sobejamente “famosa como um símbolo budista de pureza espiritual” e a segunda “símbolo de beleza”, que bem presente está nessas figuras femininas, seja na postura e contornos do corpo, seja na vaporosa vestimenta que usam, seja nos cuidados postos nos penteados e adereços afins. Enfim, uma MESA DE CENTRO que virou livro aberto.