PRIMEIRA PARTE
É que, mesmo que eu quisesse pensar assim, os utensílios domésticos que herdei dos meus pais e com os quais lidei diariamente, durante anos, impedem-me de acompanhar aqueles que se fincam em semelhante asneira.
É que, nesse tempo, nos meados do século XX, por estas aldeias arriba, aninhadas na serra do Montemuro (estou em dizer que pelas aldeias deste Portugal inteiro), não havia energia elétrica, nem saneamento básico. A água chegava aos lares dentro de “canecos” (vasilhas de madeira) e nem todas as casas dispunham de um lavatório doméstico, com espelho e uma bacia de esmalte, semelhante ao que aqui apresento, depois de restaurado, vindo da casa dos meus pais, em Cujó.
Deixada a sua função primária, foi a minha esposa MAFALDA que fez dele um documento histórico e um adereço decorativo. Coube-me, agora, a vez de proceder ao seu restauro, colocando-lhe o espelho em falta (disponível no mercado) e ornamentá-lo com os arranjos florais que adquiri num estabelecimento chinês.
Um desses elementos, além do espelho, é uma árvore tipo “bonsai” que me disseram ser chamada a “ARVORE DA VIDA”. E mal eu ouvi tal nome, logo me lembrei da BEGÓNIA que se vê ao lado, essa sim, aquela que me tem dado provas de LONGA VIDA, pois já existia nesta casa, em Fareja, quando a adquiri, em 1984/85.
Em todo este tempo (e já lá vão muitos anos), só me tem pedido humildemente água da torneira (pouca) e luz solar (bastante). Vive, pois, à conta de água e luz, desde que seja num lugar abrigado.
Bem gostava que me fosse dada uma boa explicação botânica sobre este MILAGRE.
SEGUNDA PARTE
Uma das belíssimas, sonoras e vistosas composições poéticas de Luís Vaz de Camões é a que se reporta à ida de “Lianor” à fonte. Assim:
“Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
Luís de Camões”
Não sei quantas vezes, na vida, já li e declamei, sozinho, este poema. Comecei a digeri-lo quando deixei a aldeia, na serra, quando abandonei a lavoura e a pastorícia, digamos, quando deixei o patamar da (agri)cultura e, na cidade de Lourenço Marques, subi os degraus do edifício académico até assentar a planta dos pés, melhor a sola dos sapatois, no patamar do CURSO GERAL DOS LICEUS, antigo QUINTO ANO.
Chegado a esse patamar de «CULTURA», no cumprimento dos programas de PORTUGUÊS em vigor, obrigatório se me tornou ler e admirar, direi melhor, venerar, esta pérola de literatura e de vida (sempre liguei a poesia e a literatura à vida) toda ela com assetivos laivos de campo e de cidade, isto é, uma mistura perfeita de vida campesina e de vida urbana.
a) Do campo mostra-nos a “Lianor” que vai à fonte descalça, tal como faziam as moças da minha aldeia quando me criei, com a diferença de, em vez do “pote”, levarem o “caneco”, aquela vasilha de madeira saída das mãos de experimentado tanoeiro, profissão que, se ainda não se extinguiu, prestes está a apagar-se na barra cronológica da história.
b) De urbano vemos os jeitos, trejeitos e trajos de fidalguia, bem diferentes daqueles que, na minha aldeia, usava a minha avó materna “Lianor” (pois “Lianor” se dizia, no século XX, tal como Camões escrevia no século XVI), da minha madrinha Maria Lianor, sua filha e minha tia, e as demais “Lianores” que, descalças ou de tamanquinhas, «seguras», vestidas de chita e/ou burel, de lenço e rodilha na cabeça, mostravam a sua “fermosura” num jogo de equilíbrio, tente-não-caias", a manter o “caneco” aprumado e cheio de água em cima da cabeça, ao mesmo tempo que rompiam o trajeto irregular dos caminhos que separavam a fonte do lar, onde era necessário o precioso líquido, para os cozinhados e as limpezas. E quantas vezes, nessa postura de equilíbrio e formosura, paradas numa esquina a namorar com o rapaz que viria ou não a ser seu companheiro de vida, maldiziam o lusco-fusco que tinha pressa em separá-los e mandar cada qual para as suas camas com colchões de estopa cheios de colmo.
“Antigamente é que era bom”.
Não. Não assino tal afirmação.
A água transportada nos canecos para os lares destinava-se ao cozinhados, à higiene matinal e a matar a sede sem ter de se ir à fonte. Junto ao caneco estava sempre um pequeno copo de lata ou de alumínio disponível para isso.
Não havia sanitários e as necessidades físicas da vida eram feitas onde calhava: nas lojas do gado, nas hortas e nas matas. Mas na aldeia (tal como nas vilas, como vim a estudá-lo depois) ficaram conhecidos os QUELHOS e QUELHAS esses caminhos, veredas ou carreiros de pouco movimento e, por isso mesmo, procurados pelos habitantes, para ali, com algum recato, se aliviarem do que não lhes fazia falta. E quantas vezes, em bicos de pés, a procurarem um sítio onde pudessem fazê-lo. Tal era a fotografia de que não falam essas pessoas na sua atoarda de dizerem «antigamente é que era bom».
Valia, ao tempo, andarem nas ruas das aldeias e da vila, os suínos à solta e serem eles os «almeidas», os autênticos «agentes de limpeza», . sem quaisquer encargoas municipais. Pois. Isso mesmo, recuando na cronologia da história, os «porcos» desempenharam as funções de «agentes de limpeza».