Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas SOUTOSA - AQUILINO RIBEIRO «QUANDO OS LOBOS UIVAM»
segunda, 15 novembro 2021 15:25

SOUTOSA - AQUILINO RIBEIRO «QUANDO OS LOBOS UIVAM»

Escrito por 

OS CINQUENTA ANOS COMEMORATIVOS DE  «QUANDO OS LOBOS UIVAM»

Cinquenta ano depois da publicação de «Quando os Lobos Uivam» realizou-se na aldeia de Soutosa, concelho de Moimenta da Beira, no dia 15 de Junho do corrente, junto da velha morada de Aquilino Ribeiro, atualmente património da Fundação com o seu nome uma cerimónia comemorativa da edição do livro citado.

1.JPG

Cinquenta anos depois da publicação de «Quando os lobos uivam» realizou-se na aldeia de Soutosa, concelho de Moimenta da Beira, no dia 15 de Junho do corrente, junto da velha moradia de Aquilino Ribeiro, atualmente património da Fundação com o seu nome, uma festa popular muito concorrida, organizada pela Federação Nacional dos Baldios (BALADI) e Confederação Nacional da Agricultura (CNA), cujos organizadores botaram palavra e não perderam a oportunidade para desferirem fortes ataques às políticas do Governo de José Sócrates, relativamente ao alto preço dos combustíveis e hipotética legislação que venha alterar o estatuto os baldios. E a propósito, no plinto do busto de Aquilino ficou cravejada uma placa de bronze onde figuram palavras extraídas do livro cujo aniversário ali se comemorava: «A serra foi dos serranos desde que o mundo é mundo. Herdada de pais para filhos, quem vier para no-la tirar connosco se há de haver».

Pode dizer-se que os diferentes oradores para fundamentarem as suas arengas lá tiveram de limpar o pó das obras de Aquilino, citá-lo a propósito, provando a intemporalidade dos juízos e da escrita do Mestre.

Cheguei cedo a Soutosa e, aproveitando o fato do portão estar aberto, passeei-me pelo «Parque Kruger» de Aquilino, que o mesmo é dizer pelo extenso espaço intramuros da velha moradia do escritor.

Olho vivo e ouvido atento, não me passaram despercebidos os murmúrios acanhados dos visitantes a contrastar com o assobio desinibido dos melros, que, irrequietos, esvoaçavam de tília em tília, castanheiro em castanheiro, estranhando a visita inesperada de tanta gente. Eles são, seguramente, os descendentes daqueles que, de batina preta e bico amarelo, o Mestre diz terem-se multiplicado ali depois dele ter publicado a ecológica e radical pragmática: «Aqui dentro na quinta não se faz mal aos bichos». (in «O Homem da Nave».

AQUILINO1A. - CópiaTal como eu, cirandavam pelo espaço outros forasteiros, lastimando o facto de não poderem visitar o interior da moradia. Um deles dizia, em voz calada, ao companheiro: «não podemos ir ali roubar um santo». Um gracejo certamente, mas isso me fez conjeturar sobre o que pensaria aquele sujeito da Casa de Aquilino. Algum museu de arte cristã? algum templo povoado de imagens, cada uma no seu altar, prontas a verem os crentes ajoelharem-se à sua frente a pedirem milagres? Em vez de querer «roubar um santo» porque não querer «roubar um livro»? já que a disposição para a ladroagem, segundo o próprio Mestre em «Os Avós dos Nossos Avós» corre no sangue dos portugueses  desde as rapinagens que Viriato fazia às tribos vizinhas?

AQUILNO4Não um livro, mas um santo. Ao fim e ao cabo a ideia que escapou do cérebro daquele forasteiro brincalhão e ignorante é a ideia que domina o arquétipo mental de todo o português por razões de cultura e catecismo. Ela bem pode assemelhar-se à ideia dos intelectuais e críticos que, com ares de santidade, bem contrária à personalidade do Mestre, não descansaram enquanto não meteram os seus restos mortais num túmulo da Igreja de Santa Engrácia, num túmulo semelhante às «salgadeiras dos Jerónimos em que jazem alguns grandes homens» (in «Um Escritor confessa-se», ali, onde Maria Benigna, no seu «Diário», agarrada ao seu amado,  confessa sentirem-se espiados um «antropopiteco de Cristo torcido no madeiro negro; deviam ver-nos e instigar-nos, adejando, é de crer, acima dos seus cofres funerários, os manes de Garret e João de Deus, poetas do amor; E de facto beijámo-nos sofregamente como nunca e nossas carnes se torceram dolorosas e insatisfeitas. Da bela catedral tão feminina nos colunelos, nos silhares de odalisca, na graça alada dos arcos, deve ter-se-nos propagado o frémito lúbrico. Deve, porque a minha alma saiu do templo ouvindo a mais voluptuosa melodia» (in «Maria Benigna»).

Ali, naquele templo! Ali, em redor daquelas «salgadeiras», onde tudo recendia a incenso e a mirra, por algum tempo recendeu, levado pela pena de Aquilino, um intenso odor a amor e sexo. Ali, naquele templo, em Soutosa, roubar um «santo de pau carunchoso», «um santo feito de pau», »um santo de pau feito!».

NOTA: texto publicado no velho site, migrado, hoje mesmo, para este meu novo espaço online.

Ler 830 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.