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sábado, 12 janeiro 2019 19:51

ARRANJO VEGETALISTA NA TORRE DA MATRIZ DE CUJÓ

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 VALOR E SIGNIFICADO DOS SÍMBOLOS

Todos aqueles que viram o meu vídeo feito recentemente sobre a IGREJA MATRIZ de Cujó, (DOCUMENTÁRIO HISTÓRICO alojado no Youtube) que mereceu os elogiosos comentários de António Martinho Santos Teixeira, natural da terra, a residir nos arredores de Viseu, Bártolo Ferreira, natural de Mões, a residir em Lisboa, e Nuro Carvalho, natural de Lourenco Marques, a residir nos arredores de Lisboa, todos se deram conta, certamente, de que referindo-me eu, pormenorizadamente, a quase todos os elementos presentes na narrativa, passei, como “gato por brasas”, sobre o arranjo vegetalista que ornamenta o frontispício da torre, não sem que o tivesse filmado devidamente e, assim, mostrado ao mundo. Nem podia deixar de ser.

ARRANJO E RELÓGIOFi-lo porque, desde logo entendi que, toda a simbólica incorporada nesse trabalho lavrado a maceta e cinzel, merecia, por si só, um texto e um video à parte.

E foi por isso, e pela assumida opção de fazer HISTÓRIA esclarecedora e crítica que lancei um desafio no FACEBOOK, de molde a levar os meus amigos, eles próprios, a observarem esse “ARRANJO VEGETALISTA” lavrado, em alto relevo, visando, com isso, tirar algumas dúvidas minhas e ver confirmado, ou infirmado, por muitos desses amigos, se o artista executante tinha aplicado em tal arranjo as regras da SIMETRIA, facto que, parecendo que sim, à primeira vista, não o era efectivamente.

Apenas alguns amigos se deram ao trabalho de opinar sobre o assunto, aida que mais fossem os que mostraram o seu GOSTO.  

A todos eles deixo os meus agradecimentos pelo contributo dado, já que gosto de aprender com toda a gente e corrigir os erros da interprepação que, eventualmente, faça dos documentos escritos ou outros. Aos restantes, que nada disseram (e são muitos) presto a minha vénia ao seu sapiente silêncio, certos que estão, seguramente, de que nada aprenderiam com o tempo perdido na observação e nos comentários decorrentes.

Todos os que opinaram deram mostras de paciência e vontade de colaborarem no conhecimento e esclarecimento dos elementos que formam essa escultura, por forma conhecermos melhor e a valorizarmos essa singular obra feita. Debruçaram-se sobre as semelhanças e as diferenças, incluindo o significado simbólico de alguns dos elementos presentes. Por isso, todos eles, ainda que eu não referira individualmente os seus contributos, estão enleados nas conclusões seguintes, nas quais esclareço, claro está, e como alguns viram, a questão do artista não ter seguido, no seu todo, as regras da SIMETRIA, mesmo que, à primeira vista, assim pareça. Essa foi a razão do DESAFIO.

De facto, e levando em conta os efeitos da erosão exercidos na pedra desde 1914, bem patentes na parte superior do número “9” e nos extremos do eixo vertical, onde presumo terem estado duas “flores-de-lis” estilizadas, semelhantemente às existentes nos extremos do eixo horizontal, nenhum dos quatro ramos que compõem esse arranjo vegetalista é igual, por forma a darem “simetria” ao conjunto da obra. As folhas e os talos do caule entre elas, diferem de ramo para ramo, mesmo daqueles que aparentam ser iguais de folhas recurvadas para o caule, que diferentes são do primeiro, em cima, à direita. Este tem as folhas recurvadas em sentido contrário. E, por isso, adeus SIMETRIA. «Isso não é connosco, dirão esses ramos, entre si».

ARRANJOPorém, tendo eu, por sabido, que o artista, para além da maceta, do ponteiro e cinzel, usou a régua, o esquadro, o compasso, com a SIMETRIA excluída nos quatro ramos do “arranjo”, ela está patente, todavia, na figura central que envolve a data de 1914. Uma cercadura. Um cerco. Uma muralha, em cujos arcos entronca a ponta de uma “flor-de-lis” estilizada, como que pontas de lança de soldados arremessadas contra ele. Enclausurada esta a data 1914. A liberdade, a ânsia da liberdade, está extramuros.

E se a nossa observação, frente à peça, for feita a partir do eixo vertical da figura, partindo do topo, rodando no sentido contrário aos ponteiros de um relógio, os dois ramos do lado esquerdo curvam, sequenciadamente para dentro, como que formando meia lua. E o mesmo acontece com os ramos da direita, partindo do mesmo ponto, seguindo agora o sentido dos ponteiros do relógio. E é desse único ponto que parte o movimento dos quatro ramos. Mas o mesmo não acontece se partirmos de qualquer outra ponta do eixo horizontal. Todos livres, lavrados naquele retângulom sem qualquer cercadura em torno.

Isso tudo leva-me a concluir que o mestre canteiro, depois de feito o enquadramento geral, usando régua, esquadro e compasso na figura simétrica central, foi martelando, lavrando e cinzelando os ramos ao sabor da inspiração e da ânsia de liberdade lavrada desse modo e projetada também nas OITO folhas que deixou em cada ramo, não por razões simétricas, que não existem, mas por outras. Não escolheu esse número, propriamente por acaso. Ao todo 32 folhas, só nos ramos. Porquê?

As suas preocupações artísticas estavam no produto final, num conjunto harmonioso de belo efeito, onde a simbólica incorporada, mais do que a perfeição posta em cada elemento, era o que mais importava.

E dessa forma sábia de artista, ele deixou para a posteridade, para nossa admiração e estudo, um trabalho que mexe com o nosso pensamento e a nossa forma de ver e estar no mundo. Isto para quem não passa ao lado das coisas do mundo, por mais simples que sejam ou pareçam.

Posto o que, vistas as OITO folhas em cada ramo (ao todo 32) atentemos, agora nas OITO “flores de lis” presentes em toda obra: uma em cada ponta dos dois eixos, vertical e horizontal (duas delas com marcas evidentes da erosão) e quatro na figura central, cada qual a empurrar os arcos da cercadura para dentro.

Elas não estão lá, propriamente por acaso. OITO ao todo, tal como as folhas de cada ramo. E, basta consultar a bibliografia da especialidade (hoje disponível na Internet) para nos inteirarmos do significado do número OITO. Assim:

O número oito éuniversalmente, considerado o símbolo do equilíbrio cósmico. É um número que possui um valor de mediação entre o círculo e o quadrado, entre a terra e o céu, e por isso está relacionado com o mundo intermediário e um simbolismo de equilíbrio central e com a justiça”

E mais:

FLOR DE LIS-1No conjunto ornamental, como vemos, domina a “flor de lis” presente nos quatro quadrantes do conjunto e no remate dos dois eixos - vertical e horizontal - em torno dos quais se acomodam todos os restantes elementos. Nada está ali por acaso. A “flor de lis”, começando po ser utilizada na heráldica, coisas da nobreza e do clero, vulgarizou-se na arquitetura, nos seus adereços e ornamentos, nomeadamente, nas antigas grades de varandas e janelas de ferro forjado. Arte desaparecida, essa. Mas não desapareceu o sentido primevo dessa flor, v.g. entre outros, ela simboliza o “poder, a soberania, a honra, a lealdade e bem assim a pureza de corpo e alma.

Falei na presença do número OITO e do seu valor simbólico. Falei da «flor de lis» e do seu valor simbólico. Tudo somado, chegamos ao significativo número 40, o número de anos que Moisés levou a atravessar o deserto até chegar à TERRA PROMETIDA.

Ora, em 1914, data da construção da torre, já a povoação de Cujó almejava a TERRA PROMETIDA que era tornar-se independente da freguesia de S. Joaninho. Os residentes começaram a erigir o templo. Primeiro foi a torre, 1914. Em 1925, a sacristia. Em 1926, o arco cruzeiro da capela-mor. Em 1932 acabava-se a frontaria com a significativa legenda, em arco, sobre a porta prncipal: SALVE Ó MÃE IMACULADA. Em 1949/1951, esse templo deixaria de ser designado por capela anexa e passaria a chamar-se IGREJA MATRIZ. Estava consumada a independência. Cujó chegara à TERRA PROMETIDA.

Especulação minha? Um bocadinho. Mas procuro arrancar dos símbolos e dos números o que os textos se recusam a dizer. E como eu sou do tempo que viveu a euforia da independência, e conhecedor que sou da ânsia que o povo de Cujó tinha de se libertar de S. Joaninho, não estarei muito errado nesta minha interpretação. 

E nisso me ajudam, igualmente, os símbolos deixados nas costas da Cadeira Paroquial, feita em 1954, (quantos anos vão desde 1914?) pelo tio Domingos Pereira Vaz. Ele conhecia as ânsias do povo. Ele viveu a euforia da Independência. Por isso, em vez de lavrar nesse espaço da cadeira a imagem da PADROEIRA (Nossa Senhora da Conceição) lavrou intencionalmente, as chaves de S. Pedro e a tiara papal. O artista da madeira mostrou, em 1954, o que já havia mostrado o artista da pedra, em 1914: a ideia um povo insubmisso, livre, sem peias nem muralas.

E isso me faz retornar ao arranjo vegetalista e simbolos incorporados . Quem foi o canteiro? Não sei. Sei apenas que nessa torre trabalharam ANTÓNIO PEREIRA CAMELO, de Cujó, e o mestre TEODORO, de Vila Boa, freguesia de Mões. A cada um deles, lá no assento etéreo onde subiram, neste meu afã de fazer “história com gente dentro”, dedico este meu longo apontamento.

FLOR DE LIS-2

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.