Trilhos Serranos

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quarta, 20 outubro 2021 18:11

PEGADAS MINHAS

Escrito por 

LIVRO NOVO COM TEXTOS VELHOS 

Estamos em 2021. E nestes tempos de PANDEMIA, que se pensa estar já ultrapassada, mas cujas sequelas físicas e mentais todos ignoramos efetivamente, quero deixar, nesta minha página, o esboço da CAPA e CONTRACAPA do livro que tenho na forja por sugestão do meu filho mais velho - NURO, e anuência tácita do mais novo - VALTER.

 LIVRO NOVO COM TEXTOS VELHOS 

 

Para aquém dos tempos, dedico este livro a todos os que, sem lhes ter sido pedido, por gosto, simpatia  ou generosidade, me estenderam a mão nas puídas e agrestes escaleiras da vida.

PRIMEIRA PARTE

CAPA-PEGADASPrestes a dar entrada no “prelo” (com o anacrónico significado que este termo arrasta consigo) para COMPOSIÇÃO e IMPRESSÃO, conhecedor que sou, por vezo, das linhas com que, na atualidade, se cose um livro (colado), eu passaria a perna ao mais badalado profeta bíblico, ao sempre cabalístico e venerado Nostradamo, ao sempre lembrado Bandarra ou ao esquecido Zandinga, se dissesse, ao certo, quando o “menino”, sujeito às voltas e trambolhões que o esperam no ventre dos computadores e da tipografia, virá à luz do mundo, sem envergonhar nenhum dos especialistas que, no seu atribulado percurso de gestação, intervieram na moldagem do seu ROSTO e da sua ALMA.

Eis o texto  e contracapa, já á a seguir: 

CONTRACAPA-PEGADAS«O miolo deste livro é constituído por um conjunto de textos que publiquei, nos TRILHOS SERRANOS e nas REDES SOCIAIS, ao longo de vários anos. Fi-lo por sugestão do meu filho mais velho, Nuro, e anuência tácita do mais novo, Valter.

 Entenderam eles que seria de bom sizo repescá-los desse “mare magnum” digital da Internet e dar-lhe formato analógico por forma a melhor facilitar a sua leitura e preservação, ainda que com os ajustes necessários, que não a cronologia da publicação.   

 Foi o que fiz. Só tive o trabalho de os coligir e dar uma sequência lógica às PEGADAS que ficaram marcadas na poeira do tempo e do espaço por onde gastei a vida, solitário ou acompanhado. Percurso que, com determinação, inclui aspetos biográficos, história, literatura, poesia, relações sociais, amizades, amores perdidos e amores achados, desamores,  despedidas, chegadas, humores, risos e lágrimas, vontades e desalentos.

 Laborioso trabalho do lenhador que, de podão em punho, fez questão de abrir trilhos e clareiras na FLORESTA DAS LETRAS, do PENSAMENTO, do ENTENDIMENTO DO MUNDO PLURAL – étnico, social, económico, político, racial e religioso -    sempre preocupado em não envergonhar as instituições e os professores que o formaram e também não desiludir os seus colegas, os seus pais, irmãos, filhos e demais família, incluindo os seus antigos COMPANHEIROS nos bancos dos liceus e das universidades. Aqueles que perdeu para sempre, que nunca mais viu, desaparecidos que foram nas encruzilhadas da vida.

 O miolo inclui, ainda, alguns textos escritos e palavras ditas por cidadãos generosos de reconhecido mérito académico, político e cívico sobre a minha obra publicada. As mesmas que dão corpo ao meu «curriculum vitae» disponível online, juntamente com outras que, somente por força de não tornarem este capítulo demasiado extenso (só por isso), não foram incluídas.

 E também inclui fotos de alguns «galardões» e «diplomas» que me foram atribuídos por instituições oficiais, em cerimónias públicas, por mim jamais solicitados. São, enfim, as minhas públicas PEGADAS NO MUNDO, distintas de qualquer TATUAGEM colada ao UMBIGO para satisfação do EGO e ALTER EGO que cada um de nós carrega consigo desde a nascença, por força da nossa natureza e humanidade».

SEGUNDA PARTE

 Nos textos selecionados estão os três seguintes  que aqui se repõem, mercê, não do significativo número de LEITURAS, GOSTOS e COMENTÁRIOS que tiveram nas REDES SOCIAIS, pois outros tiveram muito mais, mas sim (os primeiros dois), devido ao realismo impressivo que retratam, documentos vividos que, sendo do passado continua a ser do presente, com os protagonistas que, por esse mundo além, “vão calando” e “não comendo”, nem escrevendo. Eu o vivi. Eu o sinto. Eu o escrevo.

1 - POBREZA

No dia 8 de Outubro deste ano de 2012 nasceu o meu netinho Guilherme. Ora um avô que passou a vida a ensinar, a investigar e a divulgar história, não podia deixar de ficar orgulhoso pelo meu filho ter dado ao seu filho o nome de uma figura lendária conhecida pela sua insubmissão à vénia, pela sua recusa em vergar a cerviz. 

besta-1Na mesma semana do seu nascimento as TVs comunicaram ao mundo a iniciativa da Cruz Vermelha espanhola fazendo um peditório para acorrer aos mais necessitados. A imagem marcante e sugestiva é aquela do frigorífico vazio, onde resta apenas um ovo que o pai, rosto carregado, triste e silencioso, mas eloquentemente expressivo, distribui pelos filhos sentados à mesa. 

Essa imagem, conjugada com o nascimento do meu neto e o mundo que o espera, fez-me regressar aos meus 10/11 anos de idade. Já passaram tantos anos e, numa altura em que o meu currículo de vida já averba quilómetros de escrita, nunca pensei vir a acrescentar-lhe mais uns metros com este episódio distante. 

Eram tempos de fins de guerra, tempos de necessidades, de fome, de racionamentos. Todas as manhãs, eu abria as portas das lojas do gado, ovelhas e cabras, e arrancava com elas para os montes levando no bornal um «púcaro de alumínio».

 Cabras-2004cAo meio da manhã, que nunca mais chegava, era um regalo: mugia uma das cabras para o «púcaro» bebia o leite quentinho e espumoso, passava a língua pelos lábios e deles mesmos, ainda cheios de espuma leitosa, unidos em sopro, arrancava as notas da flauta natural com que nasci. Passava o resto da manhã a assobiar músicas inventadas, espontâneas, em disputa com os passarinhos, músicas jamais ouvidas e registadas em pauta (qual pauta, qual carapuça, eu sabia lá o que era uma pauta?) e a assobiar regressava a casa, onde a minha mãe me esperava ansiosamente para me aconchegar o estômago com uma espécie de hóstia fritada na sertã. 

Uma mancheia de farinha de milho «arreloado», amassada com água, atirada para dentro da sertã ao lume, saía dali um «jantar e peras». Na aldeia a refeição do meio-dia chamava-se jantar e a da noite chamava-se ceia. A minha mãe, rosto semelhante ao do pai espanhol que vi agora na televisão, não se ficava calada. Da sua boca, face ao meu olhar suplicante,  saíam sempre estas lapidares palavras: «Abílio, não tenho mais nada para te dar!»

Disse intencionalmente «palavras lapidares» e disse-o porque lapidares foram mesmo. Elas não foram escritas numa qualquer lápide de mármore, mas na alma de um filho, criança ainda, que jamais esqueceu a tristeza e a angústia da sua mãe, privada de poder dar-lhe o que ela entendia ser seu dever e obrigação de mãe. Foram palavras que toda a vida me acompanharam e me serviram de aguilhão para que, no que de mim dependesse, não tivesse de repeti-las aos meus filhos, se os tivesse. 

 Tive e nunca repeti. Nunca foi necessário. Mas convém dizer que por força de ganhar a vida, aos 20 anos abandonei a aldeia, sacrifiquei afetos de pessoas e lugares, atravessei o Atlântico, cheguei ao Índico, venci na vida e, após 17 anos a respirar o ar dos trópicos e a sofrer as febres do paludismo, voltei às origens empurrado pela «descolonização».

Impunha-se, lá como cá, recomeçar tudo de novo. Trabalho, estudo, trabalho, estudo, estudo e mais trabalho. Muitas férias ficaram por gozar, muitas viagens por fazer, muitas farras recusadas. Impunha-se recompor a vida e proporcionar aos dois filhos, que entretanto nasceram, o que era dever dos pais dar-lhes. E foi assim que, com os afetos de pai e mãe, cresceram. Nada de essencial à vida de crianças lhes faltou. Amor, afetos e afagos muitos. Barriguinha cheia sempre. E brinquedos q.b.

 Estudaram, formaram-se, tornaram-se homens, educados no binónio  liberdade e responsabilidade.  Cada um deles me recompensou com uma neta, o Valter com a Mafalda e o Nuro com a Marta. A elas se junta agora o Guilherme irmão da Mafalda

 BESTAE posso garantir que, ao criá-los, nunca sofri a dor, o coração oprimido, que adivinho ter sofrido e sentido a minha mãe nas circunstâncias acima referidas. E espero que eles não venham também, em relação à sua prole, a passar pelo que passou a sua avó paterna, Gabrielina

Mas da altura, lembro-me também a minha mãe, sua avó, dizer que «era um milagre» eu sair em jejum de casa com o gado e a casa regressar assobiando, feliz e contente, totalmente alheio e desligado das preocupações e cuidados que a afligiam. E para bem se entenderem tais angústias e preocupações não devo omitir que eu era apenas uma das sete bocas que ela pusera no mundo, bocas, todas elas, à espera de mastigarem alguma coisa que milagrosamentente ela teria de desencantar para enganar a fome a todos nós acometia. Devo dizer também, em boa verdade, que aquela hóstia de milho, frita na sertã,  era para mim um manjar. E que me sabia bem trincá-la, pois, fosse pela fome, fosse pela massa de que era feita, ela não se agarrava ao céu-da-boca como acontecia com a hóstia de pão ázimo nos domingos de comunhão.

Nessa altura ensinavam-nos na catequese que a hóstia não se podia «mastigar» ou «trincar» e eu bem me lembro das voltas que a língua dava na boca para evitar que aquela rodela de farinha sem sal chegasse aos dentes. Se tal acontecesse era um pecado que teríamos de ir confessar de joelhos aos pés do padre. E naquela minha idade, alma infantil e ingénua, para mim era mais incómodo a hóstia colar-se ao palato, do que a miséria e a fome que sentiam as crianças e adultos na Europa, daí andar sempre a assobiar, jeito que me ficou para toda a vida. Ainda hoje, passeando pela serra, à caça ou a fazer seja o que for, dou por mim a assobiar com a mesma naturalidade que o passarinho, poisado no ramo da árvore, lança o seu gorjeio.  

 Lembrar tudo isto, no tempo em que me nasceu um netinho, o GUILHERME, numa altura em que Portugal, a Europa e o mundo chegaram ao ponto dos pais não poderem criar os filhos com o mínimo de dignidade humana, não poderem dar-lhes sequer a alimentação necessária,  ter uma vida condigna, creio ser a memória a acicatar-me o engenho para esgrimir os argumentos históricos de insubmissão, ressuscitar o velho herói lendário, botar a mão à  «besta», retesar as cordas, apontar o alvo, baixar a pontaria, deixar a maçã intacta e, de propósito, vazar com a flecha, todas as cabeças da besta, da hidra que conduziram o mundo a este estado de coisas: para uns tantos (poucos) a lauta mesa posta recheada de iguarias e de flores. Para outros (muitos) um só ovo dentro de um frigorífico a dividir pela a família inteira, sem um raminho de salsa. BASTA! Insubmissos, digamos BASTA! Para que os pais e mães de todo o mundo nunca digam aos seus filhos o que a minha mãe angustiada, numa ignota aldeia do globo, me disse um dia, ao servir-me aquela hóstia frita de milho, olhando os meus olhos suplicantes: «Abílio, não tenho mais nada que te dar».

2 – POBREZA

PRATO COSTASConstatei pelas reações públicas e privadas à forma e ao conteúdo do texto que aqui publiquei anteriormente, relacionado com um episódio da minha infância – a pobreza - que neste «mundo cão», neste mundo em que o «ter» se sobrepõe ao «ser», ainda há pessoas com sensibilidade e empatia bastantes para se porem no lugar de outrem e chamar a si a dor do coração partido e impotente da minha mãe, face às dificuldades que os meus pais e tantos outros, por esse mundo fora, tinham em alimentarem a prole, nesses tempos do pós guerra.

Foram tempos maus que só vividos e sentidos podem ser contados. Mas desse tempo me lembro de outro episódio que, ao contrário do primeiro, me custou a escrevê-lo pela carga emocional que comportava, este o tenho referido mil vezes a título de risota e galhofa quando, na serra da Nave, eu e o meu primo Manuel Carvalho Soares, comparsa de caçada, há um bom par de anos, colocámos as espingardas no descanso e nos sentamos para o almoço.

Do bornal, constam geralmente iguarias como o presunto e mais peças de fumeiro, juntamente com toda a gama de enlatados que a indústria atual põe no mercado, desde o polvo às lulas e latas de sardinha.

SARDINHAS - CópiaPois bem e voltando à vaca fria, nesses meus tais 10/11 anos de idade, regressava eu com as cabras e ovelhas das bandas do Rio Mau e, na Touça, depois de passar aquele caminho fundo que liga ao alto do Santo António, deparei com um grupo de caçadores sentados nuns penedos, a almoçar. Não eram de Cujó. Esses eu os conhecia todos e os cães perdigueiros, bem tratados, nédios de pelo, distinguiam-se claramente dos cães de Cujó, todos coelheiros e quase sempre de costelas vincadas na pele, prontas a serem contadas à vista por qualquer aluno de anatomia, dispensado ele o tato em tal tarefa. Mas, como ia dizendo, ao passar perto deles, descalço e roto, não sei se monco amarelo a pingar do nariz, um deles pergunta-me de supetão:

- Ó Menino, tens fome?

- Não senhor, respondi-lhe sem hesitar.

Mas um adulto, vindo da cidade do Porto (vim a sabê-lo mais tarde), bastava olhar para a minha triste figura e ver que só a vergonha de dizer sim, me levou a dizer não.

- Está bem, mas olha, toma lá esta lata de sardinha e quando tiveres fome, abre-a.

Deu-me a lata de sardinha acompanhada de uma chave. Não me lembro se agradeci ou não. Sei é que a pouca distância do grupo, pus-me a mirar a lata e a vareta que numa das extremidades imitava uma chave em triângulo e na outra tinha uma ranhura como o buraco de uma agulha das grandes. Para que serviria aquilo? Mirando e andando, ansioso por descobrir como chegar ao produto enlatado, os olhos mais atentos ao objeto do que ao caminho, acabei por dar um pontapé numa pedra e o resultado foi abrir um golpe no dedo grande do pé, pele levantada em alçapão, e o sangue a fazer bolinhas na poeira do caminho. Maldita lata! E assim, a viver um momento paradoxal, ansioso por comer o petisco e amaldiçoando a lata que a continha, cheguei à capela de Santo António. Sentei-me, encostei o alçapão da pele ao dedo, comprimi-o por algum tempo e aguardei que ele ficasse onde devia. Depois voltei à lata. Chave tinha eu, mas olho da fechadura é que não havia. E mira daqui, mira dali, lá descobri uma pequenina língua triangular a descer junto ao corpo da lata. Endireitei-a e certifiquei-me que a ranhura da chave encaixava nela perfeitamente.

Encaixei-a. E agora? Eu nunca tinha aberto uma lata de sardinha e ignorava o gesto simples de rodar a chave para a tampa começar a abrir e a mostrar o produto. E estava nesse palpos-de-aranha quando me lembrei da palavra «milagre» que minha mãe dizia por ver-me sempre a assobiar de estômago vazio. Milagre? Milagres fazem-no os santos e eu estava encostado à ermida de Santo António. Pedi-lhe o milagre de me dizer como abrir aquela «caixão de lata». E fez luz.

PRATO-1-FRENTEComecei a rodar a chave, não sem esforço, pois, por azar meu, aquela era uma das latas de tampa bem soldada. Mas, com esforço, lá consegui chegar às sardinhas. Eureka! (sabia lá eu o que significava esta palavra?) E ali mesmo, no alto do Santo António, a ver Cujó, regalado a olhar para a povoação que nem um rei a olhar para o seu reino, esvaziei a lata, lambi-a, fiquei todo lambuzado, pois nem o óleo desperdicei. Depois prossegui o regresso a casa, sempre a assobiar, atrás das ovelhas e das cabras… tlim…tlim…de campainhas ao pescoço. A minha mãe, deve ter notado a diferença. Eu não fui tão sôfrego a mastigar a hóstia de milho frita na sertã e, antes que ela me perguntasse se estava doente, contei-lhe o sucedido.

-Ainda há gente boa no mundo, Abílio, gente boa, um milagre.

Não lhe contei foi o pontapé que dei na pedra e o rasgo na pele resultante disso. Nem valia a pena. Por milagre o alçapão da pele já estava colado, já não havia sangue e eu sentia ali apenas um formigueiro sem dor nem incómodo.

Mas formigueiro, dor e incómodo sinto hoje e muito, face aos tempos que correm. E em vez de uma chave para abrir uma lata de conserva, apetece-me ter forma e força bastante para fechar a «caixa de Pandora» e levar à forca aqueles que a destaparam. Ainda que saiba que, lá no fundo dela, resta a Esperança

TERCEIRA PARTE

 O terceiro texto incluído no livro toma aqui assento somente porque, sendo uma figura sem rosto, conhecida, sentida, vivida e cheirada por toda a gente, se tem “escapado”, melhor dito, tem escapado, sabe-se lá porquê, a estudos, ensaios e símiles, assinados por “escribas” encartados, merecendo, por isso que, de podão em punho, este simples lenhador da floresta das letras abrisse uma clareira de conhecimento escrito em torno dela, essa “triste figura” que, fruto da natureza, persiste naturalmente em viver e lutar contra as normas que socialmente, nos meios “civilizados”, o condenam e estrangulam por ser simultaneamente um alívio e um incómodo.

O PEIDO, A POLÍTICA, A JUSTIÇA E OS MEDIA

Ansioso de informação, ávido em compreender este meu país e as suas gentes, abanquei frente ao televisor e aguentei horas seguidas a ver e ouvir os interrogatórios sobre o caso BES (canal 219) e também os ESPECIAIS do CANAL 8 a esmiuçar as contas do AMIGO de SÓCRATES e os empréstimos que ele lhe fez.

CANELA-1Depois de tanto aguentar e de ler, ouvir e ver ali o meu país, comecei a sentir náuseas, primeiro, uma espécie de vómitos, logo seguidos de uma flatulência intestinal que, com receio de levantar voo como um balão e bater com a cabeça no teto, resolvi AREJAR (fixem bem o verbo), não a ver o CANAL 4 (casa dos segredos) onde me perderia no paradoxo irresolúvel de ouvir professores universitários dizerem que os alunos chegam à Universidade sem saberem ler e escrever e os políticos a chorarem a perda da "geração mais qualificada" de todos os tempos.

Assim como assim, para AREJAR, dizia eu, deambulei, ao acaso, pelas páginas do FACEBOOK. E vejam bem a feliz coincidência ou o meu fedorento azar: caí no PEQUENO/GRANDE vídeo que partilhei neste meu mural a mostrar uma jovem a aliviar-se dos gases intestinais enquanto joga no computador e a consolar-se mais com o PUM...PUM...do que com os resultados do jogo a correr no monitor.

Apesar de ser um vídeo que contabiliza milhões de visitas, foram poucos os meus amigos facebookianos que se mostraram agradados com ele. Muito poucos lhe colaram o seu "GOSTO", o que muito estranhei, face aos tempos que correm, tão propício a MERDAS, a analogias, comparações e outras figuras de estilo económico, literário, político e musical.

Ora como o FACEBOOK É UMA LIÇÃO e eu estou sempre a aprender VENDO, OUVINDO E LENDO o que nele se proclama e/ou silencia, a primeira coisa que me ocorre dizer é que não duvido que todos esses meus amigos, ainda que o tenham visto, fingiram ignorá-lo,  mesmo que ele mais não mostre senão a coisa mais natural do mundo. Eles, que se peidam como toda a gente, não ousaram associar o seu nome à CORAGEM E NATURALIDADE com que aquela moça (por sinal bem apetitosa) se ALIVIAVA do ar incómodo que lhe transtornava o tempo de lazer. E isso me fez lembrar aquela pergunta de algibeira que corria entre os estudantes de MEDICINA, quando o MÉDICO PROFESSOR, de formação marxista, lhes pedia para darem a definição de PEIDO. Todos ficavam embasbacados, sem resposta, até o professor lhes ensinar que "era o grito de libertação do ar oprimido". E lembrei-me também do significado que lhe davam os ADULTOS da minha infância quando a destroncar uma árvore ou a deslocar um penedo agarrado ao solo, puxa daqui, tenta dali, vira para acolá, diziam com a maior das naturalidades: "já deu o peido-mestre", significando com isso que o problema estava resolvido.

Face a esta realidade falada e sonora do quotidiano e ao comportamento silencioso dos meus amigos, resolvi elaborar um texto sobre o PEIDO, indistintamente de ele ser feminino ou masculino. É o que estou a fazer, acrescentando: tirante as anedotas atribuídas a Bocage e abordagens brejeiras disponíveis na Internet, não conheço muitos intelectuais que se tenham debruçado sobre tão INCÓMODA e MAL CHEIROSA figura, mas o certo é que o PEIDO mais não é do que a coisa mais natural do mundo vivo, uma reação orgânica saudável, um consolador alívio para quem se peida.

E há peidos de toda a maneira e feitio. Diferentes no tom, no som e no cheiro. Há aqueles que são redondos inodoros como ovos sem casca, PUM e já está. Há secos e molhados, fedorentos, uns  sonoros a imitar morteiros em dias de romaria e missa cantada, por alturas de "toque a Santos" PUM, PUM, PUM e outros repartidos, fragmentados, TRU...TRU...TUTUTU,  tipo foguetório miúdo, sinal de sardinheiro que chegou às aldeias com peixe fresco. Há também os que imitam o assobio do marinheiro aninhado na palma da mão, som regulado com a abertura dos dedos  viiiiiiiuuuuuuviiiiiuuuum. E os "peidos rasgados" cuja sonoridade faz lembrar o gesto do comerciante de panos que, começando o corte da peça com a tesoura, acaba por separar as duas partes trrrrrtrrrrrrrr, à força de pulso, após o que entrega a parte vendida ao cliente e enrolara a outra para arrumar na prateleira. E há também aqueles que, recusando-se a deixar o ninho quentinho onde nasceram, se põem a brincar nas curvas e contracurvas das tripas, rugindo como trovoada distante e fazendo torcer de cólicas o seu hospedeiro. Muitos desses cobardolas só desaparecem à força da farmacopeia científica ou artesanal, desde os comprimidos mais bem estudados em laboratório específico, aos chás caseiros, herança da sabedoria dos nossos antepassados pré-históricos.

 abílio-pena - reduzDescrever todos os peidos nas suas variantes coloridas, sonoras e malcheirosas é tarefa impossível. Mas direi ainda que a par de uns sonoros, tonitruantes, carregados de personalidade, inteiros como bárbaros, sem medo de enfrentarem o mundo, outros há, cobardolas, tímidos e silenciosos, envergonhados, que só se dá por eles quando são denunciados pelas pituitárias, sentinelas sempre atentas ao meio ambiente, poluído ou purificado. São os "peidos descidos à corda",  como dizia um jovem da minha terra quando, numa roda de amigos decidia  entre ficar incomodado ou incomodar os outros. Decidia sempre pela segunda hipótese.

E creio que chega. Para quê desenvolver mais esta narrativa cujo protagonista toda a gente conhece? Toda a gente, repito. Mesmo assim aqui vos deixo, meus amigos e amigas, este meu alívio intelectual, mesmo que nos meios intelectuais e finos, de esmerada e decorosa educação,  corra o risco de ser comparado a um alívio intestinal. Não me importa. Pensado, dito e feito, vou largar o Ipad e  pegar no comando da TV para, mais aliviado mas desgostoso, saltitar entre o CANAL 219, o CANAL 8 ou o CANAL 4. Por eles passa o meu país, neste Dezembro de 2014.

PUM...PUM...PUM.. 

Nota: Ver também o vídeo no Youtube onde se declama o poema «Linha Reta» de Fernando Pessoa.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.