ENCONTROS INESPERADOS
Já contei aqui o meu inesperado encontro com o nosso conterrâneo, Adérito Duarte, numa sala de aula no Externato Marques Agostinho, em Lourenço Marques e aludi à minha surpreendente surpresa. Ele professor e eu aluno.
Mas outro encontro inesperado me esperava, lá, nessas terras distantes. E nem imaginam a reação emotiva que, tão longe da nossa terra, significam encontros desses. É como se fossemos todos da mesma família.
Desta vez foi assim.
Estava eu numa esplanada de café - o SCALA - acompanhado da minha mulher, quando, no passeio, do outro lado da avenida - no CONTINENTAL - vejo uma figura que me pareceu ser conhecida. Inconfundível pelo seu andar inclinado, ombros desnivelados por razões que adiante se verão. E disse isso à minha companheira. Resposta dela: “tu sonhas com pessoas da tua terra. Aqui, tão longe, pode lá ser?”
Respondi que ele tinha a alcunha de CORRÉCIO e não gostava nada de se ver assim chamado. Vou tirar a prova. Era pessoa que já não via há muito tempo. Levantei-me da cadeira, caminhei paralelamente, ele no passeio de lá, eu no de cá e, a dado momento, gritei: «ó CORRÉCIO!»
Ele virou a cabeça espantado, atravessou a rua sorridente e identificou-me imediatamente. Não levou a mal tê-lo chamado assim, bem pelo contrário. Fomos almoçar os três e houve ocasião para ele nos contar a sua saga.
Marceneiro de profissão, ciente de ter nas suas mãos o ganha pão, onde quer que parasse, não hesitou em correr mundo. De Cujó rumou a Lisboa. Da capital rumou a Luanda. Arranjou ali emprego, ganhou dinheiro para nova viagem e, ala, logo a seguir, partiu para a África do Sul. Ali fez o mesmo e depois partiu para Lourenço Marques. E ali estava ele a conversar comigo. Trabalhava aqui e ali. Logo que tivesse dinheiro rumaria ao Quénia. E depois logo se veria.
Vimo-nos mais uma vez ou duas e depois desapareceu.
Soube que retornou à Pátria e, diga-se de passagem, que eu invejei aquele seu espírito de aventura e coragem. Sozinho, fazia as malas e toca a andar. O seu ganha pão e o dinheiro para viagens estava na sua arte, nas suas mãos e não em subsídios ou bolsas de estudo.
E, se alguma moral se pode tirar da história, convém saber que este nosso conterrâneo, de alcunha CORRÉCIO, seguro de ganhar o futuro onde quer que fosse, tinha sido vítima da tuberculose num tempo em que tal mal não tinha cura. Teve sorte. A doença comeu-lhe um pulmão inteiro, mas deixou-lhe outro nas costas capaz de o manter vivo. Daí o seu andar inclinado.
Nessa época a tubercolose ceifava vidas como actualmente o coronavirus. Eu, em minha casa, vi um jovem chamado Mário, filho da tia Augusta, tísico, pedir ao meu pai: “ó tio Salvador, não me deixe morrer”. Deixou. No seu corpo seco, já não havia músculo onde pudesse espetar-se uma agulha e injetrar-lhe o remédio indicado.
O ZÉ CORRÉCIO, durante tratamento em Cujó, com um só pulmão, foi aconselhado pelos médicos a levantar-se muito cedo e ir para os montes respirar os ares da manhã. E assim fez. E que vontade aquela de viver! Cumpriu à risca as recomendações médicas e resistiu.
Daí o susto que me pregou, do qual nunca mais me esqueci. Sentado junto de um penedo na Santa Bárbara ali estava ele a fazer o tratamento recomendado, a encher o pulmão de oxigénio, quando eu regressava de uma caçada furtiva à espera das perdizes. Ao deparar com aquele vulto, no lusco fusco da manhã, coloquei a arma no chão julgando tratar-se de algum fiscal da venatória. Segui ao seu encontro. Era ele e disse-me a razão de estar ali. Fazia isso todas as manhãs, havia meses. Curou-se.
E nesse encontro, em Lourenço Marques, veio tudo isso à mesa da refeição e bem assim ter sido ele a primeira pessoa de Cujó a possuir a primeira máquina fotográfica, o primeiro rádio portátil e passear-se com ele, rua acima e rua abaixo, a marcar a diferença. De ter sido ele a possuir a primeira máquina de escrever, uma daquelas máquinas de teclas aneladas, na qual, em casa dele, eu escrevi, pela primeira vez, o meu nome sem recorrer à caneta e ao lápis. De ser ele a engendrar, sem grande sucesso (diga-se em abono da verdade) um torno movido a energia eólica para nele fazer piões. Não funcionava, capazmente, mas valeu a imaginação e criatividade. Tivesse ele estudos e outro galo cantaria.
Todas essas coisas vieram à conversa, lá nas costas de África banhadas pelo Índico. E, meio a rir, meio a sério, eu provocáva-o. “Como querias tu que não te chamassem CORRÉCIO, ó ZÉ?” E ele ria. Outras terras. Outros climas. Outras relações humanas. Outros significados nas palavras.
Com efeito a alcunha de “corrécio”, na sua significação dicionarizada, não é muito abonatória para a pessoa que com ela foi selada. Mas eu, que o conheci pessoalmente (uns anos mais velho do que eu, não sei quantos), ignorando o seu comportamento infantil e o que fez para merecer tal apelido, conhecendo as suas extravagâncias em relação aos demais conterrâneos, diria que, excluíndo os demais sinónimos, assentava-lhe bem o adjectivo “aventureiro” próprio da figura pícara. E seguro é que, numa aldeia serrana, todo aquele que escapa aos modelos estabelececidos, sujeito está aos anticorpos que lhe acarretam os seus comportamentos sociais. E não me custa a crer que a foto que aqui deixo dos meus pais e sobrinha Aldina tenha sido tirada por ele. Isto atendendo à aparente idade dos fotografados, pois quem é que nessa altura por ali andava de máquina fotográfica na mão?
Creio que regressado à Párria antes de 25 de abril ele teve algum protagonismo político na aldeia. Não confirmo, nem desminto. Que terá algo a ver com a existência do coreto que foi construído no Largo da Feira. Que não terá concitado unanimidade em torno dos seus comportamentos. Que terá falecido com a alcunha de CORRÉCIO colado a si, sem jamais ter entrado numa prisão a cumprir anos de “prisão correcional” como vi tantos outros nos livros onde eram regiatadas as entradas e saídas dos presos e as razões disso e penas sofridas.
Mas, fosse como fosse, com seus defeitos e virtudes, eu, que falo de CUJÓ E DAS SUAS GENTES, sem olhar a classes, profissões e religiões, comportamentos conformes ou desviantes do todo social, não ficaria bem com a minha consciência, se, em memória da sua pessoa e respeito pelas suas diferenças, pelas suas andanças pela África e do nosso amistoso e inesperado encontro em Lourenço Marques, lá tão longe, não escrevesse estas linhas.
E julgo que que o faço não só por dever de “cronista”, mas também um pouquinho impulsionado pela inveja daquele seu espírito de aventura e de coragem. De pioneirismo e criatividade. E se alguém discordar deste meu juízo, e tenha algo a dizer em contrário, tal como nos casamentos, que o faça agora. Ou, então “que se cale para sempre”.
NOTA: deixo aqui os meus agradecomentos ao amigo José Duarte (conhecido por Zé do Porto) que me «confirmou e elucidou» sobre alguns pormenores da vida deste nosso conterrâneo.