Trilhos Serranos

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segunda, 11 junho 2018 08:55

NASCIMENTO

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ANIVERSÁRIO

Numa prole de sete irmãos fui o sexto a vir ao mundo e, segundo a minha mãe dizia, difícil nascimento foi o meu: é «travesso», é «judeu», «nasceu ao contrário!», justificação para o embrionário espírito de rebeldia que eu revelava em pequeno e, no meu juízo de agora, pergunto-me se isso se devia ao meu temperamento natural ou aos normativos injustos dos adultos a que eu desobedecia para tormento deles e meu.

Foi meu natal em 10 de Junho de mil novecentos e trinta e nove, ano em que rebentou a II Guerra Mundial. Como o tempo foge. Hoje, ao escrever estas linhas, a minha memória se aviva, se remove. Daí que, a tantos anos de distância da glória de ter nascido, já lá vão sessenta e sete anos cheios de felicidade, tristeza, ilusões e desenganos, não sei se fantasio, se invento, se minto, mas o que verdadeiramente sinto e cogito cá para mim,  a tal lonjura de tempo, é  que essa minha relutância em vir ao mundo, em nascer assim a ver a luz do dia com o olho que não vê, não foi uma travessura contra a minha querida mãe, Gabrielina de seu nome, Pereira de apelido. Foi sim, algo vivido, impensado, que não se estuda nem lê. Foi sim, uma coisa singular e rara de repulsa à prepotência e à ditadura de então, ambas indignas de serem vistas com os olhos da cara.

Tudo pronto para eu nascer. Era o dia. Chegou a hora. Bombeiros, ambulâncias e médicos por perto não havia. Bacias de água quente, panos, tesoura, linhas, rebentadas as águas uterinas, contracções, forças esgotadas, suores, gritos, dores, é agora, mas eu é que não saía. O chá de três adubos - azeite, unto e manteiga de vaca - preparado a preceito não fazia qualquer efeito. A dança do ventre da parteira e da parturiente, ambas de pé, frente a frente, separadas pela costumeira almofada parideira, nada. E o mesmo sucedia com a aguardente açucarada e com o chá de cornelho, aquele grão azul-negro, fungão da espiga de centeio e trigo, que se consumia assim e, também, se vendia para a botica. Instala-se o medo, o receio. A sondar a posição do fedelho, a mão besuntada da parteira caseira, conhecedora de todas as manhas dos travessos nascituros, penetra entranhas dentro e começam os sussurros. «Não deu a volta», «não deu a volta» «que tormento», «seja o que Deus quiser», «força, força,  mulher». Contracções, suores, gritos, muitas dores e sangue à mistura. Com pouca sorte, mãe e filho bem podiam sair dali para a sepultura.

Não era, porém, chegada a altura da morte. Era sim chegada a hora do nascimento e da vida. É Agora! “Ele aí vem” dizem para alívio da minha mãe que não ouvia ninguém. “Aí vem”...e vinha mesmo: dobrado, peito colado aos joelhos, pés à testa unidos, cabeça entre os braços estendidos, na posição de remador de regata a tomar balanço, tanto quanto hoje alcanço, o meu olho que não vê foi o primeiro a ver o mundo, mercê de todo aquele sofrimento, trabalhos, dores, gritaria suores e canseiras. Que alívio! Que gostoso é fazer um filho, que doloroso é pari-lo.

Enfim, são, escorreito, rebelde e berrão, não nasci de cabeça, segundo as leis da natureza, nasci a meu jeito, corolário que aceito, pois não digo, com certeza, como Camões: «o dia em que nasci, moura e pereça», antes pelo contrário.

in  «Memórias Minhas - Portugal, Moçambique», ed. 2006

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.