Nas duas faces do fuste viradas a nascente lê-se a seguinte inscrição lavrada a escopro em letras maiúsculas de imprensa, algumas delas sobre a aresta que divide as faces:
VIVA
CRISTO
REI
VIIIº
CENTENÁRIO
DA
INDEPENDÊNCIA
E IIIº
DA
RESTAURAÇÃO
DE PORTUGAL
1140 - 1640
Esta LEGENDA está, sem sombra de dúvida, relacionada com os CRUZEIROS alusivos à COMEMORAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL e RESTAURAÇÃO que, em 1940, o GOVERNO, numa clara glorificação do regime vigente - O ESTADO NOVO - mandou levantar em todo o país, com as três datas inscritas - 1140, 1640 e 1940, mas no presente caso, apenas duas: a primeira e a segunda. E isso talvez se deva ao facto da INSCRIÇÃO ser lavrada em monumento pré-existente, como bem o demonstram algumas letras lavradas sobre a aresta que divide duas das oito faces. Mais adiante voltarei a este aspeto.
A ideia destes CRUZEIROS foi lançada na EMISSORA NACIONAL pelo Padre Moreira das Neves, num elogio aos feitos heróicos dos portugueses sob o desígnio de CRISTO desde que ele, em Ourique, apareceu a Afonso Henriques numa CRUZ legendada: "IN HOC SIGNO VINCES". Mas ele, Afonso, um príncipe tão lesto a brandir a espada, peco era no manejo do LATIM e, não decifrando o sinal, valeu-lhe a tradução feita pelo Ermitão Leovigildo Pires de Almeida, natural de Reriz, concelho de Castro Daire. Lida a mensagem, se assim era e Cristo o dizia, confiante na vitória, foi-se aos mouros e ...zaz...zaz...em menos de um "ai", de mistura com muitos "ais" e muitos "uis", cinco reis mouros ficaram sem a cabeça no sítio e os seus exércitos debandaram desiludidos com o seu profeta Maomé. Decorria o ANNO DOMINI 1139. Vencidos os mouros, troou no ar o grito cristão da vitória "POR SANTIAGO! POR SANTIAGO!" e estava escrita a primeira acta da INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL. Feitoheróico que será evocado nos monumentos a erigir a BEM DA NAÇÃO e GLÓRIA DA PÁTRIA, em 1940, como já vimos no CRUZEIRO de Lamelas, no MONTE CABEÇA que, além das datas, tem inscritas nas suas faces as proclamações: "AVE, CRUX SPES UNICA» e "A CRISTO PORTUGAL AGRADECIDO".
Dado o mote na EMISSORA NACIONAL, com o GOVERNO e a IGREJA em sintonia, as Juntas de Freguesia e forças vivas paroquiais, organizaram as respetivas COMISSÕES CENTENÁRIAS por forma a que, com o contributo de todos os moradores, as obras fossem levadas por diante. E assim foi. Com o voluntarismo de uns e a renitência de outros, os CRUZEIROS aí estão espalhados por Portugal inteiro. Uns são autênticas obras de arte (o de CASTRO DAIRE levantado no Jardim Público, com esfera armilar aberta na qual assenta uma CRUZ DE CRISTO, é um deles, outros nem tanto) arrancadas ao granito pela mão de canteiro experimentado, todos a desempenharem a mesma função: uma esclarecedora lição política de como os governantes fazem a HISTÓRIA e da HISTÓRIA se aproveitam quando lhes convém. E eu sei de professores aspirantes a políticos que, apesar da carga histórica e artística que estes monumentos incorporam, nunca se dignaram interrogá-los, nem lê-los, nem, tão pouco, fazer deles objeto de VISITAS DE ESTUDO, hoje tanto em moda no país inteiro. E tão perto que, às vezes, eles estão das escolas!
À data dessa decisão patriótica havia (e há) freguesias que, constituídas por diferentes povoações, desprovidas de verbas para levantarem um monumento em cada uma delas, as Juntas e Comissões, procurando não desagradar ao GOVERNO e à IGREJA, escolheram um sítio urbano a contento das povoações constituintes da freguesia ou paróquia, e, à falta dele, o monte de cota orográfica mais elevada entre elas, por forma a que todas as gentes vissem o MONUMENTO à distância e nele se sentissem representadas. Já vimos o de LAMELAS entre pinheiros e vemos agora o de MÕES.
Convém lembrar que estávamos no tempo em que, ao redor de casas, aldeias e vilas serranas, todos montes, outeiros e demais elevações de terreno estavam rapados de mato, fosse por neles pastarem os rebanhos diariamente, fosse por serem eles que forneciam aos habitantes os matos para estrumes e lenhas. A serra sempre foi uma fonte de energia. Dela extraíam as Juntas da Freguesia o carvão para venderem aos ferreiros locais e assim fazerem dinheiro quando precisavam de levantar um fontanário ou rasgar um acesso necessário, mas para os quais não havia verba nos cofres autárquicos. Dela se extraíam as lenhas para as lareiras, tal como atualmente dela se extrai a energia eólica que alimenta aquecedores eléctricos, televisões, telemóveis e demais tecnologia disponível à informação, entretenimento e cultura.
Em apontamento anterior, onde, por comodidade, fui buscar este respigo explicativo, aludi aos CRUZEIROS das MONTEIRAS e de LAMELAS, prometendo que faria uma crónica e um vídeo à parte sobre freguesia de MÕES. Cá estou, pois, a dar conta do recado.
Com efeito, a opção tomada pela Junta de Freguesia e Comissão Centenária de Mões, no sentido de pouparem dinheiro e, seguramente, desvalorizando ou ignorando o significado e o valor que, aleatória ou historicamente, podemos extrair dos TOPÓNIMOS, bem podem ter ADULTERADO um monumento pré-existente, que devia ter sido preservado tal como era, caso não menosprezemos, como é nosso dever, todos os "documentos" que algo dizem sobre o passado, incluindo a toponímica que, geralmente, arrasta consigo uma tradição oral não explicada.
Neste caso, reza a tradição que aquele sítio e monumento, agora amputado, sempre foram designados por FORCA OU FORQUINHA, dois nomes associados a um outro CRUZEIRO granítico, também ele amputado, sem braços nem cabeça, existente não muito distante dali, assente em plinto cúbico, levantado também sobre um penedo de raiz, no sítio da CERCA, mais perto da povoação, onde se diz ser a passagem obrigatória dos "condenados à forca" que ali ouviam as últimas encomendações pias, se eram heréticos, ou levavam as últimas chicotadas, se eram criminosos comuns. Ali, naquele atalho (quase invisível atualmente) que ligava a povoação ao GÓLGOTA, lá no topo, à cota de 709m de altitude, como já disse.
Seja como for, no que respeita ao fuste octogonal amputado acima referido, atualmente rodeado de pinheiros com o depósito de água ao lado, lida a legenda nele lavrada alusiva aos CRUZEIROS DA INDEPENDÊNCIA, impunha-se fazer o presente registo e questionar as razões do desaparecimento da parte superior que nele encaixava, tais são as evidências físicas disso mesmo. (ver nota no fim do texto)
Habituado a cerzir a História, treinado a unir as pontas soltas deixadas em documentos dispersos, esforçando-me para preencher lacunas em aberto e dar sentido ao feito, ao dito e ao não dito, à falta de informação escrita mais consolidada, sou levado a concluir que, passada a euforia nacionalista e patriótica da INDEPENDÊNCIA e da RESTAURAÇÃO imposta pelos poderes CENTRAL e LOCAL, em 1940, mão ANÓNIMA, arreigada à memória e à designação histórica do sítio e do monumento pré-existente - FORCA/FORQUINHA - esperou a primeira oportunidade para, num momento adequado, fazer desaparecer a parte superior do CRUZEIRO e com esse gesto radical e inesperado, devolver ao sítio e ao monumento, a designação histórica tradicional. Contudo, não sendo fácil rasurar a legenda relativa à INDEPENDÊNCIA e RESTAURAÇÃO com as datas, 1140 e 1640, lá ficou tudo a testemunhar como, quando e porquê os poderes instituídos, por conveniência de momento, são capazes de valorizar/desvalorizar o PASSADO, ao ponto de adulterar documentos e apagar até o seu significado e valor simbólico primevo. Pode dizer-se que aqui, como noutros sítios e ocasiões, a MEMÓRIA ORAL sobreviveu à MUDANÇA e às LETRAS. E vem a propósito lembrar o caso recente de um Governo de Direita eliminar oficialmente o FERIADO NACIONAL DO PRIMEIRO DE DEZEMBRO para, logo a seguir, esse mesmo FERIADO ser reposto oficialmente por um Governo de Esquerda.
Resta dizer apenas que se é muito intrigante o DESAPARECIMENTO da parte superior do MONUMENTO levantado no sítio da FORCA, semelhantementeaodesaparecimento dos braços e da cabeça do CRUZEIRO levantado na CERCA, ambos revestidos com a patine que lhes é própria, os líquenes do tempo, não é menos intrigante o facto de nem um nem outro terem sido objeto de restauro por parte dos poderes POLÍTICOS e RELIGIOSOS locais, tanto mais que, estando os dois monumentos associados, pela forma e significado à CRUZ e, consequentemente, ao sinal "IN HOC SIGNO VINCES", portanto a CRISTO CRUCIFICADO, os PODERES POLÍTICOS e RELIGIOSOS, de MÕES, há cerca de 15 anos, numa atitude revivalista e cristã (para não dizer medieval) se deram ao cuidado de dramatizar e reconstituir, ao vivo, os PASSOS DE VIA SACRA, como atração turística. É mais uma atitude humana registada nos ANAIS DE MÕES que espelha as mentalidades e os valores que movem os protagonistas da acção, tal como aconteceu em 1940. Na altura, o valor da INDEPENDÊNCIA, conseguida em 1139, e da RESTAURAÇÃO em 1640, levaram a primazia sobre os valores, os monumentos e a tradição existentes. Desta vez, a VIDA E MORTE DE CRISTO, lá longe, em Jerusalém, levaram a primazia sobre a VIDA E MORTE DOS HOMENS (naturais da terra?) que, saindo da povoação, passando pelo CRUZEIRO DA CERCA, por força de uma SENTENÇA JUDICIAL (2) foram espiar os seus erros na FORCA, lá no alto mais alto nos arredores de MÕES. Bem pode dizer-se que, tal como estão, neste princípio do século XXI, são dois monumentos de ALMA e de CORPO decepados. (Ver fotos acima)
É isso. A HISTÓRIA é uma permanente descoberta de factos e de atitudes humanas. Um constante FAZER e REFAZER. Nunca é um livro acabado, fechado e lacrado. Cabe, pois, a cada um de nós, que ainda mantemos de pé este pedaço de PORTUGAL PERIFÉRICO, registar as MEMÓRIAS que até nós chegaram (memórias orais, escritas ou em pedra) por forma a permitir que os nossos vindouros prossigam a investigação e, com isso, enriqueçam a HISTÓRIA LOCAL/NACIONAL de modo a fornecerem um melhor esclarecimento dos PENSAMENTOS E DAS OBRAS que nos legaram os nossos antepassados e que nós próprios legamos. Ferramentas usadas na HISTÓRIA CRÍTICA que ajuda a esvaziar de sentido a tão vulgarizada expressão "CONTRA FACTOS NÃO HÁ ARGUMENTOS" tão frequentemente usada para fins de conversa, exatamente quando faltam ARGUMENTOS para contraditar os FACTOS.
(1) Calvário ou Gólgota (em aramaico: Gûlgaltâ; em latim: Calvaria, nome dado ao monte no qual Jesus foi crucificado (...) termo que significa "caveira" ou monte que se assemelha a um crânio.
(2) A última SENTENÇA de que tive conhecimento tem a data de 1844, saída do Tribunal Judicial de Lamego. Reza a pena de morte por enforcamento do assassino do Padre Joaquim Bizarro de Almeida, nos arredores de Folgosa. Estipula o "levantamento da forca na PRAÇA AGUILAR" na vila de Castro Daire. Sobre isso deixei uma crónica ilustrada com o respetivo manuscrito neste meu site "www.trilhos" com o titulo "TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (2)"
NOTA: este trabalho de investigação e de esclarecimento deve-se ao jovem Dr. Filipe Lemos Duarte, natural de Mões que, depois de ler os trabalhos que publiquei sobre os "desaparecidos" PELOURINHOS de ALVA e de CASTRO DAIRE, me conduziu, na sua própria viatura, até aos dois monumentos, em torno dos quais se mantém viva a tradição oral acima explícita. Ele próprio, a meu pedido, limpou o musgo e os líquenes que cobriam as letras tornando possível a LEGENDA escrita em 1940.
Em 1991, a pedido da Junta da Freguesia de Mões, então constituída por RUI FERREIRA MARQUES (Presidente), JOSÉ ROSA AFONSO (secretário) e ANTÓNIO P. DE ALMEIDA BRAGUÊS (Tesoureiro), elaborei o livro "Mões, Terra que já foi concelho", editado por essa Junta. Desde então até agora, tirando a palestra que, a convite do Dr. José Manuel Ferreira, fui convidado a fazer naquela vila por alturas de uma das FEIRAS MEDIEVAIS que têm lugar naquela vila, anualmente; tirando uma pergunta que me fez a minha ex-aluna Dra. Marta Pontes sobre o TOPÓNIMO que me levou a publicar sobre ele um apontamento ilustrado e crítico neste meu site com o título "MÕES - O TOPÓNIMO", jamais vi alguém interessado em conhecer a HISTÓRIA daquela freguesia e dos seus monumentos. Deixo esta nota com vista a entusiasmar os demais jovens naturais do concelho para seguirem o exemplo do Dr. Filipe Lemos Duarte. Sem o seu empenho esta crónica não seria escrita, tal como não seria feito o vídeo que anexo como complemento. Eis p link :
https://youtu.be/xWM3mt-L7GM
NOTA: consultado que foi o "Liv. das Sessões da Junta de Freguesia dos anos de 1934 a 1945", só na ata de 08/12/1940, a fls 41v a 42r/v, encontrei a seguinte referência ao CRUZEIRO DA INDEPENDÊNCIA. Não vi alusão a quaisquer DESPESAS feitas com a obra, como seria de esperar:
"Deliberou-se consertar o caminho que segue para Vila Boa até ao lugar a onde vai ser colocado o cruzeiro da independência nesta freguesia de Mões, no alto da forca".
Presidente: João Rodrigues Pinto
Tesoureiro: Francisco Vitorino
Secretário: Francisco Gomes Ferreira