Trilhos Serranos

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domingo, 18 setembro 2016 12:29

DESCOLONIZAÇÃO III

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NA CORDA BAMBA

1 - A SENTENÇA 

 Com a expressão palavra lavrada na escritura notarial que fui desenterrar dos meus arquivos, físicos e mentais, terminei a crónica anterior. Vamos, pois, continuar a lavrar o passado,  lembrando que, muito antes de digitalizar e comentar esse documento, já eu tinha deixado nesta minha página (trilhos-serranos) vários aspetos do processo histórico «COLONIZAÇÃO/DESCOLONIZAÇÃO»,  essa CORDA BAMBA onde tanta gente esperançosa de melhor vida se viu a balouçar, seja nos tempos da formação do Império, seja nos tempos da sua queda. Nos tempos da conquista do território e no tempo da sua perda. E mal me ficaria omitir nesta minha lavra, os registos que a mim dizem respeito, uma página de vida pessoal, de sonho, de realização e de desgosto, na sequência da escritura manuscrita em que fui interveniente voluntário. Em que eu e a minha mulher, portanto, sujeitos e objectos, nos confessamos:

1ª página - REDZ 3«Efetivamente devedores da "Caixa Económica do Montepio de Moçambique" da quantia de trezentos e quarenta mil escudos" com juros  "à taxa de onze por cento ao ano" e a obrigação de pagarmos o "capital emprestado no prazo de quinze anos, em cento e oitenta prestações mensais constantes, seguidas e sucessivas de capital e juros de três mil novecentos quarenta e um escudos cada uma, a começar em vinte e oito de Fevereiro do corrente ano, vencendo-se as prestações seguintes no último dia de cada mês. = O pagamento do capital e juros será efetuado nesta cidade, na sede da "Caixa" credora sem necessidade de qualquer aviso ou notificação». 

Assim mesmo. Ponto final, parágrafo. Sentença dada. Tudo previsto muito esmiuçadamente - quantitativo emprestado, juros sobrepostos, tempo global de amortização, prestações mensais, encargos obrigatórios dos devedores sem necessidade de qualquer notificação - tudo esclarecido e previsto menos o risco do  «empurrão político-administrativo e jurídico» que escapou a tão brilhante peça notarial. Nela, toda impregnada do DIREITO vigente, a preceito disso, nada. Tudo na paz dos anjos.

2 - CAMINHOS ANDADOS 

Em crónicas anteriores falei dos "Prazos da Zambézia", das suas "Donas" e do papel das mulheres nesse tempo e tipo de colonização. Falei das guerras entre europeus e nativos, bem acesas nos fins do século XIX, antes, portanto, da dita "Guerra de Libertação, Colonial ou Ultramar" (como gostem de chamar-lhe) dos anos 60 do século XX, aquela de que apenas se fala hoje e se diz ter deixado sequelas traumáticas. Citei historiadores e estudiosos sobre essas temáticas. Falei do "Geraldo sem Pavor", aquele guarda-fios que, na cidade de Tete, frigideira de África, nos anos quarenta/cinquenta do século XX, foi pioneiro das comunicações telefónicas a montar quilómetros de linha, a romper sertão, savana, matagais e floresta, aquele que se "cafrealizou" por força de viver e conviver com os negros e negras, partilhando com eles vida, refeições e sexo. Falei de mim, da minha mota, do amor platónico lido nos meus olhos por aquela colegial interna, a espreitar-me por trás  da rede de vedação do colégio com quem nunca falei, mas com ela me encontrei muitos anos depois no Parque de Campismo de Mil Fontes, ambos docentes, casados e com filhos. Tais são da vida os trilhos. Falei do processo disciplinar que me foi levantado por desobediência, aquele que forçou a minha transferência de Tete para Milange. Sobre isso não omiti as "confidenciais oficiais" que circulavam entre chefes de serviço, visando aquilatar a minha prestação profissional e submissão às hierarquias. A minha rebeldia inata. Do meu inconformismo com o procedimento das chefias. Falei das plantações de chá da Zambézia e dos telefonemas que os seus capatazes faziam diariamente de Milange para Londres, onde estavam os verdadeiros senhores desses domínios agrícolas.

Falei de tudo isso, com o rigor que a memória e as vivências registaram. Afirmei que nunca baixei a cerviz a ninguém e jamais me senti derrotado na saga que, contra ventos e marés, tive de travar com vista à realização do sonho que era em terras de África, longe dos meus pais, substituir a enxada pela caneta. Estudar. Mas para começar, à chegada, que desilusão,  meteram-me na mão uma picareta, e, haja quem aposte, que profissão arranjei eu?  A caneta não cai do céu e toca a abrir uma cova para o poste que, de pé, suspenderia travessas com isoladores de porcelana e linhas telefónicas. digitalizar0389 - CópiaDe costas voltadas aos demais companheiros, as lágrimas rolaram rosto abaixo até ao chão. Metia dó. Deixei eu Cujó, ultrapassei o Equador, enjoei 18 dias metido nos porões do «PÁTRIA» e a caneta encontrada foi um enxadão igual aquele com que, nas tapadas do meu pai, arrancava as torgas para fazer carvão. Que luta tinha eu pela frente, senhores!  Que obstáculos, que montes, que vales, rios e fontes, tinha eu de atravessar naquela profissão de guarda-fios? Atravessar o meu Rubicão? Passei dias a correr ruas e avenidas da cidade metido num Land Rover a reparar as avarias dos telefones e das linhas, a chefiar uma equipa de nativos, a ganhar 2.800$00 mensais. Entrámos em quase todos os andares, moradias e casas comerciais de meia cidade (a metade que começava na Av. Augusto de Castilho, que incluía a zona da Polana e terminava no afastado Restaurante Costa do Sol). Isto até ser transferido para a cidade de Tete, a  pedido de um chefe que me quis na sua equipa de trabalho. Depois fui parar a Milange e daqui, resolvido a deixar a profissão do alicate e do arame, resolvido a deixar o mato, com o sangue na guelra e a rebeldia à flor da pele, rumei a Quelimane, num camião, por estradão de terra batida, donde, de avião, retornei à capital que já conhecia e no mesmo sítio de achava.

3  - A CADEIA

Com a rebeldia  própria da idade, sem emprego, quem diria, enfrentando as adversidades do momento, para não morrer de fome, tudo servia e, da noite para o dia, fui parar onde não queria. Dei por mim na cadeia da Machava, uma autêntica selva humana, onde entrava todo o figurão, todo o bicho careta, desde o ratoneiro principiante ao ladrão encartado. Uma caldeira de muitos temperos, sabores, nações e cores, de muros altos cercada com guaritas salientes e vigilantes nos ângulos da construção. Fazia lembrar as fortalezas portuguesas levantadas ao longo costa para estabelecíamo as feitorias destinadas à recolha de ouro, marfim, escravos e especiarias. Com uma diferença assinalável: as fortalezas visavam dificultar a entrada dos assaltantes e esta construção de cimento com pavilhões dentro, visava evitar a fuga deles. 

Não é treta!  Ali dentro, não é fácil esquecer o som dos portões de ferro a ranger, o som das fechaduras e ferrolhos a rodar "troc...troc...e... troc" que entrava por ouvidos e olhos. O tilintar daqueles molhos de chaves que só de vê-los metia medo. Nem São Pedro, às portas do céu, sentiria o que senti eu, ali, a ver os presos a catar os piolhos na hora do recreio. Digo-o sem receio, prisioneiros e piolhos metidos nas celas aos molhos, duas mantas no chão por cama, quem não reclama justiça naquelas celas de cimento com um balde ao canto para satisfazer das necessidades? O fedor delas, que horror! Que  civilização, que sociedade esta, dita de reabilitação, senhores diretores, senhores juízes e senhores procuradores?  Preso aos livros e ao sonho de lutar por um mundo mais justo, sem receio do futuro, decidido a penetrar na floresta das letras, eu imaginava-me na situação Camilo Castelo Branco, metido na cadeia da Relação do Porto e não na situação do guarda que lhe vigiava os movimentos até ele apagar a luz da vela que lhe consumiu a vista e a saúde em geral. É Moçambique, é Portugal.  Antes a força de uma caneta do que a ameaça de um bacamarte, de um mosquete ou de uma pistola automática.

E pairando assim nas nuvens da imaginação e do pensamento, vendo, ouvindo e lendo, caldeando passado e presente a pensar no futuro,  a dedilhar o teclado de uma máquina de escrever, digo-o com lisura e pés assentes na terra,  em solo duro, passaram-me pelas mãos mandados de prisão e de soltura, de bandidos, vigaristas, falsificadores, assassinos, carteiristas e também de gente séria. Uns, pelo mal que fizeram à comunidade e  outros ali caídos, devido a um momento de infortúnio e de azar. Apanhados nas malhas da lei, só dentro de muros e grades se davam conta de estarem privados da liberdade e das comodidades mínimas devidas a todo o ser humano nado branco, negro, indiano, chinês, mulato ou monhé. Ah, pois é, se alguém pensa que nenhum banqueiro ou político escapa à cadeia, tire o cavalo da chuva. A minha informação objetiva cai aqui que nem uma luva. Eles não escapam, não, mas esses senhores mais não são do que uma gota de água no mar da ralé, dos pilha-galinhas que lá batem com as costelas por roubarem um pão, uma banana, bagatelas, aqueles que, numa altercação, partiram a cana do nariz ao fabiano que ofendeu a sua mãe e também o garanhão que se compraz a andar pelas palhotas caniçadas das favelas a tirar o cabaço às donzelas, ou a sodomizar mufanas desprotegidos e necessitados de dinheiro. Não falo no moleque que, sem família extramuros, cumprida a pena dada, vezeiro, tendo na cadeia afetos seguros, posto em liberdade, desce à cidade e propositadamente espreita o polícia de giro para, à sua frente, pegar numa pedra e, fazendo dela tiro dirigido à montra mais próxima, ser preso novamente em flagrante delito. 

V.GAMA-REDUZAmbiente degradante, irrespirável para o meu gosto, não foi preciso olhar-me ao espelho, fixar-me no rosto e dizer para mim: Abílio, é o fim, chegou a hora, bate com a porta. Vai-te embora. Se necessário, procura o exílio. Assim fiz.  «Arre! um amigo me diz, és como as andorinhas, não paras em lado nenhum, nunca tal vi!". «Deixa lá, retorqui - até aqui foi sempre para voar mais alto».

E era verdade. O tempo que ali passei foi um parêntese muito proveitoso de estudo livresco, burocrático e humano de grande valia para meu "curriculum vitae". 

A cadeia é uma espécie de reserva florestal de biodiversidade protegida. Ali se acolhe a bicharada de toda a espécie. E, tal como na selva, ali se faz a aprendizagem por imitação, cada qual visando a sua sobrevivência, individual, de grupo ou de manada. No comércio feito pela população residente vigora a primitiva troca direta: tabaco por sexo e sexo por outros bens necessários. Na década de sessenta, em Moçambique,  na cadeia da Machava não se comerciava o charro nem este andava ao despique com produto mais caro, cocaína e similares. Ali a inexperiência criminosa volve depressa experiência de gabarito. Entra-se caloiro, sai-se catedrático. Há professores para todas as cadeiras do crime. Ali se conhece verdadeiramente o bicho homem - o homem lobo do homem - por dentro e por fora, seja na situação de guarda, seja na situação de prisioneiro. De caçador e de caçado. Dois exemplos apenas, extraídos da densa floresta que não escaparam à mira deste atirador temporário e furtivo: ali vi, em carne e osso, a cobardia e a falta de humanidade muito empertigadas, muito inchadas, dentro da farda de alguns guardas, senhores de todo o poder,  impondo medo e obediência  aos reclusos que tinham sob a sua vigilância e cuidado. E vi também, dentro da farda listada de alguns reclusos, a humildade e a dignidade obedecerem às ordens dadas, tolerantes e complacentes com aqueles que, tão arbitrária e robustamente, resplandeciam ignorância e boçalidade. 

4 - A LIBERTAÇÃO 

Era isso. E a mim faltava-me dar o salto da libertação, um salto em frente, condizente com o meu caráter, personalidade e maneira de olhar o mundo e o meu semelhante. Num instante (que foram anos) voei nas asas da liberdade e do pensamento fundamentado,  credenciado e autenticado por um diploma da Universidade (não do crime) mas da Ciência Sociais e das Letras. Tentei e consegui! Só não consegui foi fugir às picadas dos mosquitos que se alimentavam do meu sangue à tripa forra. O resultado eram os ataques anuais de paludismo, febres altas alternando com tremores de frio ártico e os lençóis alagados de suor. Horas de sofrimento inaudito. Felizmente que a maleita recuava à força da receita da Resoquina ou Camoquina. Viva a ciência! Era isso.  Depois de anos em quezília com a sorte, malária, saúde e vida, Casamento - REdzenfrentando tenazmente  o futuro e seus contratempos, agarrado ao sonho de partida, aquele que me impeliu a embarcar para  terras distantes, longe de pai e mãe, longe da família, estava em condições de constituir família. E foi o namoro. E foi o casamento. E foi a compra de casa. E foi mobilar do ninho feito com o esforço e jeito de um passarinho. Mas, tal qual a história o reza, ninho mobilado e habitado, em breve foi desfeito pela DESCOLONIZAÇÃO, esse gavião que, de voo picado, unhas aduncas, não deu alternativa à presa. Tanto trabalho, tanta esperança, tanta coragem,  tudo sabido e tudo aqui resumido a pretexto de uma escritura  de empréstimo, de compra e de hipoteca lavrada e assinada, num Cartório Notarial.  Ela é um documento jurídico-administrativo colonial tão fiel aos factos, quanto eu sou nos relatos que aqui deixo com a lisura da consciência, do saber, das alegrias e desgostos vividos. 

Passaram anos. Andados foram muitos caminhos por onde se arrastaram a mocidade, os anseios, a força de vencer, a confiança, a esperança, os sonhos realizados e os desenganos sofridos. Sem desistência. Mesmo que obrigados (eu e quantos mais?)  a refazer a vida, já no meio da vida. No percurso, no que a mim respeita, a caneta tomou efetivamente o lugar da enxada. Do combate com o futuro em campo aberto, sempre de peito feito, sem medo dele,  foi o que restou. Mas, aos 77 anos, receoso, desalentado - o que a idade faz - rendido ao passado, deixando o futuro em paz, cá estou eu a dar disso provas seguras. Resta-me escrever assim, livremente, sem vénias nem mesuras. E fazê-lo é voltar à terra dos meus pais e, em memória deles e para lembrança futura dos meus filhos e netos, fazer da caneta relha de arado e, nesse campo imaginado, a mão metida no celeiro do passado, braço estendido, gesto rasgado, dispersar a esmo mil sementes, não já no agro, mas nas mentes.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.