Há dias, tivemos ali um novo encontro e ele deu-me a saber que tinha compilado e publicado, em livro, parte das QUADRAS que publicou naquele jornal. Que iria oferecer-me um exemplar. Deixá-lo-ia naquele Café, quando retornasse à vila. Promessa feita, promessa comprida. Ontem mesmo, foi-me entregue e apressei-me a lê-lo, deixando aqui prova disso mesmo. Tem por título «PASSAGENS DE UMA VIDA II»
A capa é ilustrada com uma fotografia onde se vê uma parcela da aldeia, tirada da Santa Bárbara, o melhor miradouro para se ver o povoado. Com efeito é daquele lugar que se obtém um registo que quase uma ideia vista aérea. Boa escolha.
Sem curar de seguir, por desnecessário, a cronologia da paginação do livro, vou transcrever algumas dos seus pensamentos passados a letra redonda, com o aviso de que tudo o que estiver em itálico são as transcrições que eu, aqui, encarreirei a meu jeito e gosto.
“Eu nasci em Cujó
Que fica no alto da serra
Por mais longe que estiver
Não esqueço a minha terra.
Íamos jogar às cartas
À noite, ao fim da ceia
Era em casa dos Ramalhos
Sempre à luz da candeia.
Rádios, esses não havia.
Nem se conhecia a televisão
Passávamos o nosso tempo
Todas as noites em serão.
Tempos da luz da candeia
Nunca mais esquecerão
Nós jogávamos às cartas
Mulheres fiavam à mão.
(…)
Também já fui emigrante
Mas vivi sempre aozinho
Sentia a falta dos filhos
E da mulher o seu carinho.
(…)
Tinha eu uns quinze anos
Fui trabalhar de pedreiro.
Ainda era bastante novo
Mas gostava de ter dinheiro.
Há guerras todos os dias
E não posso compreender.
Não há homens, só rapazes,
E todos querem o poder.
Poucos confiam no governo
Porque já não há dinheiro,
Estamos a ser governados
Pelos grupos estrangeiros.
Ouvem-se tantos lamentos
E guerras por rodo o lado
No país ninguém se entende
Está tudo desgovernado.
Os casamentos pela igreja
São coisas que vão acabando
Agora é só pelo civil
Ou apenas os trapos juntando.
Era nessas casas pequenas
Que pais e filhos dormiam
Uns dos pés, outros da cabeça
Com pouca roupa se aqueciam.”
Referindo-se à ENTRADA AOS SERÕES:
“A audiência que se fazia
Era como no tribunal
Todos eram condenados
Mais os que faziam o mal.
Compareciam as testeminhas
De acusa e da defesa
Os das penas mais pesadas
Suportavqm as despesas.».
Reportando-se aos episódios e dramas humanos que viveu quando esteve na GUERRA EM ANGOLA:
«Tentámos interrogá-lo para saber onde era o acampamento dos colegas. Não conseguimos nada, ainda tentámos convencê-lo pela comida, ou permitir que andasse connosco, mas disse que preferia morrer. No dia seguinte um dos furriéis levou-o para junto de uma vala e depois de lhe perguntar novamente pelo acampamento inimigo e a resposta fosse a mesma, deu-lhe um tiro e empurrou-o para a vala. Foi o infeliz fim dele.
(...)
«Mandou-nos colocar à volta dele. Fazendo um círculo de tal modo que no meio ficou ele e a cabra, pegou na pistola apontou ao bicho, mas a pistola encravou. Ficou aflito sem saber o que fazer. Naquele entretempo rodava a pistola oura numa ora noutra direção, tentando resolver o problema. Todos gritavam para ele virar a pistola para outro lado e ele todo atrapalhado nem nos ouvia. Até que, de repente, se ouviu um disparo e um dos nossos caiu redondo no chão, trespassado no coração. Foi complicado o trabalho que aquilo deu. No entanto aqui fica uma opinião: é possível, tomando esta história como exemplo, que muitos dos nossos tenham morrido em acidentes semelhantes a este, às mãos dos próprios colegas».
“Às quatro horas da tarde, Quitexe era um lugar abafado pelas matas sufocantes que a rodeavam e pelo cheiro dos mortos, cujos cadáveres continuavam por ali espalhados, a apodrecer, causando náuseas aos vivos. Esta imagem de crimes não saía da cabeça de ninguém pois era terrível aquela mortandade. Vejo-me a pôr as mãos na cabeça, a fechar os olhos. Não quero ver, mas conservo a primeira imagem na mente. Assolam-me os fantasmas. Sinto que quem faz a guerra é desmano ao fazê-lo…. Sinceramente o pior que pode acontecer numa guerra é saber que de bom não tem nada….
(…)
Em Grafanil encontrei algumas caras conhecidas, algumas da terra que me trouxeram saudades. Senti-me de dever cumprido. Derramei sangue, suor e lágrimas, mas graças a Deus considero-me apesar de tudo, um homem de sorte, sorte que o António Pinto não teve, pois aqui deixou a vida (…)
Finalmente o momento tão aguardado chegou. Voltar a Portugal são e salvo era o que todos desejavam. Bem-dito Vera Cruz, o barco que nos levou e nos devolveu à Pátria, à terra e à família».
E com a sabedoria da idade, confessa:
«Estou quase nos oitenta
Dia e noite tudo aumenta
E minha vida vai acabando.
Agora já se pode pensar
Que, quando tudo terminar
Alguém nos está chamando.
Talvez tenha pouco valor
E dizer coisas sem jeito
O que não presta deito fora
O que for bom eu aproveito”.
Os que aceitam minhas quadras
Com muito amor e carinho
Me vão dizendo muitas vezes
Continua a escrever Agostinho».
Ora, guardei para o fim esta QUADRA propositadamente. É que, ainda que ele o não refira, posso dizer que fui “um dos amigos” que lhe disse muita vez “continua a escrever, Agostinho”. E não minto ao dizer que fui eu que o conduzi à REDAÇÃO do jornal, para que ele iniciasse ali a produção que agora deu corpo ao livro que publicou e do qual falo. E mais: que o incitei a escrever as MEMÓRIAS que tinha da GUERRA COLONIAL, em Angola, para onde foi e não veio, ANTÓNIO PONTO, um outro moço da nossa idade, como ele disse e muito bem.
Gostei de ler os pensamentos de um AMIGO DE INFÂNCIA e sobre eles aqui, neste meu espaço, deixar esta NOTA. Veja e ouça os vídeos.