De fácil relacionamento social, conhecedor de diferentes geografias físicas e humanas, ledor de leis, prosas e poesias, estendia a mão, com o mesmo vigor, lealdade e simpatia, ao doutor e ao lavrador, ao académico e ao pastor. Com o mesmo àvontade tanto vestia um fato, punha uma gravata e subia a um palco onde fazia uma palestra erudita, como, sem fato, nem gravata pegava numa enxada e, na sua quinta, plantava a árvore que pretendia e de que gostava.
Para quem tal não souber, nem isso sinta, aqui digo que é da sua autoria o poema com o título “VEM AMIGO, EU TE CONVIDO”. Um autêntico HINO HOMÉRICO à SERRA e à GENTE CAMPONESA. Ele foi-me declamado, um dia, em cima do PENEDO DA SAUDADE, no GAFANHÃO. (ver o link em rodapé deste apontamento) Que mais não fora, fincado na geografia física e humana dos tempos e gentes que lá vão, transportará pelo futuro afora, até à eternidade, o seu amor a este Portugal Interior, sempre esquecido e ignorado pelo Poder Central.
Não viso repor aqui a sua extensa biografia ligada às profissões que teve e à floresta das ARTES e das LETRAS em que se moveu. Mas, poeta que era, nelas, nas ARTES e nas LETRAS, deixou as suas metáforas entre a terra e o céu, as suas analogias, ironias, personificações, alegorias e mais figuras de estilo, sentimentos expressos e, às vezes escondidos e interpelantes, à maneira de Leonardo, na sua MONA LISA. Se não me engano, direi que foi um revolucionário a caldear o sagrado e o profano.
Um completo ser humano. Com virtudes e defeitos. A seu jeito, no campo semiótico de ver e pensar o mundo, metia no saco da CULTURA o singular, o exótico e o vulgar. Senhor de muitas honrarias públicas e privadas, recebedor e doador de diplomas e galardões, lavrava, semeava, recolhia e destribuía prodigamente iguais honrarias por gentes e agentes que conhecia. Trato afável, suave como o veludo, mas também defensivo como cato da serra, era uma simbiose perfeita de pagão e de cristão. Neste rincão da serra, Além do Rio, Gafanhão em terra sua, fundou um museu e erigiu uma capela. E, no teto dela, mandou pintar os retratos da família, dos avoengos e outros. Alguns membros dela, com traços fisionómicos facilmente identificáveis, mas outros, nem tanto assim. No centro do teto e do seu pensamento e sentimento, uma SENHORA com um menino ao colo, postura e gesto popular visível de qualquer mãe carinhosa. Uma simples mulher. Contudo, enigmático é o seu olhar e o seu rosto. Quem será ela, aquela SENHORA que a pintora deixou, a seu gosto, no teto da capela? Jovem e bela, olhos fitos em nós que a vemos, o enigma, o disfarce do olhar e da face foi deixado à sensibilidade da artista da paleta, pois assim o exigia o recato, o tempo e o templo, levantado aqui, nas folhas dobradas da serra, nestes montes e ravinas a escorregarem apressados para o rio Paiva. Levadas e regos a irrigar campos por todo o lado. Aqui, onde cada monte e cada outeiro são vagas orográficas do mar encapelado. Aqui, onde o PENEDO DA SAUDADE é uma crista de onda, direi que bem perto dele Arménio de Vasconcelos deixou a sua GIOCONDA. E eu, daqui, da serra, do cimo deste monte, do topo deste serro, mãos em concha a imitar o búzio do mar, berro o que ninguém berra para que se ouça em toda a parte: aqui também é Portugal. Aqui também há CULTURA e ARTE.
Sim, cá para mim, é precisso ter muito amor à terra, à família, à gente do povo, à serra, para no teto de uma capela (não é em qualquer canto), em vez de um santo deixar parte dela, da família e da serra.
Em vida sua, sabedor, culto e folgazão, colocou no céu da sua capela privada, ali entre arvoredo verdejante, as aldeias, barrancos, ravinas, regos, árvores, plantas e pessoas. O seu paraíso terreal. Pasmo a vê-lo. Sentidos atentos, só não sai dali, daquela pintura, o trinado do melro captado pela minha câmara no video feito na altura em que, vivo, cheio de saúde e a viva voz, explicava os ícones que adornam o interior do templo (ver link em rodapé, neste apontamento) Um senhor de sabedoria e transmissor de conhecimento. E, nessa pintura, silenciado está também, agora, o gorjeio captado do passarinho que, com carinho, tão pagão quanto divino, se juntou à cerimónia religiosa que precedeu a entrada dos seus restos mortais no JAZIGO ereto junto do cemitério da aldeia. Também foi obra sua. Também foi sua a ideia.
Sim, ali, no Gafanhão, Além do Rio, numa capela com orago e campanário, só mesmo um poeta, um sonhador, um visionário, um humanista, mandaria pintar no teto, daquela forma o mundo físico circundante. E também, de forma simbólica, o mundo interpelante, o mundo fechado no cofre das suas crenças, das suas amizades, amores e afetos, todos sem peso nem medida. Todos os que, num percurso de altos e baixos, de subidas e descidas, tropeções e quedas - como toda a gente - lhe preencheram os anos de trabalho. Todos os que lhe luziram ou desluziram os passos da vida.
Sob pena de não continuar a ser seu amigo e admirador “post mortem”, sob pena de ter perdido a consideração pela família e pela minha distinda e estimada colega, sua esposa, Drª. Lucília Rego, (agora viúva) transponho para aqui dois poemas da sua autoria, extraídos do livro «para além do rio», editado em 2004, obra de capa grossa, amplamente ilustrada. Foi-me oferecida com amistosa dedicatória.
Segue, pois, o poema e o retrato da «Cilinha», sua esposa, assim:
«Limpinha. Cristalina, a gota
Sobre a pétala da rosa desliza.
Urdindo caminhos em lisos e verdes pisos.
Imagem de arco iris espelhada
Naquela gota de orvalho colorida.
São seis letras só,
As do nome mensagem
Que na pétala pela gota fica escrito.
A tua imagem refletida
Respalandece nela.
Seis letras,
Que o meu pensamento
Soletra a cada momento…»
«As que compõem o teu nome».(pp. 20-21)
E o livro remata com um poema singular. Tem por título “O Nosso Mausoléu», assim:
«Avó, Pai, Pedro, Sérgio…»