A RESISTÊNCIA DOS TOPÓNIMOS
Nas duas crónicas anteriores, falando das Monteiras, Relva, Mezio e topónimos adjacentes, falei dos “caminhos carreteiros”, da rede viária que ligava as aldeias da serra à sede do concelho. E aludi ao trajeto mais curto entre Monteiras e Castro Daire, passando por Farejinhas, atravessando o Rio Paivó nas POLDRAS do Carvalhal ou nas POLDRAS das Quebradas, à desbanda do Miravai, a subir para Vale de Lobos.
E o jornal «O Castrense» de 20 de Dezembro de 1915, confirma esse trajeto, dando nota do acidente que serve de abertura ao presente trabalho.
PRIMEIRA PARTE
«No dia 15 do corrente foi vítima de um grave desastre o nosso prezado amigo, Sr. Padre António da Silva, abade das Monteiras, vindo da sua freguesia para esta vila, quando pelas 15 horas chegava ao alto de Farejinhas, o cavalo em que montava caiu por sobre um rego, causando ao cavaleiro a fratura de uma perna. Como as dores fossem grandes e o Sr. Padre Silva não pudesse montar novamente a cavalo, nem pudesse por mau cómodo, utilizar-se de um carro de vacas que de Farejinhas lhe levaram, teve de ser transportado na maca do Hospital desta vila, chegando aqui pelas 21 horas.
Pelos senhores doutores Carlos Cerdeira e B. J. d’ Azevedo Mourão foi-lhe imediatamente feita a necessária operação, encontrando-se atualmente relativamente bem. Lamentamos o desastre e desejamos ao senhor Padre Silva as mais rápidas melhoras». («O Castrense» , nº 85 de 20 de Dezembro de 1915)
Nessas cónicas anteriores deixei propositadamente Vale Abrigoso, de fora, muito embora o Dr. Inês Vaz (já falecido) e outros se lhe tenham referido como sendo «Vale do Conde», o mesmo que nas «Inquirições de 1258» é designado por «Vallem de Comite» que integrou a «honra» de Egas Moniz.
Fi-lo por ter matéria estudada bastante sobre essa terra, matéria, aliás, que só me deu o trabalho de relê-la e, seguidamente, graças às novas tecnologias, digitalizá-la, pois investigada e posta em letra de imprensa já tinha sido pelo Padre Jesuíta Manuel Gonçalves da Costa, com quem privei algumas vezes e a quem me confessei, pessoalmente, ser devedor do saber que nos deixou como fruto de uma vida inteira metido nos arquivos a dialogar com manuscritos, pergaminhos e outros documentos falantes.
Figura de baixa estatura física mas de elevada estatura moral e social, sorriso cativante e falas mansas, de vestes baratas e limpas dignas de ajoelharem à frente de um santo de talha dourada da Sé de Lamego ou de outro qualquer templo da Diocese, tão prontas igualmente, para entrarem num arquivo poeirento recheado de documentos inéditos denunciadores dos pecados e interesses humanos que, na fita do tempo, deixaram as marcas dos governantes e dos governados. Dos senhores das terras e dos enfeiteitas que, com o suor do seu rosto, as laboravam a troco das rendas e foros estupilados.
Com efeito, na sua «História do Bispado e Cidade de Lamego» (vol. IV), ele nos deixou uma extensa e valiosa narrativa resultante do diferendo que opôs o Abade de Castro Daire e os habitantes de Vale Abrigoso.
Queria o Abade que eles lhe pagassem os dízimos, por julgar a povoação incluída na Paróquia e no concelho de Castro Daire. E, face à recusa dos moradores, ao todo 8, em 1673, ele moveu-lhes um processo no tribunal eclesiástico de Lamego, resultando daí o registo dos limites do concelho, v.g. uma linha de fronteira que, começava no rio Paiva e no Rio Paiva terminava, depois de devidamente referenciados os sítios e cruzes do longo circuito limitador, por montes e vales, do território paroquial e concelhio. Enfim, um saco de TOPÓNIMOS que chegaram aos nossos dias, apesar do concelho ter alterado a linha os seus limites.
E como dentro desse circuito também entravam terras de Cujó, onde sabemos, pelo foral do «Couto da Ermida» dado em 1514, existir um «casal de prazo», não referenciado no «arrolamento» de 1527 de D. João III, apesar de nesse “arrolamento” figurarem a Carvalhosa, com 2 moradores e o Vilar com 4, muito interesse revestem os TOPÓNIMOS referidos no processo.
Digo mesmo chegados aos meus dias, pois ainda pisei terras identificadas nessa linha divisória, como sejam fonte do Barosa, Penascais, Vale da Fraga e Castanheira.
Mas dizer, escrever e divulgar a matéria investigada melhor do que Manuel Gonçalves da Costa, só ele próprio, por isso, com a devida vénia, passo-lhe a palavra.
SEGUNDA PARTE
«Pelos anos de 1673, o Abade Silvestre Pereira exigiu os dízimos de todas as propriedades incluídas nos limites da paróquia que, segundo ele, coincidiam com os do concelho. Ora, este balizava-se pelo rio Paiva até à embocadura do ribeiro que descia do Mezio daí seguia até à levada da Ramada onde se levantava um penedo com uma cruz gravada, e depois, pelo alto da serra, até à «Guaralheira», ponto assinalado também por um penedo. Dali continuava pelo caminho das Monteiras direito a uma cruz levantada junto duma fraga, e pelo cume até Vale de Salgueiro, onde se erguia uma pedra talhada à feição dum «camartel» da grossura dum homem, também com cruz gravada. Deste vale endireitava a uma cruz antiga, já desfeita, na Fraga do Lobo, subia ao cimo do Coura e continuava direito à fraga da Pevide, Cruz dos Testos, Portela da Sainca e Pedra Alta, no ponto onde existiu um grande padrão; daí à fonte de Barosa, ao Porto dos Calvos, ao marco nos Penascais e depois, pelo fundo do Vale da Fraga e cume da Castanheira, direito ao cimo da serra do Salgueiro e outeiro da Cabeça da Moura até ao porto de Vale de Coelhos; e pelo outeiro de Seixanlhosa e alto do outeiro do Torrão morria no rio Paiva.
O P.e Silvestre, abade colado havia 6 anos em Castro Daire, asseverava que as terras incluídas neste circuito eram dizimatório da sua igreja; e como os lavradores de Abrigoso, em número de 8, se recusaram a pagar, moveu-lhes um processo no tribunal eclesiástico do qual se constituiu autor. Consequentemente, o vigário geral, Dr. João Alves Brandão, a 20 de Julho do referido ano, ordenou, sob pena de excomunhão, se citassem para as audiências que ele dava às terças-feiras e sábados, todos os que o abade ordenasse por intermédio do seu procurador, Lie. Manuel Lourenço de Azevedo. Os incriminados escolheram para seu representante, o Lic. André Rodrigues de Seixas, e a causa iniciou a sua marcha.
A 29 de Janeiro seguinte, os réus «contrariaram» as alegações asseverando que desde há muito pagavam os dízimos ao deão e portanto, que o abade se aviesse com ele. Contrapôs o vigário geral que a causa dos dízimos era sumária e como tal não admitia longo processo e o autor pretendia apenas litigar com quem lhe recusava os direitos. Multiplicaram-se as apelações, mas os de Vale Abrigoso insistiam em que a eles tanto se lhes dava pagar ao deão como à igreja do Castro e por isso citassem antes o abade de Britiande. A 24 de Abril, a causa transitou para as mãos do promotor fiscal da justiça eclesiástica, Dr. Manuel de Setém «que serve de vigário geral de comição do dito senhor governador»; foram citados o deão, Diogo de Andrade Leitão, e o abade de Britiande, Tomé de Gouveia Cardoso, o primeiro representado pelos procuradores Dr. Seixas e P.e Manuel Cabral, o segundo pelo mesmo Seixas e pelo P.e Manuel da Fonseca Carvalho, mas as intervenções destes limitaram-se a contestar as demarcações apresentadas pelo pároco de Castro Daire. A 19 de Junho, o processo voltou à barra do auditório, agora sob a presidência do novo provisor e vigário geral, Dr. João Nogueira de Barros, abade de Miragaia; o autor defendeu a exatidão dos limites descritos e reconheceu ao deão o direito ao dizimatório apenas do concelho do Mezio, não de Vale Abrigoso. Em contrarresposta, foi denunciado o concelho de Castro Daire de procurar furtivamente apossar-se de quase uma légua de território do Mezio, pois na verdade a linha divisória seguia da cabeça do Camartel pela quelha da Loba, outeiro dos Seixos, cima do Moinho Velho, fraga do Couceiro, junto do penedo da Cuba, e daí à Cervelha, Cusalinha e cruz de Sainza.
Neste ponto procedeu-se à inquirição das testemunhas, 20 por parte do deão e abade de Britiande (lavradores do Mezio e de Vale Abrigoso), 22 pelo autor (na maioria das Monteiras e das Carvalhas). Ninguém pôs em causa que a área da paróquia de Castro Daire coincidisse com a do concelho. Toda a dúvida residia nos limites deste. Ora, em 1614, D. Filipe II de Portugal mandara «tombar» os concelhos pelo desembargador Dr. Pedro Godinho da Câmara, com descrição das respetivas demarcações, ficando um exemplar do tombo na posse de cada câmara; «só o concelho do Omizio não sei para onde tombou o seu, porque fundados em grande dolo ou malicia ou, para que não pudesse constar a falsidade com que enganaram os Reverendos oponentes dizem que o tem perdido».
O juiz, em extenso arrazoado, tentou demonstrar a razão de Castro Daire, acusando os moradores do Mezio de pretenderem alargar o seu concelho para pasto dos gados, e os de Vale Abrigoso, «com esta capa de concelho lhe deu o diabo conselho para não pagarem nem a uns nem a outros». Neste sentido saiu a sentença pronunciada a 11 de Dezembro de 1677, pelo vigário geral, Dr. Cristóvão Bandeira.
Um certo Afonso Gonçalves, natural do Mezio, deixou ao Convento de S. Francisco, de Lamego, em testamento um censo de 5 alqueires de centeio com a condição de os frades lhe celebrarem 5 missas anuais perpétuas. A tomada de posse das terras obrigadas ao legado realizou-se em 30 de junho de 1562» (Manuel Gonçalves da Costa, «História do Bispado e Cidade de Lamego», 1984, vol. IV, pp 292-295).
TERCEIRA PARTE
Vimos nas Inquirições de 1258 que as propriedades e foros do rei mudavam de proprietários, fosse por doação testamentário, fosse por via da força, sendo que muitas delas revertiam a favor do clero ou da nobreza.
O resultado do processo judicial, posto no tribunal eclesiástico de Lamego, em 1673, pelo Abade de Castro Daire, deveu-se à questão dos “dízimos”, por ele reclamados aos moradores de Vale Abrigoso e isso valeu não só a delimitação geográfica da paróquia e do concelho, mas também a forma inviesada como os possidentes procuravam chamar a si, o que a outros pertencia, como ficou patente nos autos e na sentença.
Tinham-se passado muitos anos, mas na matéria em apreço, seja receber o “dízimo” dos produtos granjeados, seja ter o senhorio de determinada área territorial, o comportamento humano dos poderosos persistia intato. Intato e malicioso. Basta atentar no modo como o concelho do Mezio se furtou ao “tombo” dos concelhos mandado fazer por Filipe II, em 1614: “só o concelho do Omizio não sei para onde tombou o seu, porque fundados em grande dolo ou malicia ou, para que não pudesse constar a falsidade com que enganaram os Reverendos oponentes dizem que o tem perdido».
E sublinho o facto de, por causa dos “dízimos” reclamados pelo Abade de Castro Daire, o conelho o “procurar furtivamente apossar-se de quase uma légua de território do Mezio, pois na verdade a linha divisória seguia da cabeça do Camartel pela quelha da Loba, outeiro dos Seixos, cima do Moinho Velho, fraga do Couceiro, junto do penedo da Cuba, e daí à Cervelha, Cusalinha e cruz de Sainza”.
Pois. Perdeu-se o registo. Mas, graças ao Padre Jesuita Manuel Gonçalves da Cosa, não se perdeu a malicia, a manigância e a falsidade que, aninhadas em letra manuscrita, vertidas foram para letra de imprensa e chegaram até nós, atestando que a “honra e o proveito” advindos do desfecho do processo, não reverteram, seguramente, para lavradores de Vale Abrigoso ou do Mezio, esses HERÓIS DA SERRA, de ontem e de hoje.
CONCLUSÃO
Os vídeos que fiz alojados no Youtube e as crónicas que escrevi e publiquei neste meu SITE, com o título “HERÓIS DA SERRA”, não estavam, em boa verdade, na calha das minhas cogitações e tarefas imediatas. Mas o empenho revelado por alguns protagonistas solicitando os meus préstimos e o facto de, sem “cunhas, nem amiguismo, nem compadrio”, um desconhecido cibernauta, de seu nome Topi Tjukanov, me ter colocado no pódio designado “NOTABLE PEOPLE”, na categoria “discovrey and science” (disponível no GOOGLE), ao lado de Serpa Pinto (de Cinfães), de Leite de Vasconcelos (da Ucanha) e de João de Barros (de Viseu”) entre tantos, todos eles figuras ilustres da nossa HISTÓRIA (todos, que não eu), impeliram-me, aos 83 anos de idade, a calcorrear montes e vales e a embrenhar-me, mais uma vez, na FLORESTA DA INVESTIGAÇÃO, desbravada ou por desbravar, a fim de não desmerecer o lugar no PÓDIO e dar substância ao “número” e ao “verbo” que, nas circunstâncias ditas, ali me puseram. Pitágoras de Samos (séc. VI a.C.) filósofo e matemático, disse que no “princípio era o número”. Posteriormente a Bíblia veio dizer que “no princípio era o verbo”. E, no que a mim respeita, parece que “numero” e “verbo” se conjugaram nos "bancos de dados digitais" e puseram num AZUL GLOBO TERRESTRE, entre tantos cidadãos NOTÁVEIS do mundo, o nome da aldeia de CUJÓ e de um cidadão ali nascido em 1939.
Eu próprio. E desiludam-se os despeitados com o MÉRITO ATRIBUÍDO e por mim divulgado posteriormente, sem falsa modéstia. Não busco, com isso, medalhas ou honrarias instituionais. Tenho sobre isso juízo formado e escrito num extenso poema, com laivos de testamento cerrado, feito no dia do meu 83 aniversário, com o título “O VERBO E O VERSO”, julgando estar lúcido e no "meu juízo perfeito”. Uma estância apenas:
Não importam os louros da vida e da glória
Pois, desaparecida que seja a matéria,
Pobres, ricos e famosos condecorados
Pelos feitos heroicos de vida e de história,
Sejam a Cruz de Cristo e Torre de Espada
Escaqueirados os hemisférios da memória
Acabam vendidas na feira da ladra
Onde se compra e vende a humana miséria.
Ali, na FEIRA DA LADRA onde, seguramente, não vai ser vendido o GALARDÃO que me foi atribuído por um estudioso e desconhecido cibernauta, a troco de nada. Ele simplesmente olhou e viu o laborioso trabalho do lenhador que, de podão em punho, aqui pela serra do Montemuro, e descuido dos poderes instituídos, fez questão de abrir trilhos e clareiras na FLORESTA DAS LETRAS, do PENSAMENTO, do ENTENDIMENTO DO MUNDO PLURAL – étnico, social, económico, político, racial e religioso - sempre preocupado em não envergonhar as instituições e os professores que o formaram, não desiludir os seus colegas de profissão, honrar os seus pais, irmãos, filhos e demais família, incluindo os seus COMPANHEIROS/AS dos liceus e universidades. Aqueles que perdeu para sempre desaparecidos que nas encruzilhadas da vida.
Sim. É garantido que o GALARDÃO que me foi atribuído por ilustre desconhecido não vai ser vendido na FEIRA DA LADRA, pois de apelativo tem pouco ou nada para colecionadores de futilidades. E o ridícilo mata.
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