O ENCONTRO
Insignificante átomo a viajar no infinito cosmos que integramos, quiseram os astros que eu, lá costa oriental da África, na xadrezada cidade de Lourenço Marques, cidade das acácias, tivesse um colega de liceu que, subindo à Universidade de Coimbra, se licenciasse em DIREITO e, optando pela MAGISTRATURA JUDICIAL terminasse a carreira como Meritíssimo Juiz Desembargador. O seu nome, com sua licença, é Pedro dos Santos Gonçalves Antunes.
Ele apresentou-me, posteriormente, um amigo seu, que meu amigo se tornou, Meritíssimo Juiz Conselheiro, Salvador da Costa, também ele já jubilado que professor foi, muitos anos, no CEJ.
Ora, o facto de os três termos saído das berças, digamos que, deixando para trás a nossa GASCONHA provinciana e subido na “vida a pulso”, eles no campo do DIREITO/JUSTIÇA e eu no campo da HISTÓRIA, levou-me a escrever um texto a que dei o título, “OS TRÊS MOSQUETEIROS”.
Mas, como no romance com esse título, tínhamos o absurdo matemático de «três serem quatro», faltava-me incluir no rol dos meus amigos mais um cidadão ligado a essa área de SABER (o DIREITO) e isso veio a acontecer por via do FACEBOOK, na página “LITERATURA E POESIA” aberta e administrada pelo PROFESSOR Amadeu Carvalho Homem, catedrático da Universidade de Coimbra, sempre congregador de vontades e saberes diversos, sempre PROFESSOR, mesmo depois de jubilado.
Referindo-me ao amigo que ultimamente juntei ao rol, amigos “virtuais”, ele transmontano e eu beirão, viemos à fala hoje mesmo, dia 11-12-2021, no RESTAURANTE FIM DE SÉCULO, em Castro Daire.
Foi ali mesmo onde tive a oportunidade de conhecer pessoalmente HERMENEGILDO BORGES, natural de Loivos, Trás-os-Montes, terra onde Miguel Torga situa os protagonistas de um dos seus “Novos Contos da Montanha”.
E ali tive o prazer de receber, também, como oferta, o seu livro com o título “VIDA, RAZÃO E JUSTIÇA” e subtítulo “RACIONALIDADE ARGUMENTATIVA NA MOTIVAÇÃO JUDICIÁRIA”, cujo miolo retém, em letra impressa, destinado a especialistas, a dissertação do seu DOUTORAMENTO em “CIÊNCIAS DA COMUNICÇÃO”, ramo “TEORIA DA COMUNICAÇÃO”.
E foi a COMUNICAR, ele de um lado da mesa e eu do outro, ele mais falante e eu mais ouvinte e observador que passámos um pedaço de tarde. Pudera, eu, fora as curtas mensagens trocadas por MESSENGER, pouco dele sabia. E ele tudo sabia de mim através dos TRILHOS SERRANOS.
E foi ali, assim, dizia eu, que a câmara fotográfica do meu telemóvel, nas mãos de uma jovem licenciada em DIREITO, empregada no RESTAURANTE, captou esse nosso encontro. É a foto que vemos logo na abertura (documento com ano, dia, hora e segundos, ao fundo no canto direito) um documento que fará fé em TRIBUNAL, ou qualquer outra instância de DIREITO/JUSTIÇA onde for necessário, caso venham a acusar-nos de estarmos em sítio diferente, pois nenhum de nós se arroga possuidor do dom da ubiquidade.
No decorrer da conversa sobre do livro, retive o brilho dos seus olhos, ufano por ter vencido mais uma etapa da sua vida académica e simultaneamente o brilho aguado desses olhos espelharem a mágoa de não ter falado com o seu pai, antes da sua morte. Sabendo-o doente prometeu que iria visitá-lo logo que entregasse a TESE DE DOUTORAMENTO. E entregou, mas no próprio dia da entrega foi informado do falecimento do pai. Assim, e dada essa coincidência, arrasta consigo dois sentimentos opostos: a alegria de ter vencido uma trabalhosa batalha profissional e o pesadelo de não ter dado uma palavrinha ao seu progenitor enquanto ele o podia chamar filho.
Hermenegildo Borges, professor que foi no CEJ e na Universidade Nova de Lisboa, deixou-me também fotocópia de uma palestra que fez na casa onde se formam os JUÍZES, em 29-06-2007, subordinada ao tema “RACIONALIDADE E EXPERIÊNCIA NA MOTIVAÇÃO JUDICIÁRIA”.
Mal chegado a minha casa, estendi-me no divã e, esticado ao comprido, li, de imediato, o texto por inteiro.
Sem preparação académica adequada, esbracejei com vontade e esforço no meio daquela erudição “técnico-jurídica”, até ao momento em que, nessa densa floresta se abriu uma clareira. Aí chegado, parei disse para mim: “alto lá e para o baile, esta aqui eu entendo”.
É que, algures, em tempos idos, num texto que publiquei no meu site TRILHOS SERRANOS, abordando as decisões judiciais proferidas num processo de que fui um dos AA e correu os seus trâmites no Tribunal Judicial de Castro Daire, no Circulo Judicial de Lamego e no Tribunal da Relação do Porto, eu escrevi algo que não andava muito longe da letra e do espírito que via ali escarrapachado, preto no branco, e que era o seguinte:
“Todo o magistrado sabe, à partida, que a decisão por si produzida, bem como as razões que a motivam, serão sempre potencialmente avaliadas quanto à consistência da sua fundamentação jurídica e quanto à racionalidade das ponderações por ele feitas, quanto à justeza e à coerência das justificações que ele der como fundamento da decisão. Saberá, em suma, que o auditório judiciário espera que a sua decisão seja conforme com o direito e a doutrina, revele um apurado bom senso e, no fundo, seja garante de segurança jurídica e de paz judiciária”.
Pois. Dito assim, tal qual, com a transparência do CELOFANE, eu, como elemento leigo do “auditório judiciário” voei, mais rápido que um falcão, até aos apontamentos críticos que deixei publicados nos meus TRILHOS SERRANOS, feitos após a sentença dada na Relação do Porto, transitada em julgado, nos quais teci algumas considerações sobre as decisões saídas do punho do Meritíssimo Juiz Desembargador e da Meritíssima Juíza do Circulo de Lamego, assim:
“O Meritíssimo Juiz relator mostrou-se muitíssimo conhecedor da realidade camponesa, quando ajuizou sobre a necessidade da servidão em causa, quando diz:
«Isto porque o acesso a partir da rua era necessário para permitir a entrada e saída, por exemplo de estrume (estamos a falar de material orgânico putrefacto e malcheiroso proveniente dos excrementos produzidos pelos animais domésticos, como vacas, ovelhas, burros, que não passa pelo interior das casas), bem como os produtos agrícolas aí gerados, sendo certo que poderia ser aproveitado para pasto de animais como vacas, ovelhas, cabras e burros ou cavalos, que não entram e saem pelo interior de espaços habitacionais».
Juízo ao qual aditei a minha opinião, assim:
“Quem sabe, sabe. E o saber, volvida sabedoria, não se cinge à letra deste ou daquele artigo legal. Envolve a vida real, a história, as gentes, os seus usos, costumes, a evolução humana. Eu diria mesmo, correndo o risco de errar, que este Meritíssimo Juiz, fez tarimba no campo, ou é do campo natural”.
Diferentemente procedi para com a decisão da Meritíssima Juíza do Tribunal do Círculo de Lamego, a propósito de ela ter chamado aos autos o assunto do “aqueduto”, do “rego”, da “levada” por onde passava a água para o quintal dos AA., assunto que não constava da p.i. e sobre o qual ela se pôs a discorrer e a decidir, como se na p.i. estivera. E assim escrevi eu:
“E posto isto, visto tudo isto, ouvido tudo isto, num só particípio inovador, «ouvisto» tudo isto, sentença transitada em julgado, é altura de me socorrer de dois preceitos legais:
1º - «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir».
2º - «Nulo é o acto que embora reúna os elementos necessários à sua existência, foi praticado com violação da lei (…) tanto o acto nulo como o anulável é considerado inválido».
Não cabe ao «sapateiro» estabelecer a conexão entre estes dois preceitos. Isso cabe aos técnicos de Direito, num ESTADO DE DIREITO, num Estado que não seja tão torto como a Levada de Fareja, aquela que, curva e contracurva, correndo em manilha aberta, em todo o seu percurso, se ramifica em «talhadoiros» e «regos», todos eles elevados à categoria de «aqueduto» no Código Civil, citado pela Magistrada, a mesma que na levada, regos, regueiras e talhadoiros não descortinou as «obras visíveis e permanentes» para decidir como decidiu, mesmo não sendo chamada a fazê-lo, pelos AA., em tal matéria.
Explicando melhor e finalmente: a Magistrada, embrenhada nos meandros da lei, reconhecendo que tal matéria, não tinha sido «formulada expressamente» pelos AA, entendeu, a arbítrio seu, refletir sobre ela, para concluir, logo depois, que essa mesma matéria, «tinha de soçobrar». Quer dizer, ela a fez nascer, ela lhe pôs fim. A criatura morreu às mãos da criadora”.
Dito isto por um leigo na matéria, foi reconfortante ler, anos depois, o assertivo texto de HERMENEGILDO BORGES, proferido na palesta feita na casa onde de formam os JUÍZES/AS.
E, para terminar, este apontamento, direi ainda que passei os olhos de relance pelo texto colocado na testada do livro, no qual o autor agradece a todos os especialistas e amigos que o ajudaram a produzir uma obra densa de 292 páginas.
Não vou aqui repeti-los, mas seria um “crime de lesa-Justiça” não transcrever o parágrafo com o qual ele remata os AGRADECIMENTOS. Assim:
“Por último, dedico este trabalho à Rosa Maria, ao André e à Joana, como singelo sinal de imensa gratidão que lhes devo, pela vida conjuntamente partilhada e pela dádiva incondicional do afeto. Sem eles este trabalho não teria sobrevivido”.
Assim mesmo, posto na testada do seu livro. O agradecimento e a gratidão aos membros da sua família. O que, semelhantemente, me transporta à testada do livro “MEMÓRIAS MINHAS”, editado em 2006, onde, também eu, deixo as imagens e o texto que propositadamente para aqui transpus. São os meus dois PRINCIPES, sentados na fronteira da Portela do Homem, no Gerês e a sua MÃE, claro.
Neste apontamento faço votos de que um dia, quando o pai já não puder chamar-lhes filhos, os seus olhos aguados não carreguem o pesadelo que vi nos olhos de Hermenegildo Borges, só porque as contracurvas da vida lhe tolheram o encontro com o seu pai, na última hora.