Na confusão passam ambulâncias ouvem-se sirenes estridentes a caminho do hospital há feridos fruto da intolerância da caçadeira e da catana. Não se toleram as gentes a descolonização vai mal e o que se vê não engana. A cidade é o castelo medieval que oferece alguma segurança. É o prólogo da debandada, tempo de arrumar a trouxa e partir como alertaram atempadamente os poetas de Abril que os governantes não viram, não escutaram, não leram, ignoraram. Muita habitação abandonada. O cais abarroto de contentores malas embrulhos num repente. Barcos e aviões cheios de gente que vai e não volta a vir: operários enfermeiros doutores funcionários domésticas lavradores crianças meninos velhos brancos novos civis militares polícias criadas criados senhores serventes mulatos negros assimilados cães pássaros e gatos receosos de perseguição e sevícias... tudo foge há semanas há dias ontem e hoje! É o retorno ao rectângulo à beira mar plantado, território donde partiu Gama, de muitos outros acompanhado a caminho da Índia sem tormenta. É o século dezasseis ao invés, já ninguém por aqui se aguenta no império de lés a lés. Acabaram-se as ilusões. Tudo, tudo se vai embora e o Adamastor mostra agora o seu rosto verdadeiro. Vinga-se do pioneiro que um dia se atreveu a dobrar o cabo da Boa Esperança: o navegador Bartolomeu cantado por Camões. Vinga-se das gerações que aqui fizeram vida, aqui buscaram pão e guarida sem pensarem na contradança. Muito tempo é passado. Correram rios de História. E ao herói ao descobridor ao santo ao político ao mentor que, com artes e manhas, construíram um império, ufanos de batalhas e façanhas todas cobertas de glória, cantando e ocultando fortuna...sucede o vencido, o paupérrimo, o incauto, o desiludido, o ingénuo, o despido retornado. São milhares! Lágrimas de dor e de raiva. Sonhos de vida. Vidas perdidas. Há quem não saiba! Saudade, saudade! Amigos desencontrados. Agora e para sempre. É o preço da opressão e da liberdade. Tanta gente, tanta gente, tanta gente sem perceber coisa nenhuma do futuro, do passado e do presente.
Abílio Pereira de Carvalho
(LM/75)