Uma brisa daquelas que tão meigamente acaricia o rosto de quem atravessa searas e montados alentejanos (oh! como me lembro disso, quando por ali andava à caça ou em passeio com a família!) trouxe até às narinas do tabelião o cheiro identificador de uma numerosa vara de «patas pretas» «ron...ron...ron...» cada porco, de per si, a encher a morca de bolotas que, prodigamente, sobreiros e azinheiras atiravam à terra impelidos por aquela ciência natural e oculta de se verem reproduzidos em redor, ao mesmo tempo que aliviavam o peso da frondosa copa.
Na Universidade de Coimbra, quando estudante, tinha lido o «Reino da Estupidez» de Melo Franco, manuscrito que causticava a «viradeira» trazida por D. Maria, senhora que pôs o Marquês de Pombal fora dos Paços Reais, exatamente por ele ter procedido à reforma daquela instituição universitária. Ainda hoje, a tantos anos de distância, vale a pena ler o "Reino da Estupidez" que veio a ser impresso e anda por aí em forma de livro. Nesse manuscrito vira que os presuntos da Beira chegavam a Coimbra e untavam a barbela dos Lentes, uma espécie de suborno para eles ignorarem a boémia dos estudantes e, passados os anos respetivos, lhes atribuírem os diplomas de «doutores», agradando aos seus progenitores. Mas um presunto «pata preta» era irresistível. Uma «guitarra» dessas, com cordas afinadas nos montados alentejanos, «ron...ron...ron...»tinha um som e um tom bem mais apetecível do que qualquer «guitarra bísara» de Lamego, por mais colorida que fosse fama que estas tinham nos mercados de carnes fumadas.
É isso. O historiador não tem alternativa. Ele, sem se pôr a inventar ou a dar palpites (não falta por aí quem pense que a História se faz por palpites), se quiser tirar sumo bastante do fruto ressequido pelo tempo (este velho testamento que tem entre mãos, fruto já de si pouco atrativo) forçado é que dê voltas e reviravoltas, que corra o país, que vasculhe o baú onde arquivou o saber e a experiência das suas lides académicas e, por essa forma, prosseguir a tarefa de trazer aos tempos de hoje o conteúdo desses documentos humanos, indiferentemente do dia, mês ano em que foram feitos, lavrados, fechados, lacrados e abertos. Dá-los à luz nos tempos da Internet, do Facebook, do twiter, das abreviadas «sms», neste tempo apressado por nós vivido, onde o «que» se escreve «k», o «quando» simplesmente «q», o historiador, dizia eu, bem pode correr o risco de não ser lido, mas, apesar disso, por deveres de ofício, tem a obrigação imperiosa de divulgar o conteúdo de toda e qualquer peça processual humana arquivada no Tribunal do Tempo. Só assim, a todo o tempo, os interessados, conhecendo-as, (aqueles que não passem a vida enredados em futilidades) podem ajuizar e sentir os ventos que enfunavam os veleiros que navegavam nos mares das mentalidades e dos valores que determinavam os pensares e os agires dos nossos antepassados. Veleiros que nos levavam, a nós, à descoberta de «novos mundos», os mundos eternamente navegados, mas também eternamente desconhecidos.
Chegado a São Marcos de Ataboeira, lá estava ela, a mulher que o mandara chamar, Perpetua Joaquina Carlado. Moradora naquele povo, entendeu ser o tempo de ditar as suas últimas vontades. Erao dia oito de Março, de 1867. Não se tratava de uma mulher qualquer. Solteira, sem ascendentes e descendentes forçados, era possuidora de herdades e fazendas bastantes que «para bem de sua alma e descargo de sua consciência», entendeu distribuir por parentes, amigos, afilhados e criados e, dessa maneira, buscar o sossego eterno.
E ele, tabelião, João António Figueira, ali estava pronto a escrever um bom ditado. Pronto a deixar manuscritas as preocupações primeiras e últimas de mais uma pessoa que vendo aproximar-se o fim da sua vida terrena e crente na vida do além se dispõe a abalar sim, mas não sem primeiro ditar as últimas vontades, aquelas que piamente seriam cumpridas pelo seu testamenteiro e, dessa forma, o seu "poder e mando" se prolongar na terra, mesmo depois de morta.
Desta feita, e para bem se apurar de que senhora se trata, o testamento, semelhantemente a tantos outros, tem logo à entrada os nomes de «Jesus, Maria e José», depois seguidos pela declaração de que a testadora é «Christã e Catholica Romana, que como tal sempre tem vivido e se propunha morrer, quando Deus Nosso Senhor for servido separar a sua alma de seu corpo».
Quando isso acontecesse determinava que o seu cadáver fosse «conduzido por quatro criados ou afilhados pobres», deixando a cada um, pelo seu trabalho, «quatrocentos e oitenta reis».
Pois é. Diz o povo que «quem tem amigos não morre na forca» e aqui temos uma prova escrita de que «afilhados pobres» sempre podem acalentar a esperança de virem a receber as migalhas caídas da lauta mesa dos "padrinhos ricos", seja em vida deles, seja ao fim dela, por via testamentária.
Dito isso, tomadas essas providências, segue-se a enumeração dos bens da alma. Apelo ao amigo leitor que tenha paciência e leia o texto digitalizado que se segue. Não me faz nenhum favor. Mais trabalho e paciência tive eu em lê-lo, digitalizá-lo e comentá-lo. Mas se é daqueles leitores que já sabe tudo e que nada aprende com a História, parta já para outra freguesia, pois ou vou continuar a pregar o sermão, mesmo que ninguém mo tenha encomendado.
Comecemos pelo rosário de missas, em número e custos diferentes, distribuídas segundo o seu melhor entendimento. Ora veja-se:
«Item, disse ela testadora que quer que no dia septimo depois do seu falecimento se lhe faça um officio. Item disse ela testadora que se lhe digam as missas seguintes: ao Anjo da Sua Guarda, uma. À Santa do seu nome, outra. A São Marcos, outra. A São José, outra. A Nossa Senhora, outra. Pelas almas do porgatorio (sic) outra. Todas estas de esmola de duzentos e quarenta reis cada uma, pelas almas dos seus pais, um trintário, pelas almas de seus irmãos em igual um trintário, pelas almas de seus irmãos Luis Antonio Carlado e João de Viseu outro trintario, pelas almas de seus primos o Prior Antonio Joaquim do Rego, José Joaquim do Rego, outro trintário, pelas almas de suas criadas Iria e Thomasia, seis missas por ambas e por sua alma e encargos oito trintários e todas estas serão satisfeitas com a esmola de cento sessenta reis cada uma.
Arrumadas as missas, em unidades ou trintários, estabelecidos os seus preços, identificados os beneficiados delas, (um deles foi o irmão João de Viseu, nome a que voltarei mais adiante) , incluindo os Santos da sua devoção, Perpetua procede à distribuição de pão, de casas, campos, rendas e até ao perdão de dívidas. Assim:
«Item disse ela testadora que se dê por amor de Deus a pobres necessitados trinta alqueires de farinha em pão cozido que serão distribuídos por seu testamenteiro que adiante nomeará como bem lhe aprouver; e bem assim que seu testamenteiro distribua pelos pobres necessitados d'esta freguesia de São Marcos cento e vinte alqueires de trigo o que satisfará dentro de um anno depois do seu falecimento. Item disse ela testadora que se dê por amor de Deus a pobres necessitados da freguesia de Bringel a primeira renda que se cobrar na sua herdade do Malagão depois do seu falecimento. Item disse ela testadora que perdoa, pelo amor de Deus, a Francisco Felicidade e Luis, filhos de seu primo António Francisco da Corte Ruiva tudo quanto os mesmos lhe deverem ao tempo do seu falecimento. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a Luís António que vive em companhia d'ela testadora a metade do moradio da sua herdade da Corte Ruiva para o mesmo morar enquanto for vivo e por sua morte passarão para o herdeiro a quem ficar a herdade e caso o mesmo Luís António não queira ir morar para aquelas casas passarão as mesmas imediatamente para a herdade. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a Marcos da Silva d'esta aldeia sessenta mil reis. Item disse ela testadora que deixa a sua afilhada Joanna da Piedade mulher de Francisco Modesto d'este Povo a morada de casas em que a mesma hoje reside, entrando para esta morada uma pequena casa que está no quintal de outro morada de que adiante e em seguida vai dispor e bem assim a metade do fruto de umas oliveiras e isto durante sua vida e por morte d'esta passarão para os filhos da mesma. Item disse ela testadora que deixa por amor de Deus a sua comadre Perpetua Thomasia casada com Antonio Alexandre, d'este mesmo Povo uma morada de casas contiguas às supra, tirando desta morada, já se sabe, a casa do quintal e metade do fruto das duas oliveiras. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a seu afilhado Felício, deste mesmo Povo, duas casas e um casarão junto às casas de Maria Antónia e a cerca de vinha. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a cada uma das suas comadres, Domingas da Silva e Catharina Antónia tres alqueires de trigo. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a cada um dos seus afilhados de baptismo mil reis; igual quantia deixa a cada um dos seus criados d'anno que estiverem servindo a sua casa ao tempo do seu falecimento. Item disse ela testadora que deixa pelo amor de Deus a suas sobrinhas, filhas do seu sobrinho António de Mira Carneiro de Barros a herdade das Tezulas sita no concelho de Almodovar com tudo à mesma pertencente e bem assim mais a herdade do Malagão e duas courelas do Monte Corvo, ambas sitas n'esta freguesia de São Marcos e outro sim lhe deixa trinta alqueires de trigo de renda em cada uma imposta nas partes que tem na herdade de Entre as Ribeiras na freguesia de Castro Verde e mais lhe deixa uma morada de casas e quintal sitas junto às casas de residência do Reverendo Prior e um celeiro sito junto às casas de José Fonteira com declaração poerem que estes legados, caso algum dos referidos legatários falecer sem ter filhos passará a parte que lhe couber para os outros irmãos sempre por igual parte. Item disse ela testadora que deixa a sua prima Dona Marianna Perpetua Lança, da vila de Castro Verde, as partes que tem na herdade de Entre as Ribeiras com a pensão acima declarada. Item disse ela testadora que deixa a s sobrinha, Anna Perpetua casada com Cesário de Brito do Monte do Laranjo a sua herdade da Carvoeira com a obrigação de dar todos os annos doze alqueires e meio de trigo a cada um dos irmãos da legatária Maria dos Remedios e José Guerreiro, isto para todo o sempre. Item disse ela testadora que pede e roga a Manoel Guerreiro, morador no Tromelo, freguesia de Martim Longo lhe faça a obra pia de ser testamenteiro, em falta d'este a Cesario de Brito, do Monte do Laranjo e pelo trabalho deixa, àquele que for testamenteiro, a parte que tem na herdade do Cartulo com a pensão de dar todos os annos a Luis Antonio que vive em companhia d'ela testadora dez alqueires de trigo. Item disse esta testadora que deixa a cada um dos filhos de seus primos José Mestre e Diogo António que vivos forem ao tempo do seu falecimento de esmola digo, falecimento dois mil e quatrocentos reis. Item disse ela testadora que deixa e institui por sua única e universal herdeira de tudo quanto remanescer de seus bens e fazendas, depois de pagos todos os seus legados n'este declarados a sua prima Maria dos Remédios casada com Manoel Guerreiro, morador no Tromelo. Item disse ela testadora que quer e é sua vontade que a dita sua herdeira venha morar e fazer o seu estabelecimento para a casa que ela hoje habita e estabelecer ali sua lavoura, uma vez que assim o não faça é sua vontade que toda a herança passe imediatamente para as filhas da mesma sua herdeira por igual parte. E por esta forma e maneira disse ela testadora dará este seu testamento por concluído, findo e acabado, o qual sendo-lhe por mim lido disse que estava à sua vontade e conforme o havia dictado e que por isso ia assignar e me pedia que tambem o assinasse ao que satisfiz no dia, mes e anno retro declarados».
Longa transcrição esta. Mas ela não podia deixar de ser feita. Solteira, «Christã e Catholica Romana que como tal sempre tem vivido e propunha morrer», esta solteirona não deixa no desamparo o seu companheiro de vida "Luís António que vive em sua companhia», deixando-lhe «a metade do moradio da sua herdade da Corte Ruiva para o mesmo morar enquanto vivo», mais a «pensão anual de dez alqueires de trigo» imposta na parte que ela tinha na herdade do Cartulo, propriedade que, pelo serviço pio prestado, deixava ao testamenteiro primeiramente nomeado e, na falta dele, a «Cesario de Brito, do Monte do Laranjo». E ciente morria de que, fosse qual deles fosse, a sua vontade seria cumprida.
As leis relacionadas com a "união de facto", protegendo o companheiro de vida, eram leis do porvir. Perpetua não frequentou a Universidade de Coimbra, nem foi deputada no Parlamento, mas, nos meados do século XIX, entendeu que era de inteira justiça não deixar o companheiro com uma mão à frente e outra a trás.
continua)