PRIMEIRA PARTE
Faço-o não apenas para que os meus filhos, NURO E VALTER, conheçam melhor a faceta artista da sua MÃE (eles a estudar longe do lar nem sempre acompanharam os seus trabalhos e preocupações) mas, sobretudo a pensar nas minhas netas e neto - MAFALDA, MARTA e GUILHERME - para que, também eles, quando a idade, o raciocínio e a sensibilidade lho permitirem, tenham em conta que, em qualquer “risco” que façam numa folha de papel, ou no ecrã de um monitor, risco que reflita o seu olhar sobre o mundo com vista a torná-lo melhor, mais solidário e mais humano, numa sadia e estreita relação entre o homem e a natureza, está inconscientemente presente uma ínfima parcela do ADN que da sua avó herdaram.
De resto, um lema que ela e eu seguíamos na vida constava numa vinheta da BD da MAFALDA (quem não conhece a BD da MAFALDA?) que dizia, mais ou menos isto: “eu sei que não posso mudar o mundo, mas não me escuso a dar-lhe um pontapé, para ele mudar de rumo”.
E quem tiver visto as peças que já comentei neste meu espaço e lido os meus comentários, por certo se deu conta que as suas preocupações não se ficavam pela dignificante área da “arte pela arte”, mas declaradamente colocada na, não menos dignificante, área da “art engagê” (arte engajada) v.g. “aquela em que o artista usa seu talento, a partir de diferentes linguagens, para transmitir seus pensamentos, sua atitude para protestar contra algo que considera errado, ou então como forma de denúncia. Os artistas engajados se comportam como atores sociais ativos, ou seja, o autor não é alienado dos problemas que afligem a humanidade de forma geral.. A arte engajada reflete a realidade social, o tempo histórico em que é produzida, a cultura de uma determinada comunidade linguística”. ( https://stellaludwig.wordpress.com/arte-engajada/).
SEGUNDA PARTE
Dito isto, eu, que acompanhei, a par e passo, os seus projetos e intenções de vida, desde a cadeira de FILOSOFIA integrada no antigo CURSO COMPLEMENTAR DOS LICEUS (7º. Ano, pré-universitário) e as posteriores cadeiras do curso superior de HISTÓRIA, a formação pedagógica para o exercício docente, a gravidez, o nascimento e criação dos filhos, sei que todos os seus trabalhos, mesmo os assinados, eram “ensaios” para os voos que ela previa fazer após a aposentação.
Ela tinha planos, a longo prazo, visando levar uma “reforma ativa”, muito antes desta expressão entrar no léxico nacional. Atenta ao mundo e às pessoas que nele se movem, atempadamente se preparava para não passar por situação deprimente que via em certos profissionais do mesmo ofício ao deixarem de exercer a docência. Não sabendo eles fazer mais nada (se não dar aulas) nem se preparando para outra cousa, o desfecho era fatal. Entravam em depressão, sentiam, acusavam e mostravam psicologicamente o vazio da inutilidade social a que que se remeteram.
Não. Isso não aconteceria com ela. A par da docência e vida doméstica, ensaiava técnicas, riscos, cores e formas. E não se desinteressava até pelas ultrapassadas técnicas de “zincogravuras”. Assentava as ideias e os saberes da sua aprendizagem, dos seus estudos e ensaios, nos alicerces inovadores do passado ligados às artes gráficas e admirava o mundo novo da descoberta humana em todas as suas vertentes, na cronologia histórica.
Fazia-o sempre de forma crítica, não fosse ela formada em HISTÓRIA, com cadeira de HISTÓRIA DE ARTE incorporada no curso, administrada pelo professor MANUEL MENDES ATANÁSIO, na Faculdade de Letras de Lourenço Marques que, após a DESCOLONIZAÇÃO, retornado a Portugal, foi responsável pela orientação da História da Arte no Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa ficou, durante os quinze.
Nascido em 1927 e falecido em 1992, a ele se ficou a dever a criação da variante de História de Arte da licenciatura em História, que constituiu a primeira variante de um curso de História formalizada em Portugal.
Saído da Universidade de Lovaina com utensilagem mental bastante para administrar uma cadeira de ARTE no Ensino Superior, estudioso que era desse ramo de saber, ensinava a quem na ARTE se envolvesse que devia despir-se dos “tabus” catequéticos-institucionais básicos, sob pena de nunca “ler” nem fazer ARTE. E creio bem que a minha esposa não foi insensível à “lição” ouvida.
Mas fosse por isso, ou porque nascesse com ela, tudo o que saía da ponta do seu lápis e/ou caneta de tinta-da-china, do seu pincel e godé de aguarela, (afora os textos manuscritos que juntava aos desenhos) tinha uma mensagem de intervenção cívica e cultural declarada. Umas vezes de forma simples e linear e outras de forma mais elaborada e culturalmente exigente. O melhor é vermos, para cremos.
Mas, diferentemente do critério que segui na crónica anterior, feita a preceito, comentando e dando um TÍTULO a cada trabalho, frustrada que foi a sugestão feita aos amigos que generosamente seguem os meus escritos, no sentido de serem eles a fazê-lo (salvo a minoria que o fez) não lhes vou fazer esse jeito. Vou deixar mesmo que sejam os meus leitores, que não eu, a fazê-lo. Mesmo na certeza de obter idêntico resultado, pois é impossível pôr alguém a pensar, num tempo inundado de “emoges” e em que o “pensar cansa”.
Desenhado que foi este agrupamento de figuras femininas todas nuas, juntou-lhe o texto de Victor Hugo. Assim:
(«(…) Gilliat ouvia dizer a sua mãe que as mulheres podem amar os homens e que isso acontecia algumas vezes».
In «Os Trabalhadores do Mar», de Victor Hugo
(Figura 2)
«(…) Levavavam-me e eu ia. Interrogavam-me e respondiam por mim”»
in «A Religiosa», de Diderot
(figura 3)
(…) Há sempre umas tantas que ficam de fora, estavam ocupadas a chorar oseu desgosto, ou a tratar do filho que sobejava, ou debaixo do pai dele a fazer outro filho, por isso é que as mães perdem sempre».
In «A Jangada de Pedra* de José Saramago
(figura 4)
«(…) depois nunca fui excessivamente infeliz…porque não tenho imaginação».
In «Mandarim», de Eça de Queirós
(figura 5)
«(…) desejam ter no retiro do amor a presença, o conforto e o socorro da amizade».
In «A Cidade e as Serras» de Eça de Queirós
(figura 6)
«(…) mal vai o amor se não diz tudo; o pior é quando o amor se acaba, arrepende-se o confesso e não é raro que o confessor abuse da confidência».
In «A jangada de Pedra», de José Saramago
(figura 7)
«(…) O conde erguera-se aflito e desesperado. Era-lhe manifesta a maldade do padre no momento em que o hipócrita lhe pedia licença para o tratar de amigo»
In «Anátema», de Camilo Castelo Branco
(figura 8)
Um cancro ceifou-lhe prematuramente a vida, os sonhos e os planos, em 21 de fevereiro 1997. Tinha apenas 49 anos de idade. O mundo dos vivos perdeu uma excelente professora, esposa, mãe e artista. Foi numa silenciosa e obscura cama do Hospital dos Capuchos.
Restou-me acondicionar a sua obra solta e deixar passar o tempo suficiente até ganhar fôlego emocional para poder abrir a pasta e, à semelhança do que tenho feito com outros autores de artes plásticas e arte literária que arribaram ao porto do meu conhecimento e amizade, mereceram da minha parte, reiteradamente, os comentários e méritos atribuídos, segundo a minha óptica. E sem me ter sido pedido. E, procedendo eu assim com estranhos, seria muito injusto que o facto da MAFALDA, por ter sido minha esposa, me inibisse de dizer o que “criticamente” penso da obra na qual ela projectou a sua sensibilidade feminina enroupada num acervo invejável de conhecimentos, de história e de cultura. ARTE DE INTERVENÇÃO que não envergonha, seguramente, nenhum dos membros da sua FAMÍLIA viva, nomeadamente herdeiros, filhos e descendentes. Sem favor, eu devia-lhe este meu testemunho público.
EPÍLOGO
Um amigo meu (porque o é) depois de ler o meu trabalho anterior ligado a esta temática, impressionado, certamente, com o afã que me tem ocupado o tempo do CONFINAMENTO, v.g. “pôr em ordem a biblioteca dos pensamentos, das lembranças, dos reconhecimentos, méritos e afetos”, escreveu-me, via Messenger, a dizer-me “não tenhas pressa, Abílio”.
Não tenho. Nem tal disse. Mas estando nós metidos numa PANDEMIA PLANETÁRIA, apesar de (EURECA!), já ter chegado a vacina (prova evidente que a CIÊNCIA de laboratório, nada tem a ver com MILAGRE de santuário) andaremos bem avisados se tivermos as sapatilhas prontas a meter nos pés e responder à voz de comando: “sentido! em frente marche!”