PENSAMENTOS
Dias há que me sinto assim como que a fazer as malas, disposto a partir para longe. Assim como que a arrumar a casa, arrumar as estantes da biblioteca, tudo o que é pensamento e imaginação, criador e criatura, e abalar para nunca mais ser visto, nem ouvido, nem ler, nem lido.
É tempo disso. O confinamento imposto pela Covid-19 levou-me a bulir em arquivos materialmente fechados há muito, mas sempre abertos e escancarados em memória e sentimento. E tenho dado conta disso em textos e vídeos publicados, não faço segredo e sem medo, ciente estou de fazê-lo impelido pela consciência, pela obrigação humana, pelos tempos que correm e pelo exercício prolongado da profissão docente.
PRIMEIRA PARTE
É isso. E antes que este meu corpo cansado e pesado, este meu cérebro irrequieto e lesto enrolado em cabelos brancos desapareça feito em cinzas, nas abobadadas ondas do calor do forno crematório, dou por mim no palratório a desmaterializar o pensamento, a sensibilidade e os afectos, meus e de outros. Caminhos andados, esperançosos, percorridos, ora solitário, ora acompanhado. Sonhos realizados no abafado e suado calor de África, amores perdidos, amores achados, amores por lá deixados, amores de lá trazidos, e, firme e seguro, envelhecer no enroupado e encapotado frio da serra do Montemuro.
A memória, esse repositório de vida, de trabalhos, aventuras e desventuras, gozos, felicidades e tristezas, desbobina-se na máquina do tempo e projeta no ecrã com lente anamórfica - Cinemascope - as imagens do vivido, almejado, gozado, recusado e sofrido.
Hoje a máquina encravou-se e deixou no ecrã, imobilizados, justapostos e/ou sobrepostos, empastados, respigos ligados à minha mocidade. E vejo que, do ZERO aos DEZOITO anos de idade, não passou um só deles sem eu saborear a meiguice e a suavidade da neve. Todos os anos nevava em Cujó. “Batem leve, levemente, como quem chama por mim...”
Ele era a neve buraqueira a meter-se por tudo quanto era buraco e abertura nas paredes ou nos capeados das coberturas de colmo; ele era a neve pingona a desfazer-se no ar antes de atingir pouso; ele era a neve espessa e pesada, fopas de grosso incêndio, digna de vergar o arvoredo, rainha habituada à vénia vassálica, senhora dos montes e vales, dona das ruas, das portas imobilizadas, abertas somente à força e jeito de pá e enxada. Ele era as “candeias” (estalactites) congeladas, penduradas nos beirais de colmo, tamanhos vários, cristalinas, rendilhados de altar, “chupa-chupas” da criançada, prenda da natureza, pois nenhuma das aldeias da serra, tinha nome no GPS do PAI NATAL. E de nada valia ter. As lareiras não tinham chaminé, pois nas aldeias até o fumo era produto de consumo. Enrodilhado em reduto fechado, secava o fumeiro pendurado nos varões do caniço, sobrado aéreo resultado da experiência e manha camponesa para nele secar a castanha. E aqui se diz com selo de verdade minha, pintava de verniz preto as paredes da cozinha.
E, à falta de prendas e mimos, adultos e crianças, meninas e meninos, postos em bicha, em dia de missa, beijavam o pezinho do MENINO JESUS que, nessa minha idade (alumiada não seu por que luz) esse beijo reunia em si o sabor da INOCÊNCIA, da SANTIDADE e da FALSIDADE. Uma TRINDADE.
Pobrezinho, nascido numa manjedoura, presépio com musgo montado, rodeavam-no, ajoelhados ou de pé, sua mãe Maria e José, pai adotivo, uma vaca e um burrinho, pastores e cordeirinhos vindos a pé por diversos caminhos, e montados dos seus camelos, vindos do oriente, era só olhar e vê-los, os três reis magos oferecendo ouro, incenso e mirra.
SEGUNDA PARTE
Irra! Nesse meu tempo, não havia inverno que não prendasse a serra com um nevão digno desse nome. Ele era tão certo que nem um relógio suíço de marca garantida. Quem falava em “alterações climáticas?”
Nós, os serranos, mesmo que ninguém o diga, sabedores disso, fazíamos como a formiga. Colhíamos no verão para consumirmos no inverno. Os animais, eternos companheiros de ajuda no ganha-pão do camponês, não eram esquecidos. Palha e feno suficientes metidos no palheiro das vacas, racionados a contento, lá iam enganando os ruminantes. E, a juntar-se ao engano, somava-se, em cada ano, a palha seca serrotada e misturada com algumas cestas de erva verde segada no hortejo do Salgueirinho, derretida que fosse a neve com a água da fonte do mesmo nome.
E o gado miúdo? As cabras e as ovelhas?
Rama de carvalhiço, fieitos e “cruitas” secas de milho, recolhidas no verão, com sabedoria, sem feitiço nem magia, eram deglutidas que nem figos, naquele tempo de dieta forçada. Neste rebobinar e projetar a fita do tempo no ecrã CINEMASCOPE é justo dizer que até os animais eram vítimas da fome, nesse meu tempo de juventude. Mas dava gosto vê-los deitados, consolados, a ruminar o pasto seco engolido. Coitados!
E se as ovelhas, metidas no seu capote de lã, disfarçavam a magreza, as vacas e as cabras não tinham vestimenta de disfarce. A ossatura saliente dos quadris e das costelas permitia que o pastor, dono e tratador sensível, com dor, visse o esqueleto de cada um, a olho nu. Dispensava radiografia. Não era preciso passar-lhe a mão por cima para saber quantas costelas formavam o arcaboiço desses animais. Coitados!
TERCEIRA PARTE
A máquina desencravou e um desses invernos arrasta-se no ecrã como filme de longa-metragem. Quinze dias enjaulados pela natureza. O nosso trabalho era rachar lenha, empalhar os animais, levá-los à “auga” dos tanques e assobiar-lhes para beberem muito e ficarem fartos. Ir para a tenda dos RAMALHOS beneficiar do calor da forja, pegar no malho e ajudar o MESTRE a caldear uma enxada ou outra peça de ferro sobre a bigorna e e/ou safra.
Depois era o ajuntamento nos canastros ou na praça. Toda a rapaziada que por perto morava. Grandes e pequenos.
Capucha de burel, calças de burel, casaco de burel, colete de burel, tamancos com chapas e calcanheiras de ferro, orelhas de couro abertas na parte de trás, meias de lã (ditos caturnos) não tardava a termos os pés encharcados e prestes a pontapear as pedras solta ou de parede com as testeiras deles para nos livrarmos da neve que se colava por baixo e os tornava cada vez mais pesados, mais altos e difíceis de arrastar, ruas adiante.
E, não tardavam as bolas de neve começadas nos lugares cimeiros, mais altos. Iniciadas com o tamanho de um punho, era só rebolar caminhos abaixo e não tardaria a tornar-se “rebolo” pesado, só movido à força e jeito que meia dúzia de compinchas, comungando as mesmas intenções, caprichavam em chegar à praça (junto à Tenda dos Ramalhos) com o maior, o mais volumoso que pudesse ser.
E, sendo eu menino, nunca esqueci o “boneco” feito em cima de um “rebolo” desses, ali trazido por um grupo de jovens crescidos que faziam inveja à pequenada. Em certas idades, todos nós temos os nossos ídolos, os nossos heróis.
Desses, só um nome retenho pelo gesto insólito praticado. O Joaquim Tibério. Rebolo na Praça, boneco feito em cima, chapéu na cabeça, um trapo a fingir de gravata, olhos e boca acabados, ele picou o seu dedo indicador e com o sangue saído pintou os lábios da escultura. Assim mesmo, aos olhos de todos os presentes. Quem se lembra disto? Que coragem! A seguir colocou o polegar no sítio da picada e partiu para outra, sempre senhor de si e galhofeiro. Fiquei de olhos esbugalhados. Nunca esqueci tal gesto.
Cresci e todas as vezes que nos cruzávamos, eu lembrava-lhe aquela sua façanha que tanto me impressionou. Aquela e também a de ser ele o responsável pela minha simpatia pelo Sporting. Eu vos conto.
Ele e os rapazes da sua igualha, junto aos canastros da EIRA DAS POMBAS, ali onde fazíamos “ágora” graúdos e miúdos, discutiam futebol. Era no tempo dos CINCO VIOLINOS. Como sabiam eles disso eu não sei. Mas SPORTING era o melhor. Ele era sportinguista. E se ele (o herói que picou o dedo para pintar de vermelho a boca do boneco de neve) era sportinguista, eu a ouvi-lo e a admirá-lo, que outra coisa podia ser?
Saí da terra. Retornei e, com alguns anos de diferença a separar-nos na idade, todas as vezes que nos cruzávamos na aldeia ou na vila, essas coisas vinham sempre à baila rematadas com o infalível “VIVA SPORTING!”
Ele, tal como o Agostinho Ramalho e tantos outros, já fizeram as malas há um bom par de anos. Embarcaram. As estações e cais de embarque não têm conta, espalhados pelo país e pelo mundo. Ninguém chega de bagagem vazia. Todos ali chegamos de bagagem atestada, abarrotada, inchada de experiências, de mazelas, de virtudes, defeitos, pecados, boas vontades e o seu contrário. Sonhos alegres e felizes de chorar por mais e pesadelos a esquecer. Uma sopa de pedra com ingredientes muitos, no viver e no morrer. Uma pinta deixada por mosca descuidada e porca no globo onde aportamos, planeta que perdido gira no infinito espaço sideral. No momento, só a vasilha da bagagem pesa. O recheio, nem um grama. Nele não entram bens materiais. Entram somente sentimentos, emoções, boas e más ações, tudo o que não tem peso nem medida à escala do homem. O bem e o mal praticados em vida. Usar aqui a metáfora da balança é um absurdo. Só não vê, nem ouve isso o surdo e mudo. Não há ritual ou reza que lhe valha. No embarque tudo se apaga. Tudo embarca, bem o mal embrulhado. Pobre ou pomposamente encaixotado. Não tarda muito, tudo vira “terra, pó, cinza, nada”. Assim o dizem as SAGRADAS LETRAS que misturam muitas verdades e muitas petas.
Pois, mas desfeita a matéria, fica a memória daquilo e daqueles que tiveram a glória de, em vida, deixarem uma ideia viva, um pensamento, um gesto humano, capazes de, num qualquer momento de tempestade ou de bonança, com alguma sorte, aportarem à lembrança e venceram a lei da morte. Serem como o pirilampo que, num terno abrir e fechar de asas, raga o negro manto do esquecimento eterno.
EPÍLOGO
E, chegado ao fim (ainda não me esqueci) retorno ao princípio para repetir haver dias que me sinto assim como que a arrumar a casa, arrumar as estantes da biblioteca, tudo o que, com capa ou sem capa, é imaginação, pensamento, afeto, criadores e criaturas, e abalar para onde nunca mais seja visto, nem ouvido, nem ler, nem lido.
Mas, claro está, sem o testamento feito à revelia do formulário de antigo tabelião, um notário, um senhor que, a seu jeito e normativos em vigor, começava o seu labor: “Jesus, Maria, José”, afirmando, de seguida, que o testador, sem defeito, deitado ou de pé, estava em “seu juízo perfeito”.