Trilhos Serranos

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quarta, 11 setembro 2013 12:37

A TOSQUIA

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COMÉRCIO LOCAL

Há uns tempos, fui à histórica loja «Ferreira Pinto» (perto do coreto) e comprei tecido bastante de serrubeco para umas calças que mandei fazer a um alfaiate local.  Próprias para me protegerem do frio nas viagens de mota, quis mandar fazer outras, mas o José Carlos (Carlinhos para toda a gente amiga) disse-me que já não vendia esse tecido. E, aproveitando a sua experiência sobre tecidos, uns que acabaram e outros que surgirem, contou-me uma «estória manhosa» digna de nota.
Antigamente, disse-me ele, as peças de fazenda eram todas de «pura lã»  e quando a indústria passou a fornecer o mercado com peças metade de lã e outra metade de polyester ou similar, nem todas os clientes aceitavam a novidade. Exigiam «pura lã» e mais nada. O «fioco» não teve saída. Tecidos feitos a partir da tosquia dos animais que conheciam na serra, traziam selo de garantia, os outros sabia-se lá de que eram feitos.
Não. Tecidos, só de «pura lã», que os serranos conheciam desde a tosquia à tecelagem.
Nisto, como em tudo, sobretudo nos meios rurais, cientificamente pouco atreitos a mudanças, as novidades não têm o caminho facilitado.

 

lOJArEDZ

Veja-se, por exemplo,  o caso presente de Internet e das novas tecnologias. Elas são a perdição do mundo. E não pensem que exagero. Há bem pouco tempo, ao lado da minha do café, discutia-se o valor da Internet. Ela não foi precisa para os Portugueses fazerem os Descobrimentos, os Jerónimos, a  Torre de Belém, nem Camões, nem Saramago usaram computador para nos legarem as suas obras poéticas/literárias. Dito com convicção e sem hesitar. Isso e as novas tecnologias são a causa de todo o desemprego que se vive na Europa. Uma das pragas do antigo Egipto.  Um rosário de maleitas sociais afins cuja reza só foi interrompida pelo toque do pequeno telemóvel que lhe tocou no bolso. Atendeu a chamada e, depois disso, continuou a rezar as asneiras sobre a Internet e as novas tecnologias. Acabava de fazer uso de um produto desses e nem se deu conta dos disparates que lhe saíam da boca sobre o assunto. 
E dito isto, voltemos à «estória manhosa»:
Um dia, ainda o Carlinhos era aprendiz, (o mestre era o seu senhor pai) entrou-lhe lhe  loja dentro um vendedor com várias peças novas. Sabendo da resistência dos clientes aos novos produtos fabricados «à moderna», virou-se para o catraio e disse-lhe, em voz alta:

- Tudo isto é de «pura lã, rapaz!»

O rapaz, era os Carlinhos, e este, sem ter percebido a intenção do vendedor, mirou e remirou a etiqueta de duas peças e respondeu-lhe:

 - Mas aqui diz 45% de lã e 55 de Polyester e nesta aqui diz 45% de lã e 55 de Trevira.LÃ E POLYESTERrEDZ

-  Pois é, rapaz, essa foi a percentagem adequada que a fábrica encontrou para enganar as traças. Com essa percentagem aí marcada elas deixam em paz as calças, coletes, casacos e saias e vão comer para outro lado.

 - Como assim, as traças sabem ler?

-  Claro que sabem. Depois de lerem a etiquete fogem.

O Carlinhos virou-se para o senhor seu pai e disse-lhe:

- Ó senhor meu Pai, este vendedor está a querer enganar-me. Quer convencer-me que as traças sabem ler. Que sabem mais que o tio João, de Picão, o tio Jaquim de Baltar e o tio Horácio de Vila Pouca, que comparam a cabeça de um boi com um A virado ao contrário.
Foi então que o vendedor lhe disse ao Carlinhos que estava a brincar e virando-se para o senhor seu pai, disse-lhe:

LÃ E TREVIRArEDZ- Ó Toninho, o rapaz promete, não vai em conversas tolas.

E não foi, mesmo. Cresceu ali a medir e a vender tecidos ao metro, à vara e ao côvado e com 77 anos de idade, neste ano de 2013, mantém-se atrás do balcão a lidar com clientes, com carinhos e novelos linhas com agulhas de coser, de alinhavar de bordar, dedais, tesouras, cotins, chitas (manobra com mais agilidade o metro de madeira do que eu dedilho o teclado do meu computador), cortinas, roupa feita e, além disso, com paciência e  humor bastante para retirar duas peças da prateleira, desdobrá-las em cima do balcão e deixar-me fotografar as etiquetas e dizer-me, a rir, que até as traças aprenderam a ler numa altura em que a maioria dos clientes da serra era analfabeta.
A sua casa é um museu, onde se entra sem pagar e sempre aberto no horário estipulado, bem ao contrário de outros que por aí há, integrados na rede de museus nacionais, que estão sempre fechados. Ali as pessoas compram o que já não encontram noutros sítios e ali se aprende todos os dias um pouco da história, dos hábitos, costumes e mentalidades de outros tempos. Enfim, uma escola do passado. E é por estas coisas e por outras que eu já defendi numa crónica anterior, e continuo a defender nesta. que, comerciantes deste ramo de negócio, com mais de 70 de idade anos atrás de um balcão deviam ser isentos de impostos. A idade que têm e o serviço que prestam à comunidade local e forasteira, que deixa ali os olhos, eram o bastante para usufruírem de tal benefício.
Só que a tosquia continua. Agora é outra. O tric-tric da tesoura deu lugar ao troia-troika dos BPNs, dos dinheiros gastos nos medievais trilhos de Santiago de Compostela, na colocação de monóculos de longo alcance, na serra do Montemuro, num pretenso projecto de desenvolvimento turístico. São outros os tosquiadores, são outros os rebanhos tosquiados. A «pura lã» passou à história.

Abílio/Setembro/2013

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.