Trilhos Serranos

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domingo, 14 maio 2023 14:03

O CAROCHAS

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O “CAROCHAS”

Década 60 do século XX. Um professor. Um pedagogo. Um cientista, docente no “Externato Marques Agostinho”, em Lourenço Marques, Moçambique. Ali, no Largo “Heróis de Mocava”, largo em forma de “U”, de boca aberta para a Avenida Pinheiro Chagas, toda ela uma reta urbana com cerca de 5 Km de ponta a ponta. Ali, naquela cidade das acácias, poleiro certo e seguro de centenas de cigarras, sempre ocupadas na sua estridente, mas nunca irritante, cigarrela. Cigarras, uma orquestra de violas, violinos e guitarras, maestrinas à disposição do passante, em tempo constante, noite e dia, naquela terra distante onde deixei anos de vida.

 

cachimboEsse professor tinha a seu cargo as disciplinas compendiadas, ligadas à NATUREZA, integradas na SECÇÃO DE CIÊNCIAS que, conjuntamente, com  a SECÇÃO DE LETRAS, constituíam o CURSO GERAL DOS LICEUS. Outras terras. Outros deuses, outros céus. Que tempos! Que ambições! Que sonhos meus! Que companheirismo e interajuda entre os romeiros e romeiras que, de pé posto e passada larga, sem crerem em milagres, ambicionavam chegar ao santuário universitário que, na ocasião,  tinha por orago o PROFESSOR VEIGA SIMÃO.

Longa era a caminhada. Espinhoso era o trilho. Não era fácil subir as escaleiras daquele patamar académico  na situação de trabalhador-estudante. Conceito, aliás,  não existente desta palavra formada por justaposição. De dia, era a profissão. À noite, domingos, feriados e férias inteiras, eram os ESTUDOS. Lazer? Nem pensar. Professores, muitos. Disciplinas, nem me lembram. Havia muito que folhear, desfolhar e  ler.

Alguns professores desmultiplicavam-se entre o ensino oficial e o ensino particular. Outros dirigiam instituições científicas e culturais de dia e, à noite, partilhavam os seus saberes de campo e de laboratório, dando aulas. No que respeita ao professor de CIÊNCIAS NATURAIS, lembro que era o DIRETOR DO MUSEU NATURAL ÁLVARO DE CASTRO e dedicava-se, cientificamente, à descoberta, pesquisa e estudo de besouros, de CAROCHAS. Tinha mesmo obra publicada e ilustrada sobre a matéria investigada.

tabacoDe cachimbo sempre na mão, carregava o fornilho, ajustava o tabaco com o polegar (que diferença o uso do polegar naqueles tempos e nos tempos de hoje!) chegava-lhe fogo, espetava a boquilha num dos lados boca, prendia-o nos dentes molares amparado pela mão e, à primeira vaporada, as nossas pituitárias eram invadidas e seduzidas pelo aroma do tabaco “CLAN”, fumado e saboreado devagarinho, a condizer com as falas mansas, com os seus dizeres, com o método do MESTRE que não dava aulas do sobranceiro estrado, mas, pelo contrário, deambulava lentamente pela sala, entre iguais, ensinando como quem fala. E se na minha memória me ficou aquele aroma de tabaco, na memória me ficou também vincado aquele seu jeito de transmitir saber, falando ou escrevendo. E, certo estou de que ele, muito antes de mim, tinha lido Sebastião da Gama: «não ensino para as notas, ensino para aprender». Ou, então, antes dele e de mim, já  seguia o método que aprendi na aldeia, com os meus pais, longe das letras e dos livros, como há muito escrevi, assim: 

“Feita a 4ª classe na antiga Escola Primária, transitei imediatamente, sem exame de admissão, para o curso da Agricultura e da Pastorícia, sorte que estava reservada a todos os meninos da minha idade, nados e criados longe dos meios urbanos dos liceus e das universidades.

Sem furos, sem faltas e sem diplomas que registassem a nossa avaliação de desempenho, cresci a ajudar os meus pais na luta pela sobrevivência. As cadeiras nucleares do curso incluíam as técnicas de cortar matos e lenhas, lavrar terras e estrumá-las, acarretar o milho e o centeio para as eiras, malhá-los e moê-los para que, com eles,  se pudesse fazer o pão.

Tornei-me nisso, tal como os meus irmãos, numa espécie de catedrático.”

FLORRecentemente lembrei-me desse PROFESSOR a propósito das flores de maracujá que, neste maio de 2023,  não sendo da cá,  vindas de terras tropicais, me prendaram com a sua beleza efémera (24 horas apenas) ali, entre as folhas espalmadas das plantas que espetei, ainda pequenas, num alegrete do meu pátio e, logo depois, entrelacei  na grade de ferro forjado que resguarda minha varanda. Assim manda quem sabe de plantas trepadeiras.

IMG 0726 - CópiaFlores abertas ao mundo, pétalas em redondo, órgãos masculinos e femininos (androceu e gineceu) expostos e salientes, posição ereta e erótica, obedientes a não sei que código cromossomático neste mundo vivo organizado e errático, num evidente desafio à polinização, frutificação e reprodução, prenhes de amor, cada flor disposta está a enfrentar os escolhos da vida,  mesmo em terra alheia. Semelhantemente faz a gente, qualquer emigrante/imigrante que, não receia, em terra distante, a aventura do porvir.

Ao vê-las foi “tiro e queda”. O professor de BOTÂNICA, aquele que, na SECÇÃO DE CIÊNCIAS, me ensinou os segredos das plantas e dos bichos, aquele que se passeava pela sala de aulas, que impregnava paredes, os móveis, roupas, almas e mentes com o aroma do seu cachimbo e do seu saber, que ensinava conversando, saltou morto lá do fundo e impeliu-me a prestar-lhe, ainda que tardio, um justo tributo escrito.

Mas que tristeza a minha! Tudo tão vivo, tão presente, todos os gestos e falas, todas as cores e odores, mas o seu nome recusava-se a espreitar por detrás da espessa sebe dos meus anseios e sentimento. Os meus neurónios fugidios, que tormento,  como caloteiro que deve e, no passeio, se desvia do credor, não senhor, nada, viraram rochas basálticas e recusaram-se a dar-me a resposta procurada. Que injustiça! Dei voltas ao miolo e, para meu consolo, só me aparecia a alcunha: o “CAROCHAS”.

masculinoReproduçãoFeita a descolonização, relacionado, desde então, com dois colegas de estudo, que também foram seus alunos, testemunhas disto tudo, um deles, formado em HISTÓRIA e outro em DIREITO, telefonei-lhes a pedir auxílio. De nada valeu. Também eles, tal como eu, Abílio, só se lembravam  do CAROCHAS, pois, do nome próprio, apagado e gasto,  nem resto, nem rasto. 

Pronto. Fraquezas humanas, coisas de gente. A alcunha sobrepôs-se, definitivamente, ao nome e, por isso, este meu escrito, assim como quem fala deambulando pela sala, tem o título que, de resto, em nada desmerece o tributo que presto à pessoa, ao professor ao cientista, ao pedagogo. Título honroso. Quantos nomes de cientistas e estudiosos mergulharam no Letes e todos nós somos beneficiários diários do produto do seu trabalho, da sua imaginação e criatividade? Nome? Quantos jovens de hoje, que rompem a polpa dos polegares sobre o tapete dos seus Smartphones, sabem quem inventou o telefone? 

Pois seja. Mas isso não me serve de conforto. Sei-o, há muito, morto, feito em pó, ainda lá, em Moçambique. Mas para que escrito fique o meu gesto de gratidão,  a ele me reporto como se estivesse vivo. E eu, cidadão com nome e rosto, aos 83 anos de idade, com cartão de identidade, cidadão que favores ao mundo não deve, eu, dizia, ressuscitado o vejo, pois vivo está nestas flores de maracujá que me prendaram, neste mês de maio, com a sua beleza efémera e erótica. Elas, tão belas, lembram-me, ao de leve, que símbolos são da vida breve. 

Estevas-Mirandela REDZcaroxhaMas não é tudo. Eis o que, neste mundo rudo”, aprendi  “em Trás-os-Montes, nas Beiras, no Alentejo, no Algarve, aquém e além-mar, em África, em todo lado”. É que, tão bela e ridente flor, erótica de ventre promissor, também virou morte, sacrifício e dor. Ouçam isto:  

Os três estigmas correspondem aos três cravos que prendem Cristo na cruz; as cinco anteras representam as cinco chagas; as gavinhas os açoites usados para o martirizar; por fim, a flor em si, é a imagem da coroa de espinhos levada por Cristo para o ato de crucificação”. crucificação”. (Cf.   https://www.significados.com.br/flor-de-maracuja/)

Assim, tal qual. Estranha leitura feita desta flor, desta beleza que nasceu muito antes de Jesus romper as sandálias no mundo. Ainda ele não existia e já a justiça da natureza, das ordálias, se praticada entre os povos. E os exegetas da flora veem também na flor da esteva as cinco chagas de Cristo. É isto. Coisas de gente. O signo, o significante, o significado e o referente, em cada mente. A mim, não crente, entre coisas mil, me lembrou o vigor da juventude, da alegria de viver, de companheirismo, de amor  e de prazer viril. Outros, carregando a sua cruz, só nela viram sacrifício, dor e morte de Jesus. 

Vaca loura-2Formas de ver, de ler e de sentir o mundo. Ilustro este escrito com a sua fotografia. Hora, ano, mês e dia. Flor inteira. Veja-a cada um à sua maneira. Eu vi-a conforme me ensinou o CAROCHAS, professor/investigador das CIÊNCIAS NATURAIS  aquele muito sabia de plantas e besouros tropicais



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.