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Subida e descida da estrada de terra batida que, em ziguezague, se estendia da base ao topo do monte, ladeada de árvores e de pedintes sem conto. Um deles, braço nu, a exibir chagas purulentas, outro, perna esticada, a mostrar a pele encortiçada, que mais parecia frança de sobreiro do que um membro de carne e osso desfigurado. Inchaços, furúnculos vermelhos como tomates, escrófulas enrugadas e secas como pregas de montanha, aquele (de mão estendida «uma esmolinha, por favor») cabelo esguedelhado e sebento, olhos mais vermelhos que nem tição em brasa, manetas, pernetas, aleijados, chagados de toda a espécie, velhos, moços homens e mulheres, crianças ranhosas a lamberem o monco, narinas a purgarem gotinhas amarelas, quais lágrimas de figos pingo de mel (que horror de analogia, leitor), crianças, que mal fizeram elas, Senhor? Planeamento familiar? O que é isso? «Crescei e multiplicai-vos», vinde ao mundo da fome, do ranho, do surro e sarro, da piolheira aos montes, do pulguedo a granel, da promiscuidade, da pedinchice, engrossai as hordas famélicas dos miseráveis, dos que se vergam e ajoelham à frente de uma malga de caldo, vinde a este mundo de pedintes, de pastorinhos sem escola, inocentes, pobrezinhos, tão pequeninos, Deus meu, de barriga ao léu a bater horas, sem ter côdea de pão para roer, sem verem brinquedo que seja seu, sem verem o que deviam ver, terço na mão, Avé Maria, cheia de graça, deliram a ver coisas invisíveis, a ver o «nada» na imensidão do horizonte, o princípio e o fim, na vastidão do céu, segredos moldados por anseios e medos, vinde ao mundo “gozar” a sorte que Deus vos deu, «de hora a hora, Deus melhora», vinde ao redil dos submissos, onde não faltará pastor a falar de resignação, de obediência, de perdão, da culpa da Eva e do Adão, da felicidade eterna à mão direita do Criador, vinde, o rosário é infindável, ceguinhos a esticarem o fole do harmónio, folhetos coloridos com quadras populares a contarem e a cantarem o drama do pai que violou a filha, todos a estenderem a mão à caridade, alguns deles a exibirem, religiosamente, o canudo de zinco onde guardam o atestado da sua indigência humana, do seu património.
Um incenso de doença, dor e fé impregna os ares. Fé, esse bálsamo para o sofrimento. Mais sofrimento, mais fé. Os melros, pelo tempo ou estranhando o movimento, fizeram censura ao cante e foram exercitar os trinados para outros lados.
Atravessando a copa das árvores lanças prateadas de sol emprestam luz e sombra a este quadro romeiro nunca visto por Brugel, O Moço, conhecido por Brugel do Inferno, sensível que era aos assuntos «terríveis e aflitivos». Brugel, esse figurão do pincel que, eu, aos dez anos de idade, sabia eu lá quem era?! Soube-o, mais tarde, já adulto, quando longe da minha terra, longe da serra, do pastoreio, da relha e da aguilhada, outros serras subia, outros campos lavrava, outros vales descia. Ah! Então o que fazia? Depois do trabalho, o estudo, depois do estudo, o trabalho, num só dia faço de tudo, semeio, recolho e malho.
Na juventude, a minha primeira folha escrita foi a jeira de terra, jeira de milho, jeira de centeio, folha alternada de Paivó e de Vale de Carvalho. Deixado esse trabalho, em que campos semeio, recolho e malho? Que trilhos, trilho agora? Que caminhos, que mares, que climas, que montes, que vales, que distâncias, que fontes me matam a fome, a sede, as ânsias? Que culturas, que políticas, que leituras, que gentes, que nações? Que tribos, que raças, que reis a casar com umas e a dormir com outras, bastardos em barda, que dinastias, que faraós - oh Akenaton das minhas simpatias - que reinados, que impérios, que deuses, que deusas, que religiões, que seitas, que povos? Tantos. Ricos e pobres, heróis e cobardes, santos e pecadores, pecado e confissão, penitência, confissão e pecado, arrependimento (isso sim!), absolvição e repetição sem fim, não, não passo por esse trilho em busca da perfeição, luxúria, inveja, céu e inferno, simonia e pedofilia na Igreja, bem prega Frei Tomás, anjos e demónios, vencedores e vencidos, colonizadores e colonizados, honestos e salafrários, o trigo e o joio da seara humana a girar na engrenagem dos contrários. E o tempo? Tão rápido, tão lento. Património? Tudo o que sou. Afectos? A família ascendente, colateral, descendente, os filhos crescidos, a memória viva da mãe falecida, livros amigos, mais que amigos. Idade? Longe da mocidade, rugas no rosto, cabelos brancos. Ocupação? Fiel às origens, fazendo relha da palavra, neste meu virar da leiva, neste pôr a descoberto as entranhas da terra gorda e magra, com a vessada e, lido nesta minha lavra, ponho à vista o escondido e constato que, por mais que trabalhe, que semeie, colha e malhe, não vejo meio de rasar o celeiro do SER e do TER que dia a dia granjeio e joeiro. Outro é o meu campo, diversas as minhas aivecas, diferente o meu timão, escrevo na esperança de que me leiam, mas para comer o pão, outros o granjeiam.
Mas voltemos à romaria.
A imponência do Santuário, a grandeza das faias, cedros, ulmeiros, carvalhos e castanheiros, alguns a estenderem as suas raízes até ao início da nacionalidade, mais antigos que a Sé, carcomidos de velhice a ameaçarem queda, têm nos andrajosos pedintes a outra face da moeda. Trapos, remendos, farrapos, vestimentas luzidias de sebo, convivem, na mais santa hipocrisia, com a riqueza das vestes sacerdotais, sedas, cetins, púrpuras, veludos, brocados a prata e ouro lavrados. O sofrimento e a dor convivem com o arraial, a dança, foliões, foguetes, alegria, procissões, muito andor, muitos guiões, tudo é romaria e cor. É a Romaria de Portugal!
Portugal, nos meados do século XX. Uma fotografia que deveria estar, obrigatoriamente pendurada, noite e dia, em lugar destacado, na sala de visitas de todos os abencerragens que, cegos à mudança dos tempos, na imprensa nacional, regional e local, continuam, hoje, a cantar hossanas à justiça, à ética e à moral que formavam, então, os pilares da nação. Os mesmos que agitam a bandeira do «direito à vida». Nada de planeamento familiar. Do passado cativos, numa atitude velha e relha, nem preservativos, nem quaisquer métodos que a ciência aconselha. Vinde, vinde e enxameai o mundo, nascei a duplicar, a triplicar, gémeos, trigémeos, quadrigémeos, às ninhadas, todos os que o útero aguentar. Mulheres de retorno ao lar, à meia, à agulha, ao ferro de engomar, à cozinha, às panelas, à frigideira, nem médica, nem professora, nem secretária, nem enfermeira, nada. Doméstica, obediente e domesticada, a mulher nasceu, somente, para ser fêmea parideira. Nada de interrupção. É a receita da Direita. Com a Esquerda é só perda. Ele é a droga, ele é o charro, ele é a homossexualidade, é ele as uniões de facto. Com os socialistas, comunistas, bloquistas, esquerdistas e outros que tais e tantos é o fim dos nossos valores pátrios, é o fim da nossa glória de heróis e santos. Lá se vão «oito séculos de História»!
Vinde, vinde todos, mas não vos resigneis à indigna condição de pedintes, de maltrapilhos, ranhosos, sebentos e marginais. Juntai-vos aos excluídos sociais, aos sem-abrigo, chamai ao vosso regimento, à vossa cruz, aqueles esqueletos sem nome, olhos sem luz, que morrem de fome lá pelas Ásias e pelas Áfricas, por todos os sítios onde o divinal acto sexual (a natureza não nega aos pobres essa riqueza), sem planeamento, segue livremente o curso natural, lá, onde a doença, a fome e a sida ditam o «direito à vida». Recusai pertencer à família referida por Jápeto: pai Pinóquio, mãe Pinóquia, filhos Pinóquios, todos a viverem bem, sendo que o mais rico deles pedia esmola. Formai quadrilhas e assaltai a mesa, a casa, as algibeiras de todos os que, refastelados no sofá do bom viver, em nome de princípios e valores, vos condenam a essa sorte de nascer e morrer, sem crescer nem viver. Recusai essa humilhante condição humana. Vós tendes «direito à vida». E, então, se isso acontecer, vereis que outros princípios e outros valores tomarão conta do discurso, da homilia e do sermão da conveniência que gira em torno da bíblica sentença: «crescei e multiplicai-vos» sem eira nem beira, sem peneiras nem crivos, à vontade do frei Franciscano Serras Pereira, que, aliviando a sua cruz, marca posição pública no «Público», fazendo saber que, no Convento da Luz, nega a comunhão aos que usam contracetivos Mas o Cardeal disse depois que essa não era a Pastoral. E isto dito, já que a tal chegámos neste retângulo tão pequeno, correi, também, ao apelo do Pe. Lereno, ali, na Igreja de S. João de Brito, em Lisboa e, lá chegados, berrem-lhe em alta voz:
- Chamou por nós, aqui estamos!
Face ao que, para o fim deste meu apontamento, nada melhor do que repescar o remate do texto de Aquilino Ribeiro, de1929, reportando-se ao «ALEIJADINHO», ali, na cidade de Lamego. Texto que bem podia ser escrito, seguramente, em 1950, tempo da minha ROMARIA. Assim, tal qual:
« -Tenham dó do aleijadinho! Qual dó! Os basbaques, cónegos, militares, vates, filhos-família, pirangas da rua, viram a cara, indiferentes ou anojados. Aqui está Portugal!».
NOTA: Excerto do texto publicado no livro «Memórias Minhas», em 2006