- É uma “SURPRESA!”
Foi essa a expressão usada pelo meu filho mais novo, VALTER, quando me informou da aquisição de uma nova “LURA”, afastada (300 quilómetros de distância) do formigueiro humano que se movimenta e desliza como águas de invernia nos rios e ribeiras de leito asfaltado, nas avenidas, ruas e becos da cabeça do REINO e arredores, com rotundas, pontes, viadutos e túneis iluminados dia e noite.
Alentejano de nascimento, filho de pai beirão e de mãe alentejana , a Mafalda, natural do concelho de Castro Verde, minha companheira de vida e de profissão (prematuramente falecida) sabia-o, desde há muito, interessado na aquisição de um “cantinho” de Portugal que ficasse distante da capital, de preferência a sul do Tejo, como que a prestar homenagem ao ventre materno que o aconchegou e lhe deu vida nos nove meses de gestação.
Respeitei a sua vontade e, ajudando financeiramente segundo as minhas possibilidades, aguardei o desfecho da sua decisão, da sua escolha. E chegou o momento e a SURPRESA.
De combinação com o irmão mais velho - o NURO - que manteve religiosamente a vontade sigilosa do seu mano, este deslocou-se a Fareja, entrámos na sua viatura e … ala, que se faz tarde. Saímos de Castro Daire, circundámos, pela esquerda, a cidade da Guarda, descemos à Covilhã, a Castelo Branco, a Portalegre, entrámos no concelho de Marvão. Atravessámos a “FREGUESIA DE BEIRÔ (sugestivo nome) e não tardou a que o GPS, com o rigor tecnológico incorporado, dissesse, em voz alta, melodiosa e sonora: “chegaram ao destino”.
E chegámos mesmo.
Aqui, no distrito de Portalegre, concelho de Marvão, entre a BEIRA ALTA e o ALENTEJO, foi a escolha última do meu filho VALTER. E, aos meus olhos e sentir afetivo, não podia ter feito melhor e mais significativa opção. Filho de pai beirão e mãe alentejana, que melhor lugar geográfico e humano podia escolher ele, senão este, do ponto de vista simbólico e genético?
Foi uma SURPRESA, sim senhor. E ele não andaria mal se desse à sua nova LURA (temporária) o nome “QUINTA DAS SURPRESAS” ou coisa que o valha. Pois, observando as redondezas, depois de ter vivido anos no BAIXO ALENTEJO, zona de peneplanície, a exercer a profissão docente, conferi a similitude da orografia e do relevo concelhios, montes, outeiros e penedias, cuja realidade me remeteu imediatamente, para os montes, outeiros e penedias do Montemuro, da Serra da Nave, da serra da Lapa e outras das redondezas. Solos e penedias que me consumiram anos de vida a romperem os tamancos e a planta dos pés descalços na juventude e a sola das botas, em idade adulta.
Isto no que a mim me respeita, pois no que a eles toca, ao casal, aos novos proprietários locais, não lhes faltarão SURPRESAS na roda do tempo. Todas aquelas que, escondidas no património edificado, decorrem dos materiais utilizados, da boa ou má conservação, forma e tempos de uso, et. etc.. Mas essas aparecerão lentamente, num labor constante da necessária e indispensável arqueologia doméstica.
E tal como os velhos catos da vizinhança, aquelas figueiras da Índia, caules nodosos, gretados, espelho de artroses centenárias, documentos vegetais cuja leitura hermenêutica nos conduzirá à espinhosa compreensão das dificuldades da vida dos primitivos povoadores da região, dos primeiros habitantes da casa e seus seguidores, serão uma fonte de saber, de vida e de esperança.
A todos eles, sem distinção, novos e velhos, primitivos e atuais residentes, pespego a divisa henriquina “talant de bien faire”, “HERÓIS DA TERRA” que persistem em mostrar que Portugal não se circunscreve à faixa atlântica embarcadiça dos DESCOBRIMENTOS. O interior do País, agora esquecido e quase desertificado, forneceu toneladas de madeira para a construção naval, nomeadamente do sobreiro (quercus suber) irmão do CARVALHO ALVARINHO (quercus robur), sendo que, este último, saindo para o mar com o seu nome de batismo (dado pelos eruditos e pelos eruditos dicionarizado) do mar regressou com o nome de “MARINHEIRA”, batizada pelo povo analfabeto, em resultado da sua prestimosda serventia. (Cf vídeo alojado no Youtube com o título “Castro Daire, História e Monumentos, Carvalha do Presépio” 2021, link: https://youtu.be/n_rJ56fy72E.)
Enfim, a orografia em redor, os muros graníticos a perder de vista, divisórios que são de estradas, de caminhos e de propriedades, tão característicos da BEIRA ALTA, habitações a atirar para o estilo alentejano, mas, aqui e ali, a coexistirem com as construções circulares castrejas, coberturas em cone feitas com materiais vegetais locais, a lembrarem as construções celtas patentes na “citânia de Briteiros”, e, de certo modo, a lembrarem também os “pombais tradicionais”, implantados nas serranias transmontanas, senti-me geográfica e culturalmente em casa. E disse de mim para mim que, com 83 anos de vida, podia morrer descansado e em paz. O meu rapaz e a família (companheira e sua prole) para usar uma expressão popular, deixaram-me a clara impressão de se sentirem felizes “nas suas “SETE QUINTAS”.
E eu, que tanto gosto de escrevinhar e, através da escrita (no uso das “pepitas de ouro” (as palavras), que, no dizer do escritor Jose Rentes de Carvalho, formam a LÍNGUA PORTUGUESA), e eu, dizia, que tanto gosto de divulgar os meus conhecimentos e expediências, que tanto gosto de extravasar as minhas emoções (é da minha natureza), olhando em redor, pasmado, a pensar na mãe dos meus filhos, ela, que tantas vezes fez dos olhos meus os olhos seus e vice-versa, fiquei sem palavras. Foi efetivamente uma SURPRESA.
Mas, historiador que sou, o topónimo “ Beirã” intrigou-me. Fui ao GOOGLE pesquisar sobre a “JUNTA DE FREGUESIA DE BEIRÔ, concelho de MARVÃO e inteirei-me do muito que de política, de história e da cultura há conhecido, divulgado, a conhecer e a divulgar.
Enfim. Dito isto, felicito o meu filho VALTER, a sua companheira, SANDRA, mãe da minha neta MAFALDA e do meu neto GUILHERME (toda a família) por terem virado as costas ao mar e, ainda que temporariamente que seja, dispostos a libertarem-se do stressante e poluído formigueiro humano urbano, decididos a meter os pés e mãos na terra, a riscar o citadino e profissional verniz das unhas, a deixar o teclado dos computadores e quejandos, pisar o pó do chão seco neste ano de seca de 2022, respirar o ar puro das montanhas, ouvir o gorjeio do gado alado, deliciar-se com o diálogo brejeiro-beirão da papa-figos, também conhecido por marantéu e bartolomeu no dizer de Aquilino Ribeiro (cf. Vídeo alojado no YOUTUBE com o título “CONVERSA EM ANDAMENTO, MONTEIRAS, CRUZ DA PORTELA”, cujo link coloco em rodapé), decidirem ser mais um casal, mais uma família, a engrossar o rol dos proprietários rurais que, no seu conjunto, trabalhando e dando trabalho aos residentes, são os pilares deste pedacinho de PORTUGAL periférico, semidesertificado. Direi mais: sem esses HERÓIS DA TERRA (por analogia com os ditos HERÓIS DO MAR), já esta nesga de território fronteiriço de Portugal estaria, há muito, apagada nos compêndios e mapas da GEOGRAFIA HUMANA NACIONAL.
E para todos aqueles que não cortaram, de todo, a sua relação com a natureza, que se surpreendem e encantam com as esculturas graníticas esculpidas pelos ventos, neves e chuvas, no topo ou nas encostass dos montes, todos aqueles que na simbólica heráldica leem páginas seguidas da HISTÓRIA PORTUGUESA , bem pode acontecer que, subindo e descendo estes montes, outeiros e ravinas, fixem os olhos num qualquer penedo exótico que lhes lembre uma figura politica ou histórica da FASTIGÍMIA nacional ou estrangeira.
Pois. E regressado que fui ao meu cantinho, na BEIRA ALTA, aldeia de Fareja, para que toda a gente veja, depois do banho cultural, turístico e histórico que tomei, mergulhado no Castelo de Marvão e no Castelo de Vide, ruas medievais e esplanadas cheias de gente, gargalhadas estridentes “à maneira serrana” em dia de romaria ou de feira, a entrarem-me ouvidos adentro, vista regalada com a panorâmica semi-alentejana, convívio com a FAMÍLIA, qual “JUIZ DE FORA” de outrora obrigado a fazer o relatório das suas andanças de ofício, eu dou nota escrita desta minha visita, que, tendo sido a PRIMEIRA, bem pode ter sido a ÚLTIMA. Daí a evocação dos DESCOBRIMENTOS, da NAVEGAÇÃO, das FIGUEIRAS DA ÍNDIA, dos seus FIGOS ESPINHOSOS, a sinalização de uma viagem, neste “mare magnum” da Internet, não em embarcações movidas a energia eólica como as naus, caravelas e veleiros de tempos longínquos, nem como os barcos movidos a vapor, de tempos mais próximos, mas num barquinho de papel de criança metido num alguidar de plástico, a transbordar de água, barquinho movido pela “energia a sangue” resultante da imaginação, da criatividade, da angústia e da solidão.
Abílio/agosto/2022