Abílio
Abílio
1 - JULGAMENTO
Lá no outro hemisfério, mais propriamente na cidade de Lourenço Marques (que Maputo era e Maputo voltou a sê-lo, coisas da História!) o director de um estabelecimento de ensino particular foi assassinado pela sua própria esposa.
Sentado à secretária, a mulher, que trabalhava no mesmo estabelecimento, entrou escritório dentro e nem deu tempo ao consorte de lhe perguntar por que razões queria ela tirar as balas empilhadas no carregador do revólver e alojá-las no seu peito, dando-lhe reforma antecipada.
Tombou morto, naquele instante. As autoridades policiais e judiciais tomaram conta da ocorrência, a mulher foi detida e interrogada, os autos avolumaram-se com papel bastante no apuramento da verdade e chegou-se ao dia do julgamento, que se desdobrou por várias sessões.
Numa delas, por razões justificadas, um dos elementos do tribunal teve de ausentar-se e o juiz, para não interromper a sessão, chamou um cidadão da assistência para ocupar o lugar vago, ficando, assim, o "tribunal" em condições formais de prosseguir os trabalhos. A partir daí foi para mim claro (eu estive presente em todas as audiências) que a defesa do falecido ficou prejudicada, pois as testemunhas arroladas a favor da ré não eram confrontadas com perguntas da parte contrária. O elemento substituto não tugia nem mugia. Semelhantemente a ele só alguns advogados nomeados "defensores oficiosos" que por aí proliferam hoje nos nossos tribunais que, a expensas do Zé Pagante, assistem ao desenrolar dos trabalhos e, no fim de tudo, levantam-se muito solenemente, ajustam a toga aos ombros e, muito circunspectos, " pedem justiça".
Acabado o julgamento a ré foi condenada a uns tantos anos de prisão e o juiz partiu para outra. Lá, como cá, os processos cobriam-se de pó nas prateleiras e arrastavam-se anos nos tribunais, alguns com a conivência dos escrivães que, na pilha deles, tinham o zelo de a uns sobreporem outros conforme o interesse manifestado por uma ou pelas duas partes. Na minha aldeia cedo aprendi, com os mais idosos, que havia "muita maneira de matar pulgas". E a morosidade da justiça, crónica em Portugal, deve-se, em muitos casos, à subtil teia em que os seus tecelões a enredam.
2 - A FORÇA DA CONSCIÊNCIA
O juiz era uma figura a atirar fisicamente para o asiático. Baixinho, magrinho, rosto ornamentado à Ho Chi Min, vim a encontrá-lo um dia sentado à mesa de um café que ficava no mesmo edifício onde funcionavam, na altura, antes da construção do "Campus Universitário", as faculdades de Letras e de Ciências.
Apresentei-me como professor do estabelecimento de ensino cujo director fora assassinado pela senhora que ele mandara para a cadeia, havia pouco tempo.
Que sim, senhor. Ele estava a preencher uns impressos de matrícula e eu perguntei-lhe se era algum filho seu que ia entrar na universidade. Que não. Era ele próprio que estava a matricular-se em Veterinária. O quê? Que me diz, Meritíssimo Juiz? É isso mesmo, cansei-me de lavrar sentenças contra as minhas convicções por força da matéria lançada nos autos. Ordenam-me os códigos que assim proceda e decida, mesmo ciente de que o juízo proferido assente num chorrilho de mentiras. Vou formar-me em Veterinária, lidar com animais, dar-me com eles e viver em paz comigo mesmo, com a minha consciência.
Fiquei sem palavras, mas ciente de que, antes de morrer, num qualquer canto do planeta, eu poria em letra redonda a minha simpatia por este seu gesto, por esta sua atitude de humanidade, franqueza e humildade.
O 25 de Abril e a consequente descolonização levaram a que pessoas amigas e/ou conhecidas que frequentemente se encontravam nos cafés "Scala" e "Continental", naquela axadrezada cidade do Índico, deixassem de fazê-lo. Nunca mais vi esse cidadão. Mas, face a esta novo espaço W.W.W. que também serve para encontrar pessoas que se perderam nos trilhos da vida, admitindo que ele tenha completado o novo curso e não excluindo a hipótese dele poder vir ler este texto, eu, rural assumido, que nasci e cresci no campo ligado à natureza e aos animais, que vi um veterinário salvar uma vaca do meu pai, a vaca "Roxa"*, dada como morta por causa de uma mamite depois de ter parido, é com todo o prazer, interesse e simpatia que lhe pergunto:
- Como vai o gado, Senhor Doutor?
Abílio Pereira de Carvalho