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terça, 22 dezembro 2020 00:00

CONFINAMENTO - NATAL DE 2020

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CONFINAMENTO – NATAL DE 2020

Quem me tem acompanhado nesta minha saga de intervenção cívica através das LETRAS, por certo se deu conta que, lesto a comentar e a louvar todo o ato criativo e artístico, demorei bastante tempo a escrever sobre o legado artístico da minha mulher MARIA MAFALDA DE BRITO MATOS LANÇA CARVALHO.

 PRIMEIRA PARTE

capaÉ certo que, ainda com vida e saúde, com sua colaboração e consentimento, fiz uso dos seus desenhos na ilustração do livro «Lendas da Cá, Coisas do Além», mas muito injusto tenho sido para com ela não me ter referido há mais tempo e mais assiduamente às suas qualidades de professora, de mãe, de artista, defensora e admiradora da natureza e dos animais, ecologista, muito antes de surgirem os acérrimos defensores, organizados em Partidos e Movimentos que hoje por aí “berram” em defesa da natureza e dos “direitos dos animais”.

Muito antes disso, ela projetava os seus afetos à natureza e aos “bichos”.  Antes mesmo de nos conhecermos e depois disso, por onde quer que andássemos, não havia postal no mercado com um «bichano» que ela deixasse no escaparate. Tinha de comprar, colecionar e mandar pelo correio às pessoas amigas. O postal era um suporte de comunicação que passou à história, mas que o historiador lembra. Cá, em casa, existe uma caixa deles.

Do silêncio a que a tenho votado me penitencio.

Admirador e apreciador de todas essas qualidades, após o seu falecimento, adquiri uma pasta destinada a acondicionar toda a sua produção artística resultante da paleta, pincel, lápis de cera, de carvão e fixador.

Recentemente, como já referi em crónica com o título “A GRANDEZA DA ARTE MINIATURAL” publicada neste meu site em 30 DE ABRIL DE 2017, reportei-me ao baú esquecido nos cantos da casa, onde fui encontrar as relíquias miniaturais que ilustram essa crónica.

Desta vez boto mão a alguns dos seus desenhos, alguns dos quais foram publicados no jornal “LAMEGO HOJE” com o título genérico “SIMBIÓ(P)TICA”, acompanhados de um pequeno texto, manuscrito ou dactilografado, extraído de autores conhecidos, desde Eça de Queirós, Fernando Namora, Saramago, Victor Hugo e outros.

Nunca soube, nem perguntei, se eram os desenhos que precediam os textos, ou se eram os textos que inspiravam os desenhos.

SEGUNDA PARTE

Por entender ser justo proceder a mais ampla divulgação, nos tempos aue correm, usando as novas tecnologias atualmente ao dispor, resolvi digitalizar parte da sua obra e fazer um “POWERPOINT” com banda sonora, que alojei no YOUTUBE, sem qualquer COMENTÁRIO.

De seguida, recorri ao FACEBOOK e coloquei no meu MURAL o seguinte texto:

CONFINAMENTO

“Por força do CONFINAMENTO, e também vontade minha, eu tenho andado a abrir ficheiros há muito materialmente fechados, mas sempre afetivamente abertos. Refiro-me aos ARQUIVOS DE ARTE que, a par do desempenho da profissão docente e lides domésticas, a minha esposa ia fazendo, em vida.

Já dei conta disso num vídeo recente, mas quero deixar aqui algo que nos ponha ainda a refletir sobre este mundo de futilidades cada vez mais reduzido a “sms“ e “emoges”.

As fotos que se seguem merecem um TÍTULO cada uma de per si. Qual dos meus amigos se aventura a isso? Vamos lá”.Anexei as primeiras três FOTOS que aqui se repõem para se não perder o fio à meada.Dada a ínfima colaboração dos meus “amigos” (e tantos eles são), e porque para mim o FACEBOOK É UMA LIÇÃO, no dia seguinte insisti:tripla

Ontem recorri a este espaço, solicitando aos “meus amigos” que dessem um TÍTULO a cada uma dos fotos que anexei. Apesar de mal sucedido, (só uma amiga, por sinal uma ARTISTA, teve a gentliza de responder aos meus propósitos,) repito o pedidoRepito, pois não quero crer que entre tantos “amigos” da minha lista (que tenho em boa conta) só uma teve tempo e disponibilidade para OLHAR, VER E PENSAR. Ora façam favor:

dupla

E anexei mais as duas fotos anteriores. As mesmas que aqui reponho, sempre no sentido de ser claro nos meus propósitos.

E fosse pela insistência, fosse pela disponibilidade de tempo (que não de vontade, seguramente) alguns dos meus amigos prestaram-se a dar a sua colaboração, cientes de que as suas sugestões seriam por mim levadas em conta, em crónica minha posterior.

Para mais fácil leitura e acomodação das prestimosas colaborações que recebi, verti numa grelha os NOMES dos amigos que se prestaram a “OLHAR, VER E PENSAR”, bem como os TÍTULOS SUGERIDOS para cada uma das IMAGENS PUBLICADAS. Na grelha entra também o nome do meu amigo Dr. Lima Bastos, que, fora do FACEBOOK, me fez chegar, via e-mail, a sua opinião, por mim solicitada.

Fui agradecendo a colaboração e aditando alguns comentários por forma a incentivar outros “amigos” do meu rol a entrarrem no “PALROTÓRIO”, mas, diga-se aqui e agora, muito mal sucedido fui. De nada valeu eu trazer à colação o ensinamento do meu falecido PROFESSOR DE ARTE, na FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LOURENÇO MARQUES, dizendo que “toda a OBRA DE ARTE é polissémica e, como tal, exposta ao público, passa a ser deste e a incorporar a interpretação de cada pessoa que a “veja e leia”, o que, posta assim a questão, permitia, a cada um de nós, dizer o que nos suger a “coisa vista ou lida”, sem receio da nossa opinião se confrontar com opinião alheia mais elaborada. Importava-me era que cada um resumisse, em TÍTULO, os pensamentos, emoções, interpretação, significados que cada imagem lhes despertasse.

Feita a colheita, armazenados os títulos sugeridos na grelha que se segue, muito agradeço aos “amigos” que se prestaram a pular por cima do comodismo dos «likes» e dos “emoges”, permitindo que a minha interpretação se junte à sua, sem desmerecer qualquer delas. Todas, sem distinção, corroboram muito justamente, o apreço que manifestam sobre o legado artístico sujeito a exame.

 

TÍTULOS SUGERIDOS

 

FIGURAS

Elisabete

L. Bastos

M. Ferreira

Elda

F. Maruta

Sérgio

ÁFRICA MEDO
?
?
ASSIMETRIA
SOCIAL
?
2
DAMA
MISTERIOSA
PRIMAVERA                DE CHAPEU E
MANTILHA
 
 
BELEZA
CIRCUNSCRITA
?
3
CAMINHOS POR DESVENDAR 

 

A LÁGRIMA

?
?
HORIZONTES
BLOQUEADOS 
?
4a)
LEITO DAS SOMBRAS 

GATO APAIXONADO

PELA DONA

?
?
SONHOS
REFLEXOS
ÓCIO
5b)

 

VIDA E MORTE

 

MATER DOLOROSA

MENTIRAS

BÍBLICAS

METAMORFOSE
 
SERVIDÃO
HUMANA

TORRE

DE

BABEL

                 

Nota: Bártolo Ferreira optou por dar uma pequena explicação em vez de título. Assim:

 a) Figura 4: «Sonho durante o repouso, após um dia de aulas».

b) Figura 5: «Consagração da Hóstia: «ESTE É O CÁLICE DO MEU SANGUE, DERRAMADO POR VÓS...» Representará este quadro um momento da celebração da missa em terras de África?  

 

  TERCEIRA PARTE

Posto o que me cabe a mim, agora, explicação mais ampla que os títulos dados, porventura diferentes até daquilo que a minha esposa pensou e escreveu na sua colaboração publicada no “LAMEGO HOJE”, sob o título genérico «SIMBIÓ(P)TICA».

1-escolaaE, para começar, eis a PRIMEIRA IMAGEM já vossa conhecida, acompanhada do texto por ela manuscrito e anexo:

Em Harlém também me apontaram uma escola sem janelas para que as crianças negras não possam ver o que se passa no mundo dos brancos”. (In “Cavalgada Cinzenta”, de Fernando Namora)

Eu vejo efectivamente uma janela e, em primeiro plano, do lado esquerdo, um menino de feições africanas e, do lado direito um PESO de BALANÇA DECIMAL sobre um livro fechado.

Ora, atendendo a que “balança”, "peso” e “comércio” integram o mesmo campo semântico, dar-lhe-ia o título COMÉRCIO DE ESCRAVOS, já que a peso de ouro eram compradas e vendidas, a juventude, a beleza e a força física da mercadoria traficada, consoante o seu destino.

Mas o que sobressai e impressiona na IMAGEM (só mesmo resultado de uma apurada sensibilidade humana e artística) é que o menino, para ver o mundo exterior dispensa a vidraça. Os seus olhos, fixados em nós (quem olha quem?) fazem-no através da matéria opaca em quadruplicado, o caixilho da janela.

Ao centro e ao alto, uma palmatória ou instrumento de castigo e mais acima várias figuras humanas sem rosto. E no canto superior direito, no chão de porta semi-aberta, a artista retoma o desenho com linhas que terão o seu ponto de fuga algures. Significativo.

Diferentemente dos demais elementos constitutivos da figura, de linhas paralelas ou de encontro num ponto de fuga algures, no painel dessa porta, aparecem-nos, pintalgados, vários círculos concêntricos e neles se vislumbra, a custo, um envergonhado rosto humano. Tornado propositadamente invisível, não foram as pintas dos olhos, do nariz e da boca, perdidas entre as demais pintas e o esforço da artista teria sido inglório. Só mesmo de quem desenha e pinta a humanidade como a vê, como a conhece e como a sente.

damaA segunda IMAGEM, ciente de que a autora ilustrava a sua obra com textos de autores conhecidos, eu daria o título a DAMA DAS CAMÉLIAS. Que mais não fora, a esse título seria conduzido, não pelas flores que a ornamentam, mas pelo tom de cor que cobre a dama de cima a baixo.

via sinuosaA TERCEIRA IMAGEM, onde assentam bem os títulos dados e acima expostos, eu daria o título VIA SINUOSA, caminho errado, que leva à morte e ao pranto, representado nas árvores secas, desfolhadas, raízes a descoberto e uma delas, como muito bem viu o Dr. Lima Bastos, dando-lhe o título abrangente de «A LÁGRIMA».

Feito e assinado em 1988, eis ali postas, preto no branco, as preocupações ambientais que se foram avolumando como bola de neve com o decorrer dos tempos. Árvores de copas e raízes secas, metade do rosto feminino mirrado, o olho esquerdo aberto, o direito, perdidas as feições, deixa escorrer o sofrimento da natureza envolvente. As árvores tornadas gente.

gatoA QUARTA IMAGEM, reparem bem, todos os elementos constutivos estão colocados numa superfície transparente. Todos eles são reflectidos inferiormente.

Em primeiro plano, bem ao centro, temos um livro aberto, seguido de uma figura feminina em posição de descanso (a dormir ou a sonhar) entre duas velas acesas e um arranjo floral, em vasilha transparente. Ao lado esquerdo do livro, também em primeiro plano, um gato de olhos bem abertos, vigilante (quem olha quem?) que patenteia, seguramente, as multiplas representações simbólicas que tem nas diversas culturas humanas.

Como a autora não está cá para dizer qual delas é, atendendo ao contexto, vou optar pelo papel desempenhado na tribo índia Pawnee (América do Norte) “simbolo da sagacidade, de reflexão, de ingenuidade, observador, malicioso e ponderado, animal sagrado”.

E se diz também que da “sagacidade e engenhosidade se passa simbolicamente para a CLARIVIDÊNCIA”.

Daí que, numa visão gestaltista, eu daria a esta obra o título de «TRANSPARÊNCIA ILUMINADA».

 

hóstiaA QUINTA IMAGEM é um bico de obra. Integrada no título genérico de “SIMBIÓ(P)TICA”, palavra compósita, inventada para exprimir a mundividência simbólico-cultural segundo a sua “óptica”, a autora, uma pessoa lida, culta, formada em HISTÓRIA, sabedora do significado simbólico dos elementos que reuniu numa COMPOSIÇÃO ARTÍSTICA, não se importou com a LEITURA CRÍTICA advinda de todos aqueles que, (académicos ou não) nela pusessem os olhos. Bastava-lhe que eles, navegantes no mar da SEMIÓTICA, tivessem conhecimentos e sensibilidade sobejos para interpretá-los, no seu conjunto, com recusa de serem peças de qualquer puzle catequético ou histórico-cultural de pendor nacionalista acrítico, arredado do HUMANISMO UNIVERSALISTA que deve reger o mundo.

O que vemos nós? Um arco românico, em pedra, destaca-se à direita, e sob ele várias figuras humanas de mãos postas. No lado oposto, uma figura humana, buraco no peito, braços abertos, dedos crispados, não anunciam aclamação, mas repulsa e sofrimento. Ao lado, uma fogueira de labaredas flamejantes. Ao centro um CALICE de vidro, atravessado em diagonal, no seu interior, por uma ESPADA de ponta dirigida ao peito da figura da esquerda, mas não sem primeiro vazar um rosto, visto de perfil, dentro do CALICE, que recebe as gotas de sangue caídas de um rosto negro, partido ao meio pelas mãos da figura de rosto cortado que, pelas vestes e gesto, se adivinha ser um sacerdote cristão. Atrás dele, uma figura de mãos postas, com asas. Todos os elementos se integram claramente no campo semântico religioso e étnico.

Digamos que esta composição é muita areia para a camioneta de quem não possui carta artística de condução.

Numa alusão clara à “consagração da hóstia”,  da qual -  um rosto de cor negra, olhos esbugalhados e raiados de dor e raiva, partida ao meio de cima a baixa - o sangue escorre para dentro do cálice. Tudo no seu conjunto aponta dramaticamente para as CRUZADAS, para a RECONQUISTA CRISTÃ, ou, num sentido mais lato, para a CONVERSÃO dos infiéis, à força da ESPADA, da  CRUZ e  da  ÁGUA BENTA. Se bem repararem no punho da ESPADA, mesmo sem lupa, vê-se um “terço” e os crucifixos de remate.

barca-redEnfim. Eu dar-lhe-ia os títulos acima referidos em letra maiúscula, sem esquecer, claro está, o papel da fogueira E das leis dos vencedores sobre os vencidos. Nunca uns melhores do que outros. Todos capazes de procederem de igual forma em situação inversa. A HISTÓRIA é um odre cheio de exemplos, sempre a atestar desde a ANTIGUIDADE aos tempos bem recentes, sempre em nome dos deuses, mau grado os avanços culturais da HUMANIDADE e, genericamente, a aposta ganha no respeito pelas diferenças religiosas, políticas e étnicas. 

E, além das imagens para que pedi títulos no meu mural do FACEBOOK, não podia deixar fora deste meu «OLHAR, VER E PENSAR», mais outra figura publicada com texto anexo no jornal LAMEGO HOJE, em 1988. Isto porque, muito recentemente entrou no debate político nacional a «IGUALDADE DE GÉNERO». E diz o texto manuscrito:

«O que é um marido? É o capitão de uma viagem (...) o casal obedece às marés. Quem sabe guiar uma barca, sabe guiar uma mulher. Ambos estão sujeitos à Lua e ao Vento* (in «Os Trabalgos do Mar», de Victor Hugo).

Pois. Assim mesmo. No desenho que aqui trago vemos uma figura masculina e outra feminina. O homem, de cachimbo e boné, remete imediatamente para a figura do POPEYE, o marinheiro, empantorrafo de espinafres e cheio de força. A mulher, nua, atravessada sobre os joelhos verga-se em feitio de barca.

Ora vejam só até onde chegava o «OLHAR, O VER E O PENSAR» da artista, da mãe dos meus filhos,, aquela que foi minha companheira nos trilhos da vida. 

 

 

EPÍLOGO

E assim, â semelhança dos meus amigos que se dfispuseram a dar o seu contributo, respondendo à minha solicitação, aqui deixo a prova do meu «OLHAR, VER E PENSAR». Somente isso. A explicacão e entendimento profundo destes desenhos ficam para os CRÍTICOS DA ARTE, se ARTE virem nesta forma de expressar conhecimentos, sentimentos, emoções e forma de pisar os trilhos da vida, deixando neles pegada de contornos bem definidos, não em espesso manto de neve, derretido aos primeiros raios de sol, mas em sólidas tabuínhas de argila, à laia da escrita suméria.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.