Trilhos Serranos

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segunda, 17 janeiro 2022 14:57

VIDA CAMPONESA NOS MEADOS DO SÉCULO XX

Escrito por 

(VESSADAS E SEGADAS)

Lembrando algumas tarefas agrícolas do meu tempo - meados do século XX - récitas em que fui ator e agente (agri)cultural no palco de teatro serrano, enquadrado pelas serras do Montemuro, do Marão e da Nave (também dita Leomil), destaco as VESSADAS e as SEGADAS.

 

 PRIMEIRA PARTE

CharruaAS PRIMEIRAS consistiam em lavrar as terras fortes de regadio, só possível graças ao milagre chegado com a “charrua de aiveca móvel”, já que, nessas terras pesadas, ribeirinhas, o velho arado radial não ferrava o dente, que o mesmo é dizer, não metia relha. Essa alfaia agrícola, de madeira, herança céltica, ficava-se pelas terras centeeiras, terras leves e fáceis de rasgar de ponta a ponta, a subir e a descer encostas. Digamos que esse arado de pau foi a caneta com a qual, durante séculos, se lavrou a saga camponesa na escrita BUSTROFÉDON.

AS SEGUNDAS consistiam na ceifa (dita segada) das searas de centeio, aquelas que, tanto no verde como no maduro, davam a ilusão ótica de cavalgarem a serra e desaparecerem no horizonte, ao sabor do vento. Isto para quem nunca tinha visto o mar, pois, depois de visto, essas searas faziam da serra inteira um mar ondulante de pão andante, posteriormente substituído por giestais e matos mais: o tojo, a urgueira, a carqueja, etc. São factos. Na barra cronológica da HISTÓRIA bastou um instante para este interior serrano, de ano para ano, ficar varrido de gente, inculto, desertificado.

E porque lembro eu este quadro paisagístico, esta realidade humana, estas duas tarefas agrícolas, entre tantas que, nesse tempo, punham o pão na mesa do camponês? Respondo de pronto: pela simples razão de me ter dedicado ultimamente ao restauro e recuperação de duas vasilhas para VINHO, muito usadas nessas duas tarefas, acompanhadas da bilha de barro para água, do garrafão, dito «palhinhas», os quatro sempre levados para o palco da récita, sempre prontas a responderem às bocas sequiosas dos atores que, de enxada ou seitoira na mão, entre cantorias e ditos galhofeiros, vergavam a espinha, faziam músculos peitorais, de cintura, de braços e pernas, dispensando os ginásios urbanos atuais. E o suor vertido pelos poros da pele de cada ginasta, regava o chão quente dos floridos meses de maio e junho. Era o primeiro tempero, o primeiro sal, do pão que comiam, digo melhor, do pão que nós comíamos.

Obesidade? Nem pensar. Isso era doença do porvir. Preocupante. Mais preocupante do que era, então, a carência alimentar e a fome. Daí que os “encenadores” se vissem, não tardou muito, a ficarem sem atores e o palco vazio, sem gente, sem vida. Foi a emigração e a desertificação espetável.

SEGUNDA PARTE

ancoretaDito isto, refiro-me, em primeiro lugar, a um pequeno BARRIL de tampos ovoides, aduelas de carvalho casadas e apertadas com aros de ferro. Chamava-se “ANCORETA” para a distinguir do seu irmão e companheiro de faina, de tampo circular, que recebia o nome de “PIPINHO”.

Foi ela, a ANCORETA, cuja foto ilustra estas linhas, que me ocupou algumas horas de lazer, nestes primeiros dias de janeiro de 2022.

Era pertença desta casa que habito e nesta casa ficou como prova de ter sido usada pelos lavradores e cultivadores de pão e de vinho que nela viveram antes de mim, eu, que, diferentemente deles, em vez de lançar à terra as sementes, optei por lança-las sim, mas nas mentes.

Ora, dado o estado da ANCORETA, com sinais evidentes de avançada idade, sem uso, aros enferrujados e aduelas desconjuntadas, com um só aro a casá-las, guardei-a numa copeira da antiga adega, nos fundos da casa, onde a fui buscar agora para lhe dar o aspeto apresentável e identificador da sua função PASSADA. Guardá-la como documento histórico de tanoaria, testemunho desse tempo e de uma profissão indispensável na serra, que ainda não tinha sido invadida pelas vasilhas de plástico, aquelas que, poluentes, reconhecido o mal que fazem ao ambiente, estão prestes a perder o seu império.

BILHAAinda que, consequentemente, seja qual for a alternativa, dado o estádio civilizacional a que chegamos, certo seja não se retornar à cabaça, saída da terra, à bilha de barro, obra de oleiro, e/ou à borracha e ao odre feitos de pele de cabra, adereços indispensáveis aos atores que, nas récitas camponesas serranas, sabiam de cor e salteado os dramáticos papéis que lhes cabia em sorte desempenhar.

Não sendo eu tanoeiro, nem ferreiro para forjar os aros em falta (só restava um, como disse) não tive outro remédio senão recorrer ao fio de arame e, dessa forma, com a ajuda de um alicate, acasalar e apertar as peças desconjuntadas. E recuperada, assim, tal qual se vê, não para uso, mas para documento, eis o “pergaminho” sem letras herdado que deixo aos meus filhos e netos por herança. E se Camões dizia que o “amador se transforma na coisa amada”, talvez o «herdador venha a amar a herança transformada», inclusive a própria casa comprada.

borrachaA segunda peça recuperada foi uma vasilha muito usada nessas tarefas agrícolas, mas mais ainda por todo o almocreve ou caminheiro que se propusesse chegar a um longínquo destino, feira ou romaria.

A matéria-prima de que era feita, permitia-lhe uma fácil acomodação no transporte. Ela podia ter uma correia ou cordão para ser posta a tiracolo, mas também podia dispensar esse apêndice. Na recuperação daquela que aqui reproduzo em foto, valeu o óleo de rícino. Ele a ressuscitou do estado ressequido em que estava e lhe devolveu a plasticidade original. Trata-se, claro está, de uma BORRACHA.

E o seu nome e uso leva-me a discorrer sobre a nossa LÍNGUA, certo de muita gente já ter usado a palavra “borracheira” sem saber, nem procurar saber, donde veio tal palavra.

Pois. Quem é que não associou já as palavras “borracheira, piela, bebedeira, tosga, cadela, carraspana, esbórnia” ao excesso de vinho? Quem não ouviu ainda a expressão: “apanhou uma borracheira de caixão à cova”. E quem não viu a pessoa bêbada a cambalear, a dar dois passos à frente e outro atrás, tente não caias, a falar para ninguém graças aos efeitos etílicos?

garrafão - CópiaSim. Mas quem ligou toda essa “fala” à pequena vasilha, feita de pele (geralmente de cabra) com uma boquilha de madeira, de feição tal que assentava no lábios e se podia beber o líquido, sem se perder pingo? E também havia aquelas que, apertadas pelas mãos, esquichavam vinho à distância da boca, que nem teta de vaca ou de cabra a esguichar leite param a boca do pastorinho habilidoso e experiente.

E devo dizer que falo que sei. E afirmo categoricamente que mais vezes foram aquelas que, desse modo e à distância, engoli o leite espremido das tetas das cabras e das vacas, do que o vinho, espremido da BORRACHA. Direi mesmo que nunca apanhei uma BORRACHEIRA na vida e que, na vida, apesar de tantos anos passados, ainda não perdi o paladar daquele leite quentinho que eu tão bem sabia esguichar em direção à minha boca, habilidade que me lembrou recentemente o meu irmão Zé, quando, em conversa fraterna, desbobinávamos a fita das nossas aventuras e experiências de crianças, nomeadamente, largar a sacola escolar, sob os canastros, ao fim das aulas e partir à descoberta dos ninhos. E nessa aventura não havia lar de corvo, milhafre, rola, gaio, melro, gaivão (papa-figos) pintassilgo, pardal e carriça (do maior ao mais pequeno), que escapasse ao nossos olhares de lince, curiosos e ávidos de saborear os ovos, depois de furados nas extremidades com um pauzinho. E no que tocava a subir às árvores ele, mais velho um ano do que eu, levava sempre a melhor, a subir sempre sem medo, mesmo depois de uma queda em Vale de Cavalos que a ele o deixou sem sentidos e a mim  angustiado, sem saber que fazer. Escapou. Foi um alívio. Não teve emenda.

Os programas dos CANAIS CABO, que hoje existem e mostram as manhas e artimanhas dos SOBREVIVENTES, eram coisas do porvir, tal como as tecnologias que no-los fazem entrar casa dentro. Nos meados do século XX, para me cingir aos meus tempo de meninice e juventude, programas “À FLOR DA PELE” não eram ficção televisiva, mas, certo, certo, é que não faltavam SOBREVIVENTES por estas aldeias fora. Crianças e crescidos, todos esqueléticos, todos muito sóbrios no vestir, no calçar e no comer, mas alguns adultos apanhavam frequentemente  “borracheiras de caixão à cova”.

 https://youtu.be/8ujIDeSpA1I

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.