Trilhos Serranos

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quarta, 28 outubro 2015 10:55

ESGOTOU-SE O FILÃO

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A palavra FILÃO anda por aí de mão em mão, de mente em mente, na boca de muita gente, escrevente e não escrevente, todos cheios de sabedoria, sem todavia, estou seguro, quaisquer deles jamais ter entrado no escuro, mina adentro, gasómetro aceso, em direcção à veia negra do volfrâmio, do minério que fez da geração anterior à minha, e da minha própria geração, toupeiras humanas a esburacar montes, fosse na horizontal ou na vertical.

 

gasómetros-1-2Na vertical eram poços de bandas escoradas com escadas a descer e a subir do subterrâneo. No topo um SARILHO, simples engenho, um eixo, um lenho, colocado na horizontal com os terminais assentes em dois paus levantados e colocados de pé, em XIS, cruz de Santo André, por forma a que uma corda, enrolando-se nele, à força de punho e dois manípulos em cruzeta, como se diz, trazer à superfície caixotes de terra escavadas nas profundezas. À superfície assim içada, logo a seguir era levada, pois podia estar cheia de "riqueza" negra ou somente vazia, cheia de nada. Na gamela de lavagem, de madeira feita, assente numa linha de água, um nadinha inclinada (às vezes, essa simples invenção humana repetia-se sucessivamente em duas, três ou mais colocadas em fila indiana, aproveitando a mesma corrente) pazada, após pazada, joelhos no chão, cerviz vergada, a mão do volframista sempre a empurrar para a cabeceira da gamela, hágil e à maneira, a terra contra a corrente, ela, a terra, arrastava e levava tudo menos o metal negro e pesado, que punha à vista, tão cobiçado por alemães e ingleses. Era a guerra. Foram anos, semanas, dias, meses (tempo ido), homens, mulheres e crianças e eu incluído.
E bem me lembro de manejar, recarregar e acender o gasómetro. Um "candeeiro" de dois corpos, um a enroscar no outro. O primeiro, o superior enchia-se com água. O segundo, o inferior de carbureto. A ciência para pô-lo a dar luz ao mundo pelo bico, estava no regulador que, pinga a pinga, deixava passar a massa líquida para a massa sólida. A reacção produzia gaz, o acetileno, e, cá o rapaz, ainda pequeno, isso feito, metia-se mina dentro, picareto na mão, até chegar lá ao fundo, no escuro, onde estava o filão que só se deixava de perseguir e escavar, de noite ou de dia, quando estava esgotado ou o produto já não rendia. 
E as minas e os poços lá estão, nos montes, passados todos estes anos, a servirem-me de recordação. Eles são os pergaminhos primeiros da minha aprendizagem da vida, de um saber que me leva à distinção desse filão, desses filões, daqueles que hoje são por aí tão falados pelos tais figurões e sabichões que, sem nunca terem acendido um gasómetro, sem saberem o que isso é, sem nunca terem sido toupeiras humanas ganhando a vida a perseguir no subterráneo uma veia de volfrâmio, para sobreviver, sem nunca terem posto de pé uma Cruz de Santo André, esta é pura verdade, passam a vida a minar a vida alheia e nesses filões enriquecer. Tal vai a HUMANIDADE! Diga-se bem pouco sã nos tempos que correm. 
Mas, uns vivem, outros morrem e, cá para mim, todo o filão se esgota.

Abílio/outubro/2015

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.