Trilhos Serranos

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quarta, 04 março 2020 14:09

CAMINHOS DE LUZ

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RESTAUROS DE VIDA

Nascido em 1939, criado numa aldeia serrana - CUJÓ - com características vincadamente medievais no viver coletivo, desde a economia agro-pastoril, às habitações cobertas de colmo, técnicas agrícolas e indústrias artesanais a condizer, o uso das energias animal, humana e hidráulica nas tarefas necessárias, a tal forma de viver se ligavam os equipamentos destinados à iluminação, também eles a remeterem para esses tempos longínquos, básicos e primários, v.g. a agulha de pinheiro, a pinha, a vela, a candeia e lanterna alimentadas a petróleo.

pilha - Cópia

A pilha de bolso - olho de boi ou foco - como já demonstrei em vídeo específico, era uma novidade que rasgava o manto negro da noite e vencia medos e caminhos de novos e velhos a romper tamancos na rede de veredas e carreiros que ligavam os campos à aldeia. O petromax também arribou ali na minha juventude, mas contavam-se pelos dedos da mão os aventureiros que se atreveram a subir à serra. Eles alumiavam principalmente as noites das “récitas”, nalgumas das quais fui interveniente de palco, ensaiado e ensinado por anciãos de letras gordas, amigas de teatro, a velha arte de representar a via.

A energia elétrica era coisa do porvir e, nessa minha idade, ela não era sonhada, nem lembrada, apesar de já ter chegado à vila de Castro Daire, sede do concelho. Foi em 1934.

candeiasMas na minha  aldeia, em toda ela, como nas demais aldeias do Montemuro e arredores, cada moradia se contentava a usar esses utensílios de iluminação. Os candelabros com quatro ou cinco velas, como aqueles que hoje vemos nos filmes e nos saloons do oeste americano, não raro a servirem de alvo aos pistoleiros fanfarrões e ávidos de mostrarem a sua existência e valentia, esses candelabros, dizia, não assentaram arraiais em Cujó, nesses tempos idos. Só na capela que viria a tornar-se Igreja Matriz com a independência da freguesia civil e eclesiástica, em 1949 e 1951, respetivamente.

lustreTudo isto para dizer que, passada a minha juventude nessa escuridão, assim alumiado, não foi sem muitos medos que, mesmo de pilha ou lanterna na mão, calcorreei os caminhos que as obrigações impunham percorrer, v.g. regar uma leira de milho, ir ao moinho zelar pela moenda, baixar a farinha no tremonhado, meter mais cereal na moega etc. etc. ou botar a água num lameiro sequioso para agradecimento da junta de vacas, esses preciosos quadrúpedes auxiliares do homem no granjeio do pão e carreto de lenhas e estrumes.

Tudo isso, antes dos meus olhos se deslumbrarem com a iluminação elétrica do comboio, em Viseu, num dos quais viajei integrado no rancho destinado aos arrozais do Mondego, mais propriamente à QUINTA DE TAVEIRO, colada à estação de ALFARELOS, ali, ao longo da linha férrea “Lisboa/Porto”, onde rodava todo o tipo de comboios e também o “foguete” prateado que levava consigo os meus sonhos de 12/13 anos de idade. Semelhantemente, com a mesma idade, nas vindimas do Douro, menino das cestas de dia e, à noite, de braço dado com os adultos - um, dois, esquerdo, direito - a pisar as uvas no lagar iluminado com lâmpadas elétricas. Acabada a pisa das uvas era certo e seguro que eu saía de lá com as ceroulas e os “feijões” tingidos, bêbados de mosto. Sim, “feijões” pois que outra coisa poderiam ser naquela minha idade de garoto? Outros mundos, outros espaços no mesmo tempo. Era a primeira metade do século XX.

twist - CópiaDepois, com 18 anos idade, no Regimento de Infantaria 14, em Viseu e na Figueira da Foz, esse deslumbramento de luz prosseguiu e ampliou-se. Condutor-auto de espacialidade, numa noite de ronda, em Viseu, o oficial responsável pelo giro noturno na cidade, sabendo-me das bandas de Castro Daire, perguntou-me se eu conhecia os acessos ao MONTE DE SANTA LUZIA. Que sim, “meu alferes”. Ao lado passava a estrada que ligava Viseu a Castro Daire, via Carvalhal. Segue para lá, ordenou. E segui. Contornado o monte, carro virado para a cidade, nem foi preciso sair da viatura para, lá bem do alto, comtemplar a cidade iluminada. E eu que tinha passado anos, no escuro, a comtemplar as estrelas do céu, via agora no chão, todas aquelas luminárias piscando à minha frente. Era como se o céu tivesse descido à terra.

Nunca esqueci tal imagem e a ela fiz referência quando, não há muito tempo, ali fui ver o MUSEU DO QUARTZO com o meu filho mais velho, Nuro e a minha neta Marta, sua filha. Memórias e afetos duradouros e permanentes. Mau grado os eucaliptos que bordejam o monte a dificultarem a panorâmica envolvente. Aquela que retenho desde os 18 anos de idade.

luso - CópiaE o leitor não imagina quanto fiquei grato àquele “oficial de ronda”. Esqueci o seu nome, se é que algum dia o soube. São estas coisas da tropa. Meu...sargento,  meu alferes, meu capitão, etc. etc. vão-se os nomes ficam as patentes e as atitudes. O culto pelas patentes e não pelas pessoas. Era um alferes miliciano que, arriscando pisar o risco, atrevendo-se a sair da rota urbana que competia à ronda, me permitiu aquele espetáculo singular de ver o céu na terra, dali do MONTE DE SANTA LUZIA. Bendito alferes. Foi-se o nome dele, mas ficou a patente e, sobretudo, aquela sua atitude rebelde de querer saber e dar a conhecer aos subordinados algo mais do que a continência obrigatória e o articulado RDM.

Luzes e deslumbramentos delas. Depois vieram as luzes de outras cidades. Das ruas, das casas de texaas - Cópiahabitação, da permanência e intermitência dos reclames publicitários de casas de divertimento, entretenimento e cultura. Os cinemas, os bares e dancings. Vida urbana e cosmopolitismo. O néon apelativo e ofuscante dos edifícios. Os lustres das casas abastadas. Toda a luz, pública ou doméstica, era para mim algo fascinante. Cristal lapidado e faiscante. Todas estas luzes estavam, literalmente, a “anos luz” da lanterna camponesa que, mortiça, alumiou toda a minha juventude na serra. A lanterna que, na sua serventia, me levava ao moinho, me conduzia à rega duma leira de milho, ou alumiava o nascimento de um bezerro. Que mundos! Que diferença entre eles! E eu, com a felicidade, de conhecê-los. O fausto do lustre e a pobreza da lanterna. Ambos, marcas do tempo e do espaço. Ambos a iluminarem-me o conhecimento e a consciência social. Ambos documentos históricos, pergaminhos de arquivo, que não resistiram ao ímpeto da modernidade, da moda, novas tecnologias e mentalidade.

candeeiros par-2 - CópiaDescartáveis, eu os adquiro, os restauro e ressuscito. Tornados inúteis e mortos  eu lhes devolvo a vida. Encontrá-los em espaços de velharias ou de antiguidades e não fazê-lo, era descartar pedaços da minha identidade e da minha juventude. No campo e na cidade. No mundo por onde andei e conheci. Cosmopolita, multicolor e multifacetado. Do Atlântico ao Índico. Por terra, mar e ar. E, nesse meu afã de ressuscitar objetos mortos, o lustre citadino e a lanterna serrana, comprados e tornados vizinhos a coabitar no mesmo espaço, nem faço grande esforço de memória, para lembrar a “leitura” da escola primária, naquele patriótico diálogo entre a CIDADE e a ALDEIA, que aqui colo com toda a pertinência. E para ser mais rigoroso e fiel na letra, boto mão ao texto online de Abílio Mesquita. Curiosa coisa esta de, no campo arqueológico do pensamento, se encontrarem os Abílios que, para além dos nomes, têm algo mais de comum:

 

candeeiros-par-1 - CópiaCidade - Quem és tu, assim tão simples?

Aldeia - E tu, quem és a final?

Cidade - A nobreza da Cidade.

Aldeia - Aldeia de Portugal.

Cidade- Tenho lindas pedrarias,

              Jóias mil de muitas cores...

Aldeia - E eu tenho maior riqueza

              Nas minhas tão lindas flores...

Cidade - Tenho risos, alegrias

              Divertimentos constantes

Aldeia - Tenho a música dos ninhos

              E canções inebriantes.

bolas chaminé - CópiaCidade - Tenho luz de noite a jorros,

              E não me levas a palma.

Aldeia - Tenho o Sol durante o dia,

              De noite a luz da minha alma...

Cidade - Vivo em palácios vistosos

              Que abundam pela Cidade.

Aldeia - E eu num casebre pequeno,

              Que o Sol beija com vaidade!

Cidade- A História fala de mim,

              Porque tenho algum valor...

Aldeia - Também tenho a minha História,

              Escrita com o meu suor

lustreCidade - Tenho o luxo que tu vês

              Próprio da minha grandeza.

Aldeia - E eu o luxo e a vaidade

                 de gostar da singeleza!

Cidade - Sou mais rica do que tu,

              Que nada tens afinal!

Aldeia - Tenho aqui dentro do peito:

             “A ALMA DE PORTUGAL"!!!

O lustre citadino, cansado das suas bazófias de grandeza, ou, quem sabe, do stresse e poluição urbana anti-natureza, remetido ao estatuto de velharia, convive agora com a candeia da aldeia e, pacificamente, assumindo, cada qual, a nobreza das funções para que foram fabricados, restaurados,  são dois artefactos pendurados que fazem parte da “legítima” que deixo aos meus herdeiros sem qualquer cláusula testamentária que os obrigue a mantê-los acesos e no sítio. Educados para viverem em LIBERDADE, sigam eles os seus gostos e a sua vontade. Nada é eterno, ainda que, em verdade vos diga, que todo o artefacto humano, coisa antiga, com estatuto de velharia ou de antiguidade, se preste a desafiar a eternidade.

 

EPÍLOGO


LANTERNA, HUMILDE E TERNA:

multiculor-Multifacetada é a luz que irradias. E nos salões sem medida que alumias, nesse teu recato das mansões que habitas, entre salamaleques catitas, ouviste as intrigas palacianas de burguses e fidalguias. Eu sou o teu contário. Distinto foi nosso fadário. Habitei humilde casinha e esta luz mortiça minha passeou-se livremente pelo campo, enfrentando chuvas e ventanias.  Não ostento, nem berro vaidade. Alumiei a minha verdade de vida e ouvi, consoante e a cada instante, as preces e as imprecações dos camponeses.Quis o destino que partilhassemos o mesmo espaço. E, como se fossemos gente, aqui estamos nós frente a frente. 


LUSTRE VENCIDO RESPONDE: 


A história não esconde a verdade tua e minha. Tu, na tua humilde casinha e eu nos salões que dizes. Refeições de perus, veado, faisões e perdizes tudo refeições  à tripa forra. Mas, a porra dos tempos e das modas puseram fim aos rendimentos dos meus donos provenientes de primícias e foros. Mas aqui chegados, cientes que ambos somos da injustiça mundana, condenados, agora, a viver juntos, preservados que fomos por mão benfazeja mantendo a nossa identidade, o nosso ser e o nosso pensamento, pois seja, sem inveja sejamos amigos e, irmanados, aqui pendurados, testemunharemos toda a verdade no tribunal do tempo.



 https://youtu.be/GyCgDLazBEU




 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.