De pronto lhe agradeci e prometi fazer dele «uma caravela e, metido nela, tal como o coco que, originário da Indonésia, caído no mar do conhecimento e da sensibilidade, aos BALDÕES, de falésia em falésia, enfrentou as “rebordadas” das ondas, das vagas e, desfeita a sua carapaça natural e resistente, como semente, aportou nas praias de todos os continentes, oferecendo a sua sombra acolhedora a toda a gente, eu, na minha pacata aldeia, de Fareja, vou viajar, partir à descoberta e só então, o seu livro aportará no cais da minha biblioteca e ali se tornará mais um protagonista da narrativa que eles, os livros, repositórios de pensamentos e afetos, ficam como MEMÓRIA duradoura de autor e autora, desaparecida que seja para sempre, a galope, a MATÉRIA que lhe serviu de ENVELOPE».
Prometi e cumpri. Após o que lhe remeti, no dia 01 p. p., isto, portanto, antes do Papa Francisco se dirigir ao mundo pelas TVs incitando os jovens a deixarem a sua zona de conforto e a “meterem-se mar adentro”, pois a JMJ não era somente cantos e danças “mundanas”, mas sementeira de esperanças atiradas ao o campo aberto por semeador empenhado na construção de num “mundo melhor”.
Face ao que, indo ao encontro do ensejo da autora, resolvi publicar o texto neste meu site, com alguns retoques posteriores, por forma a que ela, qual jovem “metida mar adentro”, já não sendo jovem, ela, cuja maneira de ser e estar, personalidade, carater e sensibilidade, senso e tino, como seja, moldou ao toque do sino de igreja, ela fique ciente que valeu a pena semear e ver germinar em cada vaga de mar a semente que lançou como se fosse em terra lavrada. Assim:
UM LIVRO, UMA CARAVELA, UM VELEIRO, UMA NAU, UMA PASSAROLA.
Livro aberto ao meio, lombada em quilha, assente na palma da mão, nele navego no mar do pensamento e da emoção pessoal e alheia. Nele aporto de ilha em ilha, de continente em continente. Não vou só. Comigo vai um contingente de gente que não receia navegar por terra, mar e ar. Cada folha é uma onda, uma nuvem, uma montanha. E o que quer que se esconda, com sageza e manha, em cada uma delas, certeza tenho eu que no mundo em que navego - chão e céu - desconhecido e diverso, um verso me destapa o horizonte distante. Vou confiante e sem destino. Ao leme vai uma mulher que não teme invadir o campo masculino. Uma mulher ao leme de uma caravela, de um veleiro, de uma nau, de uma passarola? Mas que atrevimento o dela? Confias nela? Não estás bom da tola. Uma mulher faz meia, não se mete mar dentro, no mar das letras, no mar de sal ou de pensamento. Numa passarola? Num veleiro? Como grita ela “acima, acima gajeiro”?
A mulher barre a casa, cozinha, lava a louça e passa a ferro. Dá colo aos filhos, para quê mais sarilhos?
Ouço isso, mas eu, embarcadiço, “como quem não te ralas”, não ligo a tais falas e deixo-me ir no mar do pensamento, no mar da fantasia, da imaginação, no mar da poesia. E o livro, aberto na palma da minha mão, de lombada em quilha, cada poema é uma ilha, cada verso uma vaga que rasga segredos e tabus velhos e relhos moldados no cadinho civilizacional masculino ocidental.
A carga, da proa à popa, não é coisa pouca. De bombordo a estibordo, dos porões ao convés, no interior de lés a lés, barricas e barris de biscoitos estão abarrotados de emoções, sentimentos e pensamentos de que são fabricados e construídos. «Quem vai para o mar prepara-se em terra». A marinhagem precisa de alimentação na viagem. O velame e o cordame são feitos com o linho das aldeias, tecidas de ideias, fios cruzados no tear da poesia. Cheira a maresia. Em pleno mar, amaina a brisa e como quem pisa chão sagrado, ouve-se a zoeira do carvalhal, do pinhal e arvoredo mais, tudo o que esconde os ninhos e os passarinhos de Boais. Andorinhas, pardais e mais passaredo. Canta a natureza alada em cada árvore copada, em cada mastro do navio, fuso gigante de fiandeira imaginária. E não fica calado o rio que corre rápido da montanha. Idem, da ribeira que corre mansa à beira da leira que rega e mata a sede à semeadura. À sombra descansa a gente da lavoura que trabalha do nascer à sepultura. Do nascer ao por-do-sol. E, num repente, em menos de nada, entram em nós as cores e os odores das rosas, do rosmaninho, das margaridas do caminho. Folhas e flores. Baloiçando no mar sentimos o chão de Escalhão, terra firme, e as vozes dos habitantes, adultos, velhos e crianças, todos eles navegantes, todos eles emigrantes, recordações, lembranças, metidas “mar adentro”, loteando o barco, bote, caravela, nau, traineira, o que se quiser, mas verdade, verdade, por timoneira vai uma mulher. Ali, no Escalhão, de “montes tão redondos e delicados, suas entranhas são as fontes que saciam a sede ao gado”, ali, sem dar um passo, naquele espaço, num só verso, inspirado por anónima deidade, navega, mar adentro, toda a humanidade.
Ó minha glória! Ó sorte a minha, eu navegar no mar da poesia e da história do mundo. Das Américas, das Áfricas, da Europa, da Ásia. Eu ter conhecido Aspásia e outras mulheres que no mundo deixaram pegada na política, nas letras e no pensamento. Pegada que, por maldade, (porém em nome do bem) apagada foi e tarda a ficar vincada no chão da HUMANIDADE.
Por mim, que navego sem medo, não busco sofisma nem arremedo. Sem temor, eis um navegador que, navegando noutros tempos e noutros múnus, em letra impressa deixou impresso o perfil da mulher - CIRCE DO AMOR. Fê-lo na "Nova Floresta e Silva" donde, bem a propósito, do que é MUNDO e do que é MUNDANO (onde é que eu li e ouvi isto, antes de ser dito pelo Papa Francisco?) transcrevo alguns traços elucidativos. O autor compara a mulher a uma NAU, carregada de luxúria, de vaidade, jóias e perfumes, perguntando-se:
“Para que é necessário a uma mulher todo este mundo? Para parecer formosa. Concedamos-lhe que o parece; e ainda mais, que o é: que não é pouco barato, pois sabemos com S. Gregório Nazianzeno, que aquilo não é rosto, senão máscara: «non fácies, sed personas»; bem sabemos com Propércio que daquelas formosuras se mercam nas lojas e tendas e boticas e talvez para deitar a perder o natural" .
(...)
"No capítulo terceiro de Isaías está lançado um bastante aranzel, ou rol destas galas e adereços femininos. Porque indignado Deus de tanta vaidade e luxo ameaçou castigá-lo com terríveis demonstrações e por princípio delas, diz que há-de deitar abaixo as fivelas e topes de calçado, as luas, os colares, as gargantilhas ou afogadores «In illa die auferent Dominus ornamentum calceamentorum & lunulas, & torques, & monilia», os braceletes, as mitras, os pentes e fitas que servem de apertar as tranças, os frandelins, os cordões de ouro, as pomas e frasquinhos de águas de cheiro: «Et armillas, & mytras & discriminalia, & periscelidas, & murenulas & olfactoriola»: as arrecadas e chuveiros, os anéis e memórias, as jóias de pedraria preciosa pendentes sobre a testa, as galas de festa, os capotinhos, os volantes e velilhos, as espadinhas, os espelhos, as toucas, os listões, vendas e faixas e os mantos finos: «Et inaures, & annulos, & gemas in fronte pendentes, & mutatória, & palliola & linteamina, & acus, & specula, & sindones, & vittas & theristra». Porém neste rol não está a centésima parte do aparelho que pede esta grande nau (chamemos-lhe Libertina que era a Deidade de fazer cada um o seu gosto) para velejar vento em popa nas cerúleas planícies do aplauso público.
E mais é de advertir que o profeta fala das mulheres que andam em seus pés: «Ambulabant pedibus suis, & compósito gradu incedebant»: que as que andam nos pés alheios necessitam de muito mais enxárcia, enfrexadura e amantilhos de muito mais flâmulas e galhardetes, de muito mais grinaldas e faróis e de melhores pavezas a um e outro bordo.
E a maravilha é que quanto a nau vai mais carregada, mais levezinha vai, porque a mesma carga lhe faz ganhar vento; suposto que só em ser mulher tinha já bastante, conforme aquele dito:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quidmuliere? Nihil.
o Monomotapa e Sofala na Cafraria e da região de S. Paulo na nossa América, leva ouro; do Cerro do Patosi, nas conquistas del-Rei Católico, leva prata; da Alemanha, os camafeus; de Moscóvia, as zebelinas e martas e do Palatinado as mais aperfeiçoadas; da Helvécia, região dos Suizaros, os arminhos; do Brasil, os saguins para manguitos; e os coquilhos para contas; da cidade de Tiro, em Fenícia, a púrpura; da Serra da Arrábida grã; de Portugal e Castela a cor; de Veneza e Holanda, os espelhos; de Provença e de Roma, a pomadas para fazer as mãos macias e cheirosas; de Córdova e Hungria ao menos a receitas para as águas odoríferas destes nomes; das Índias de Castela a Almeida e óleo dela para as mães; de Tunquemo almíscar; do Maranhão e Seará, o âmbar; de Angola, Guiné e Cabo Verde, a algália; das nossas Índias o calabunco e aguila, os canequins e paninhos de coco e os toribios; da Africas, penas dos avestruzes para os cocares de plumas; da China os lós, os leques e as chitas.
Pois. E remata com as perguntas:
"Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil".»
A mulher? Mais palavras para quê? Eu remato:
Livro aberto ao meio, lombada em quilha, assente na palma da mão, nele naveguei no mar do pensamento e da emoção. Nele aportei de ilha em ilha, de continente em continente. Fui confiante e sem destino. Ao leme ia uma mulher que não temeu invadir o campo masculino. É isso. “Quem não deve, não teme”, segue adiante. Confiante, parti. A prmeira página foi o cais de partida. A última o cais de chegada. E, feita a viagem, este livro de poesia, com o título “As Minhas Raízes”, de autoria de Odete Correia, que não conheço pessoalmente, como não conheci muitos outros autores que li e com eles aprendi tanto. Uma caravela em que naveguei por mares ignotos e conhecidos porque humanos me receberam. Este livro junta-se aos demais barcos que baloiçam nas estantes da minha biblioteca. E tenho por certo que, nem mais lido, nem mais aberto que seja, aprumado, inclinado ou disforme, pronto fica à escrita cuneiforme, feita pelas “traças” que de longes tempos vêm e destróem, comem e defecam os pensamentos, os afectos e as emoções de autores vivos ou mortos que, atentos às mazelas e belezas do mundo, nas artes e letras, humanos se mostraram criativos e se mantiveram e nos mantiveram vivos.