contraste
O tempo! Que coisa estranha é o tempo! Esse fio invisível e infindável que, de braço dado com o espaço, do infinito vêm e no infinito se perdem. Quem os vê? quem os alcança? quem os mede?
Filhos de deusas, deuses, fadas, parcas, ou de qualquer coisa, sei lá o quê, que todos imaginam, mas ninguém vê, eles deixam as suas marcas por todo lado e em todo o lado põem o seu dedo, o seu pé. Ele é o Sol a marcar o dia; ele é a Lua, a marcar a noite e, unidos ou separados, deram origem ao calendário. O homem, átomo perdido neste universo real e imaginário, dando asas o pensamento, no fadário de medir o tempo, ansioso de agarrá-lo, de espartilhá-lo momento a momento, dividi-lo em segundos, minutos e horas, inventou o relógio. Primeiro o relógio de sol com a geografia, geometria, longitude, matemática e latitude incorporadas em números e graus medidas. Depois outros relógios, outras máquinas, cordas, rodas, engrenagens, mecanismos de precisão sem rodas nem cordas, a marcarem, ao instante, a vida dos povos civilizados, agarrados aos horários dos comboios, das carreiras, dos empregos, das profissões.
Mas como se entende, então, que, assim dividido e medido o tempo, ao mesmo tempo seja, paradoxalmente, para toda a gente, um fugaz instante ou uma infindável eternidade? Que medida distingue o momento de alegria e felicidade do momento de tristeza e ansiedade? Uma hora converte-se num segundo, um segundo numa eternidade. Quem diz que é o mesmo tempo? O tempo, se calhar, fruto do pensamento, varia com o lugar, com o sentimento e com a idade. Demorado é ele na juventude, acelerado é ele na senectude. Na puberdade, ansiosos de liberdade, desejosos de querermos imitar os adultos, de sermos como eles viajados, livres, vividos e cultos, puxamos apressados pelo fio do tempo. Ignoramos, ou não lembramos, que nesse nosso anseio encurtamos a vida. E, já crescidos, tudo continua assim. Desejamos, apressados, o fim-de-semana, para descansar; desejamos, apressados, o fim do mês para receber o ordenado; ansiamos, apressados, pelas férias anuais, ir às praias, viagens, visitas à família, às mães e pais; desejamos, apressados, o pagamento das últimas prestações do carro e da casa; ditos pessoas livres, dos bancos nos tornámos escravos; desejamos, apresados, ver os filhos criados, crescidos, formados, independentes, felizes e realizados.
Enfim, feito isso tudo, sempre a esticar o fio do tempo onde se inscreve o ritmo apressado do mundo, calcorreadas todas as estradas da vida, vencidos todos os obstáculos e arrancados todos os espinhos, puídos todos os caminhos, contornados todos os trilhos e quelhos, chegámos ao fim da picada e damo-nos conta de que estamos velhos. E o fio que tanto esticámos, cheio de nós e de laços, o fio onde deixámos marcados os passos, repositório de todos os nossos sonhos e realizações, o fio que enrolou todas as nossas aspirações, alegrias e tristezas, promessas e frustrações da vida, da mentira e da verdade, rompeu-se, acabou, caput, end, chegou ao fim e alguém, vivo ainda, dá o nó cego final, último laço, põe fim à nossa idade.
Mas o tempo e o espaço, é verdade, essas coisas estranhas que do infinito vêm e no infinito se perdem, prosseguem a sua viagem na senda da eternidade.
Abílio Pereira de Carvalho