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quinta, 23 setembro 2021 16:57

O PAPA

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O PAPA

21-05-2005 – 19:47:18

Passado que vai algum tempo sobre a eleição do novo Papa, o que mais se poderá dizer sobre o assunto, ouvidas que foram as palavras sábias de tantos e tão inspirados eclesiásticos e jornalistas especializados em questões religiosos, destacados em Roma ou com assento nos media portugueses?

 Após a saída do fumo branco da chaminé da Capela Sistina, o locutor de serviço de uma das nossas televisões avançou o nome de «Benedito XVI», para, pouco depois, dizer que, afinal, era Bento XVI e não Benedito.

            Seguiu-se uma caterva de interpretações acerca da escolha do nome, Bento. Uns, associavam-no ao Papa Bento XV, outros a S. Bento, «patrono da Europa» e Marcelo Rebelo de Sousa, nas «Escolhas de Marcelo» somou-lhe Bento XIV

 Assim mesmo. Bento para cá e Bento para lá, tudo ficou explicado. Resta dizer que «L’Observatore Romano», jornal oficial do Vaticano, registou em latim: «Habemus Papam Josephus Ratzinger qui sibi nomen imposuit Benedictum XVI», seguramente o texto que levou o locutor da nossa  televisão, em cima da hora, a falar de Benedito XVI e, só depois, corrigir para Bento.

Pois bem, todos os comentadores disseram o óbvio. Referiram e compararam atitudes, comportamentos, anseios. Só que, a eleição do Papa, historicamente ligada à «inspiração do Espírito Santo», só que, numa Casa, onde tudo se põe nas mãos de Deus, «o homem faz, porque Deus quer», «o homem inventa, porque Deus o dotou dessa capacidade», só que,  num Presépio, de mãos postas, vocacionado para gerir segredos e mistérios, é legítimo questionar interpretações tão terrenas, desligadas totalmente da «inspiração divina» no que toda à escolha do nome do Papa, à semelhança do que se aplica à sua eleição. E, em todas as explicações avançadas, vários sinais misteriosos foram descurados, por tão respeitáveis e inspiradas pessoas.

            Ora, quem esteve atento, quem leu e ouviu, os comentários que se fizeram antes da eleição do Papa e fixou as tendências manifestadas por alguns comentadores, deve lembrar-se que as opiniões se dividiam: a vanguarda da Igreja Católica, atendendo aos tempos que correm e à necessidade da Igreja se abrir e renovar, desejava que fosse eleito um Papa oriundo do Terceiro Mundo; outros, um Papa de «transição» com perfil adequado a evitar convulsões desnecessárias na sucessão de João Paulo II. Outros, indiferentes à tradicional afirmação «quem entra papa, sai cardeal», diziam que o cardeal Ratzinger seria o sucessor, dada a garantia de votos que tinha à partida. E veio a confirmar-se que estes tinham razão. Ratzinger é o novo Papa, mas não sem que a mão da Providência interferisse na vontade dos eleitores, disseram eles, fiéis e crentes, e,  também, na vontade dele próprio, quanto à escolha nome, digo eu, pecador militante não bafejado pelo dom da fé.

castro daire - S. Benedito-RedzOs sinais foram evidentes, mas descurados por eles, não por mim. E assim foi que logo após a morte de João Paulo II, Ratzinger vestiu-se de negro e, de camisola negra vestida sob as vestes papais, como símbolo da humildade, apareceu na «janela de S. Pedro», coisa nunca vista antes. Outro sinal misterioso foi a cor do fumo, que, insistentemente, saiu da chaminé da Capela Sistina. Oscilando sempre entre o negro, o cinzento e o branco, este facto, depois atribuído à velhice da salamandra, levava a praça de S. Pedro a interrogar-se de cada vez que fumegava: «é preto ou branco»? E, confirmada a eleição, soletrou-se, em coro, o nome de «Be-ne-de-to, Be-ne-de-to, Be-ne-de-to», eco do nome que, Ratzinger, após lhe terem perguntado: «aceitas a tua eleição canónica para Sumo Pontífice? Como queres ser chamado?» proferiu, sem papas na língua: Benedictum!

 

Dois sinais misteriosos, estes, ligados ao preto? preto do luto, preto do fumo - conduzem, pela mão do Espírito Santo, ao africano Benedictum, santo que viveu no século XVI, cujos ascendentes escravos foram originários da Etiópia. De modo que, por inspiração divina, «Benedictum» de seu nome e «XVI» do seu século, resultou Benedictum XVI, dois em um, único e verdadeiro, simultaneamente branco e negro, a contento dos que desejavam um Papa terceiro-mundista, negro que fosse, e os que desejavam que continuasse a ser branco e europeu. Um milagre! Um dom de Deus! Branco de sua natureza, negro de seu nome, o primeiro sinal de paz e conciliação entre a família cristã estava dado. E aqui se colam as palavras e intenções de Bento XVI quando disse colocar-se «ao serviço do grande bem da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos, porque o grande bem da paz é sobretudo um dom de Deus, que temos de defender e construir entre todos».

Acreditem! Acreditem! Pois eu, que não sou de acreditar em milagres, nem, tão pouco, na inspiração divina, em verdade vos digo que chego ao ridículo de  perguntar aos meus botões quem me inspirou a mim próprio, quem me tornou vidente e interprete destes e de outros misteriosos sinais, quem me guiou, há anos,  até S. Benedito, quem me conduziu, há anos, à leitura do Flos Santctorum, quem me empurrou, há anos, para os trilhos do incógnito e do inaudito, quem, neste regalo,  me iluminou, agora, o pensamento para, de uma forma tão clara e esclarecida, dar nome e rosto a este texto, sem receio de publicá-lo.

Um texto que, para ficar completo e o leitor não pensar que é especulação minha, sujeita a anátemas ou excomunhão, não pode dispensar alguns dados biográficos de S. Benedito, o «santo negro» também conhecido por «o mouro».  Vamos a isso e, logo depois, voltaremos ao Papa e a uma pequena aldeia situada nos arredores do Sátão.

A Net dá-nos informação abundante sobre S. Benedito. E no Brasil, oh, oh! Mas eu vou socorrer-me  do insuspeito Flos Sanctorum e respigar dele os excertos que se seguem:

«Nasceu o preclaríssimo preto e milagrosíssimo S. Benedicto, ou Bento (Benedicto, na língua portuguesa é propriamente Bento), no reino da Sicília, em um lugar chamado Sanfratelo, em que seus pais também nasceram, posto que os avós tinham ido da Etiópia, conquista de Portugal, donde lhe vem esta casta de gente, que ele reparte por muitas terras da Europa. Não foi filho de ilustres pais, mas de pretos mui tostados, e sua mãe (...) foi uma preta escrava  de um cavalheiro chamado João Lanza, e que assim o filho, seguindo a condição da sua mãe, nasceu preto e escravo» que depois recebeu carta de alforria, por ser «inclinado às coisas da virtude e do serviço de Deus».

 De Sanfratelo passou para Mancusa e no caminho, chegando-se a ele uma «enferma que sem alguma esperança de remédio humano padecia de terríveis dores de um cancro que lhe comia o peito. E instando com Benedito que sobre ela fizesse o sinal da cruz» ele assim fez e «repentinamente ficou a mulher livre e convalescida daquele tormento».

Era o início de um rosário interminável de milagres. Bastava o seu auxílio e «os cegos voltavam com vista, os surdos  com ouvidos, os aleijados com pernas, os desconsolados e aflitos com alívios em suas mágoas, enfim um menino morto saiu das suas mãos com vida».

 E mais adiante, referindo-se aos pouca preocupação que tinha com o corpo cuidando mais da alma:

«(...) e tão pouca estimação fazia da própria pessoa que nas abas do hábito juntava o lixo que tirava dos dormitórios. Em uma ocasião o encontrou deste modo o viçe-rei daquele reino que o ia visitar, e perguntando-lhe que trazia nas abas, lhe mostrou flores, nas quais se havia transformado o lixo que nelas tinha».

 O milagre do conteúdo da abada se transformar em flores, todos nós o conhecemos desde pequeninos. Lembra-se, leitor? Pelos vistos os fazedores de milagres e de santos, nem sempre estão inspirados ou, então, à falta de originalidade e de imaginação, copiam o dito e o feito, pois, nas comunidades analfabetas, tanto faz. Ninguém lê, ninguém coteja, ninguém critica.

Os seus milagres e a sua vida exemplar foi razão para a conversão de muitos infiéis «principalmente dos índios, cujas ânsias remunerou o Céu, porque depois da sua morte, com os seus retratos e milagres se reduziram e converteram muitos».

S.BENEDITO AZEITE - CópiaIluminado por Deus «recebeu a sabedoria, sendo oráculo nas teologias, mística e eclesiástica. Todos os que tinham dúvidas em pontos difíceis, a ele recorriam e voltavam satisfeitos com as suas respostas (...) não sabia ler, nem escrever, para que notoriamente se visse qual era a fonte e origem desta erudição eminente (...) entregou ao Senhor o seu cândido espírito em 4 de Abril, terça feira, segunda oitava da páscoa da ressurreição do ano de 1589, tendo sessenta e cinco anos de idade e empregado quarenta no serviço do Senhor, assim no estado de ermitão, como no de frade observante».

 Face à vida que levou e aos milagres que fez,  brevemente «as suas imagens foram colocadas nos altares, não só naquele reino da Sicília, mas por toda a Europa e já no ano de 1610 se tinha estendido até à América».

Até à América e não só. Também até a uma pequena aldeia situada às portas do Sátão, sita no concelho de Viseu, chamada Casal de Esporão, freguesia de S. Pedro de France.

De facto, nessa aldeia, a encimar uma das entradas da «Quinta de S. Benedito», metida num nicho, está a imagem de um santo negro. Desde quando? Desde sempre, respondem os moradores e devotos. Mas, é bem possível que essa imagem tenha feito parte da bagagem de um «brasileiro de torna-viagem» que, no século XIX, aproveitando a extinção dos morgadios, a  troco de cruzeiros, terá chamado a si essa grande parcela de terra.

Esta quinta, que estava morta, tornou a ter vida, recentemente. Limpa do matagal, do arvoredo e do silvedo, terra arroteada, oito mil pés de oliveiras plantadas, uns tantos pés de vinha, deu-se ali o milagre. Não faltará mais vinho para a missa e azeite para as lamparinas. Que o diga S. Benedito e seus vizinhos, que o digam, em tempo de desemprego, os que ali trabalharam e trabalham a ganhar a vida e também aqueles que conhecem o estado atual da nossa agricultura. Foi o mais recente milagre de S. Benedito, aquele que vela pela entrada na quinta, aquele que, em vitral recente, arte naif, em cujos traços o artista quis significar a ingenuidade e a modéstia campesina, alma periférica, que nada tem a ver com a arte barroca posta nos vitrais de igrejas citadinas, vela por quem sobe e desce uma escada, no interior da moradia, aquele que, vítima de uma cultura racista de séculos sempre negada, esquecido naquele cantinho do mundo, longe da luz dos altares e dos sermões festivos e dominicais, como que vingando-se de tudo isso, emprestou o nome ao Papa,  conhecido e badalado urbi et orbi. Que mais não seja, só por isso e através de mim, merece subir ao altar do mundo, lá longe onde chega o «Notícias de Castro Daire».

E um Papa que recebeu o nome de um tão humilde e recatado santo, conhecido ali por «o negro», mas noutras partes do mundo por «o mouro», cujos ascendentes eram naturais da Etiópia, um santo do «terceiro mundo», um eremita que, na dureza da vida, tinha por leito de dormir  «uma simples tábua», que pôs surdos a ouvir, cegos a ver e deu vida a um morto, um Papa assim, dizia, estará longe de ser um «ultra-ortodoxo», um «rottweiler de Deus», o «grande inquisidor», o «prefeito do ex-Santo Ofício» e «homofobo notório» como referiu a imprensa, logo após a sua eleição. Não pode, não pode, não senhor.

E mais. Aos misteriosos sinais, acima referidos, que envolveram a sua eleição e a escolha do seu nome, não é despiciendo juntar mais um, todos eles a darem sentido à badalada expressão: «são insondáveis os desígnios do Senhor», dizem eles. É verdade, digo eu,   até mesmo para o «servo dos servos de Deus». Trata-se da não menos inspirada opção do Papa colocar na esquina superior esquerda do seu escudo o «mouro da Frisinga, a cabeça coroada de um etíope», seguramente um parente remoto de S. Benedito, «o mouro», cujo nome ele adotou.

E mesmo quando ele, posteriormente, veio dizer que tomou «o nome de Bento XVI em relação com o Papa Bento XV»só pode entender-se dentro dos sentimentos contrastantes, de surpresa e de espanto que avassalam o seu espírito, tanto no que respeita à sua escolha,  quanto ao exercício do seu Ministério. Ele o diz:  «Nestes dias do início do meu Ministério Petrino, experimento no meu ânimo sentimentos contrastantes, espanto e gratidão em relação a Deus, que antes de mais me surpreendeu chamando-me a suceder ao apóstolo Pedro. Tremo interiormente perante a grandeza da tarefa e das responsabilidades que me foram confiadas, mas o que me dá serenidade e alegria é a certeza da ajuda de Deus, da sua Mãe Maria Santíssima e dos Santos Protectores».

E, para remate de tudo o que já se fez e disse, saindo agora das coisas sérias, já que a vida sem humor é uma chatice,  resta dizer que, na opinião do bispo o Porto, D. Armindo, este Papa «conta anedotas como ninguém», disse ele. Como ninguém, alto lá e pára o baile, digo eu! Aquelas anedotas, aquelas estórias que têm como protagonistas clérigos e santos, que misturam a realidade com a fantasia, disfarçadas para terem foros de autenticidade, faladas ou escritas, pequeninas, alongadas, genuínas, parodiadas, originais ou barbadas, fingidas que sejam, como fingido é tudo o que reina no Reino do Fingimento, anedotas, estórias que toda a pategónia (patagónia?)leva a sério e com elas se diverte e ri, essas, outros papas a contá-las não faltam por aí.

NOTA: Texto publicado no  jornal «NOTÍCIAS DE cASTRO DAIRE», em 2005 , e no meu velho site «TRILHOS SERRANOS-COM» inativo. Fiz hoje mesmo a migração para este novo espaço.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.