CUSTILHÃO-1
Sob o título em epígrafe (já lá vão muitos anos) apresentei, na Universidade de Lourenço Marques, orientado pelo Professor Manuel Mendes Atanásio, um trabalho inserido na HISTÓRIA DA ARTE, no qual mostrei, depois de muitas leituras feitas na bibliografia especializada, os diversos recursos a que o homem, inteligentemente, botou mão para construir, com materiais perecíveis, um simples abrigo passageiro, ou edifícios duradoiros feitos com materiais resistentes à erosão trazida de “ventos e marés” adversas, por forma a permanecerem de pé, séculos fora, num atrevido desafio à eternidade.
E nesse meu trabalho académico, além das leituras feitas na bibliografia especializada, entrou também toda a minha experiência adquirida no ofício de aprendiz de pedreiro que fui na minha juventude. Digamos que somei ao pretendido e necessário saber académico posto em livros, o saber adquirido num “curso pré-universitário”, sem notas de avaliação, feito a “partir pedra” de sol a sol, integrado na equipa dos oficiais de pedreiros que trabalhavam sob a orientação e pagamento do MESTRE DE OBRAS, meu cunhado José Duarte Bernardo.
E a arte de pedreiro tem os seus quês. Falo das construções com pedra e não de pilares e vigas de cimento armando, de blocos, tijolos e quejandos, usados na construção civil, militar ou religiosa. Falo mesmo da pedra dura, desse material natural donde advém o nome da profissão daqueles que se dedicam a tal ofício.
Saber de experiência feito, tudo começava por se rachar um penedo em fatias com o uso da marreta e de guilhos pontiagudos, forjados e temperados no fogo, de cabeças lascadas, cabelo encaracolado por tanta martelada recebida. E martelar uma fileira de guilhos, alinhados sobre um penedo arredondado como soldados postos em sentido, no meio de uma parada plana, exigia ciência, força e arte.
O “mestre” antes de iniciar a tarefa fazia uma prospeção em redor da obra a construir. Mirava e remirava os penedos mais próximos, estudava o “correr da pedra” em cada um deles, isto é, em que sítio e por onde se poderia alinhar o “fio de corte” por forma a nele marcar os “pontos” equidistantes onde se deviam embicar os guilhos e, consequentemente, fazê-los penetrar na massa granítica à força de consecutivas, compassadas e certeiras marretadas.
Quem andasse por perto dava-se imediatamente conta que estava a nascer ali uma pedreira e uma casa nova de porpianho seria levantada em breve. O passaredo vizinho arredava dali o seu gorjeio pois o tim…tim…tim…das marretadas e o linguajar do grupo de bípedes recém-chegados, destoavam da costumada sinfonia alada.
Isto até que uma fissura, primeiro insignificante, depois claramente denunciada, mostrasse que a compacta massa granítica de feldspato, quartzo e mica, disforme e inerte, vinda de recuados tempos geológicos, se abrisse em duas metades e estas, sujeitas à mesma técnica e força braçal, se repartissem em tantas quantas fatias mais pequenas se pudessem fazer, todas elas a receberem forma e esquadria para tomarem assento nos alçados na obra, fosse um castelo, uma moradia ou um templo.
E como não há edificado humano sem portas e janelas, estes vãos de ligação entre os espaços interior e exterior, para passagem de pessoas ou de luz, iam ficando nos lugares certos, à medida que o edifício tomava vulto.
Acabada a obra, o ramo de plantas posto num dos lados da cumeeira, informava o passante e o proprietário de que aqueles profissionais da pedra estavam de abalada. O seu compromisso tinha chegado ao fim.
E, aqui chegados, recuando tempos fora, eis ali as muralhas de um castelo a coroar um monte, horizontes sem fim, ameias abertas e vigilantes ao inimigo distante. Eis ali um solar brasonado pertencente a um “nobre par do Reino”, levantado algures num senhorio de província, de terras aforadas e “emprazadas por três vidas”. Eis ali um templo dos muitos que polvilham Portugal inteiro, catalogados e classificados nos estilos arquitetónicos que tomam nome nos ANAIS DA HISTÓRIA DE ARTE. Ou, então, eis ali uma moradia simples, de risco ao meio (duas águas apenas (quero eu dizer) perdida numa aldeia serrana, coberta de colmo, propriedade de agricultor enfiteuta, cujo nome foi obrigado a deixar na extensa, minuciosa e circunstanciada “ESCRITURA DE EMPRAZAMENTO” manuscrita por exímia mão de tabelião encartado, onde, em letra de lei, ficavam garantidos os foros anuais estipulados, mesmo que houvesse seca, enxurrada ou fogo que comesse a produção inteira.
As ferramentas dessa arte eram os guilhos, a marreta, a alavanca, a panca, o alçapreme, o corso, os ponteiros, a maceta, o camartelo, a régua, o esquadro, o fio-de-prumo, as cordas e, finalmente, os postes que suspendiam os moitões, cujas roldanas no seu desdobramento, faziam o milagre de tornarem leves as pesadas pedras de porpianho, içando-as «…oupa…lá vai ela…oupa…» até ao ponto onde tomavam assento com o eterno selo de garantia.
Pois. E então as portas e janelas, essas aberturas destinadas a darem passagem aos animais, às pessoas ou à luz?
Sim. Saber fazer esses vãos no corpo da obra, não foi coisa fácil na arte de construir. Digamos até que foi longa a caminhada humana até se resolver, com segurança e eficácia, esse problema.
Nos primitivos abrigos, à semelhança das atuais tendas canadianas de campismo, duas varas assentes no chão, postas e “V” invertido, mais duas em igual posição, espetadas à distância desejada, uma outra vara assente, ao comprido, nos vértices dessas outras quatro, tapados as rampas laterais, eis um abrigo de duas águas e duas entradas, que não tardariam a evoluir para uma só entrada, talvez o embrião do arco de volta perfeita, o «arco românico», o seu «fecho e aduelas», herdado dos etruscos que tão usado foi em pontes e abóbadas de berço. E logo, de caminho, o «arco quebrado» e as abóbadas de nervura, interiores iluminados com faixas de várias cores vindas dos vitrais, essa maravilha das maravilhas, esse enlevo colorido de apelo à espiritualidade e ao transcendente.
E foi assim que, tendo tudo começado com materiais perecíveis num abrigo primitivo, entrada em “V” invertido, a experiência levou à construção de entradas e saídas com materiais duradouros, tal qual ainda vemos no cabouco do moinho hidráulico da levada de Fareja e na “copeira” da fonte velha do Custilhão, topónimo que, em documentos do século XVIII, aparece escrito “Crestalhão” e “Cristalhão”. Teremos ocasião de discorrer sobre estes topónimos em próxima crónica.
E por assim ser, eu, carregando às costas quase 84 anos de idade, vendo, aprendendo e recordando, resolvi recuar no tempo e revisitar a matéria que fogosamente, cheio de força, vontade e vida, estudei, lá, nas praias do Índico, para onde carreguei, embarcado no paquete “Pátria”, as vivências e a experiência de 18 de vida, consumidos aqui na serra, onde retornei. Aqui, neste interior beirão, bem longe daqueles espaços oceânicos, atlânticos, índicos e pacíficos que navegados foram pelos nossos “HERÓIS DO MAR”.
Com efeito, formado em HISTÓRIA, assumida a profissão docente, retornado que fui de Moçambique sem «eira nem beira», assentei residência definitiva numa aldeia de província, na BEIRA ALTA, perto da escola onde exerci a profissão. Que remédio!
Refeita a vida, com ordenado mensal assegurado, seguro estava também que os meus filhos pudessem seguir as suas vocações estudantis e profissionais, como seguiram. Formaram-se e, longe daqui, por lá se ficaram a viver pelas capitais do reino a governando a vida.
E eu, reformado, vou passeando pelos arredores a espiolhar e a historiar a “legítima” patrimonial edificada pelos nossos antepassados: os sempre esquecidos “HERÓIS DA SERRA”.
E foi num desses passeios que encontrei, em ruínas, o moinho hidráulico na LEVADA DE FAREJA, cujo cabouco, espaço térreo onde gira o rodízio, exibe duas pedras postas em “V” invertido à maneira do primitivo abrigo, nos tempos idos. Postas assim, estas duas pedras suportam e desviam para os lados todo o peso da estrutura granítica que nelas assenta. (ver foto)
Esse tipo de construção, feita aqui no meio rural, fez-me retornar aos meus tempos universitários, como já disse. E o mesmo havia acontecido, há anos, na aldeia do Custilhão, onde fotografei a entrada de uma fonte, arquitetada do mesmo jeito. Os residentes atuais, que dão àquela obra o nome de COPEIRA, preocupados com o uso da água, a leste que estão da trajetória histórica, jamais se interrogaram sobre a técnica patente nela. E ignoram, certamente, que, ali, naquele ângulo de vértice para cima, está o embrião dos arcos mais usados na construção de pontes e templos: o arco românico e o arco quebrado, relacionados, respetivamente, com as abóbadas de berço e as abóbadas de nervura.
Mas nesse meu trabalho académico, feito na Universidade de Lourenço Marques, fazendo eu uso de conhecimentos “pré-universitários”, adquiridos na qualidade de aprendiz de pedreiro, como referi, incluí o desenho e a descrição de mais uma peça granítica saída da inteligência humana, patente na arquitetura tradicional beirã por mim conhecida e omissa na bibliografia consultada. E, mesmo hoje, passados que são tantos anos, numa pesquisa rápida feita no GOOGLE, continuo a não ver ali, muito bem explicada por quem devia, esse tipo de obra, donde imana a bem sucedida ideia, saída da cabeça de pedreiro ou mestre de obras de antanho, anónimos, a ideia que na arquitetura resolveu a dificuldade de vencer um vão de porta larga, ciente de que o passante poderia fazê-lo com segurança, sem medo da obra cair em cima.
Refiro-me à padieira (torça) inteiriça que, a toda a largura, assenta nas ombreiras das portas largas e às duas outras metades que, com fecho ao meio, se sobrepõem à primeira com uma frincha rasgada entre elas.
Não havia “mestre pedreiro” que ignorasse essa técnica. Fosse ela bem aplicada e a torça-mestra (verga=padieira) aliviada ficava das forças, do peso das pedras que sobre elas completavam a fachada do edifício.
E tem cabimento lembrar aqui, muito a propósito, dito académico de um aluno curioso ter pedido ao professor para ele definir o conceito de “INTELIGÊNCIA”. A resposta foi pronta e rápida: “não sei definir ‘inteligência’, mas sei muito bem onde ela não está”.
Lembro este episódio, verdadeiro ou ficcionado, em homenagem a todos os “mestres da pedra” que, anonimamente, deixaram pegada na arte de bem construir, arrancando o porpianho, devidamente esquadrinhado, de volumosas e disformes massas graníticas, penedos empoleirados nas serras de Portugal inteiro, riqueza a céu aberto, quais sentinelas vigilantes metidos nos arruinados castros celtas, os protagonistas da “Civilização Castreja”.
NOTA: Fui fazer um vídeo da obra onde me iniciei como aprendiz de pedreiro. Alojei-o no Youtube, cujo link aqui deixo.