Nas suas duas fachadas, uma virada para o Coreto e outra para a ESTRADA, temos dois exemplares de arte forjada distintos de todos os anteriormente fotografados e mencionados. Além da base curvada, ambas as grades ostentam as iniciais do primeiro proprietário da moradia e o ano em que se construiu a obra. As iniciais "JAM" (José Almeida Morgado) estão junto à barra de remate superior e o ano, 1914, junto à barra de remate inferior, mesmo ao centro. Dignas e uma paragem, de uma olhadela e de muitas interrogações por parte de todos daqueles que, ávidos de saber, procuram deslizar no fio do tempo e partilhar com os nossos avós os seus trabalhos, os seus anseios, gostos, desgostos, frustrações, realizações, farturas, carências, comodidades e incomodidades.
Visto isto, prossigamos em direção à histórica Fonte dos Peixes e, a partir daí, solicito aos meus amigos leitores que levantem os olhos do chão e, virados para a esquerda, com eles fixadas à altura das varandas, anotem as relíquias de ferro forjado que se vão somando e sucedendo nas fachadas dos edifícios até onde, lá para o lado dos Linhares, acabava a vila, ali bem perto a casa que foi do Padre ANTÓNIO SILVA (edifício ainda hoje de pé) que era e é uma referência do burgo, o Padre que, em tempos de Monarquia, nos fins do século XIX e princípio do século XX, foi diretor do jornal «A VOZ DO PAIVA».
Não é preciso identificar os proprietários, nem fazer um inventário exaustivo de todas elas, já que o objetivo do trabalho, como disse no princípio, se centra numa "homenagem aos mestres da forja, do malho e da bigorna" e, por acréscimo, enriquecer um inédito "banco de dados digital" (hoje, que tanto se dala nos suportes digitais do conhecimento) sobre o nosso passado arquitetónico e, desse modo proporcionar, pro bono, às gerações vindouras o conhecimento concreto daquilo que herdámos e que tivemos, daquilo que soubemos e quisemos preservar, daquilo que tivemos mas não soubemos nem quisemos manter, daquilo que rejeitámos (ou não) como traços materiais identitários de um tempo, de uma comunidade e de uma arte que a modernidade e o uso de diferentes materiais de construção civil assassinaram sem dó nem piedade. E não falo da FERRUGEM como uma das marcas das DESERTIFICAÇÃO, fruto das rançosas políticas nacionais e locais, cujos protagonistas se engasgam a falar de património histórico e de turismo cultural, mas dão provas sobejas de julgarem que isso se fica pelo folclore festivaleiro (local ou importado) e a outras entretengas sazonais que fazem de nós o que somos. Virados para o nosso umbigo, ficamo-nos pelas preocupações pessoais, pelos interesses de compadres e de amigos, e que se dane o coletivo. Tudo comemos, tudo calamos e o "último que vier que apague a luz e que feche a porta". Exagero meu? Olhem estes dois exemplos: só no concelho de Castro Daire dois pelourinhos de granito, símbolos da justiça e da municipalidade podiam evaporar-se do espaço público e refugiarem-se em propriedades privadas. Um, foi o pelourinho de Alva, escondido décadas seguidas num curral de porcos, a suster uma trave de sobrado. Ele está prestes a ser resgatado pelo atual Presidente da União de Freguesias de Mamouros, Alva e Ribolhos, José Pereira Almeida, que, alertado para o assunto, teve sensibilidade e prática política para devolver ao espaço público aquilo que público era.. O outro, o pelourinho da vila de Castro Daire, metido há cerca de dois séculos na adega da antiga família Leitão, também a suster uma trave de sobrado, descoberto que foi por mim, apressei-me a dar conhecimento do achado ao senhor Vereador do Pelouro da Cultura, reenviando-lhe a crónica ilustrada que sobre ele publiquei no meu site (onde permanece com o título «PELOURINHO DE CASTRO DAIRE» e do destinatário nem uma palavra de agradecimento ou de júbilo pela descoberta. Não acham estranho o silêncio a rodear um achado destes?
A luz ainda se não apagou e antes se apague, eu, que sou a ovelha tresmalhada do rebanho, persisto na defesa da «res publica» concelhia e, por isso, desafio os castrenses a acompanharem-me nesta romagem estrada abaixo e, se olharem e virem, não darão por perdido o vosso tempo, recuando no tempo, de olhos postos no tempo futuro. Olhando as grades uma a uma, todas elas diferentes, notarão que naquelas espirais de ferro cravejado, curva e contracurva, não entrou pingo de solda, não andou por perto nenhum aparelho elétrico de soldar, nem nenhuma delas foi beijada pelo faiscante elétrodo, esse lápis comprido, maravilhosa invenção humana, que um dia vi manejado habilmente pelo mestre de soldadura Victor Armando Monteiro dos Santos, alcunhado em Castro Daire por Zapa, bate-chapas de profissão, poeta de poemas lidos, decorados e declamados nas horas vagas onde quer que fosse, com ou sem auditório. Depois de lhe ouvir declamar, ao vivo, o poema DESIDERATA enquanto manejava o martelo de encontro ao tais com a mesma mestria com que manejava o elétrodo e suturava duas latas, com a perfeição com que o um cirurgião sutura o ventre de uma mulher após uma cesariana, seria injusto da minha parte omitir o seu nome nesta minha opção de fazer história com gente dentro, sem olhar ao estatuto social dos protagonistas. De resto, sobre este cidadão escrevi uma crónica publicada no meu site, aquando da sua morte, remetendo para o ano de 1997, data em que ele DECLAMOU esse poema, uma autêntica lição de humanidade. Quem nunca o leu, devia lê-lo. Ele está disponível, em texto, na Google e em vídeo, no Youtube.
(CONTINUA)