«A frase e estilo nem se remonta sublime, nem se abate rasteiro: é natural sem embaraço, corrente sem tropeço, formoso sem artifício. É crespo sem aspereza, grave sem arrogância, fecundo sem demasia, alegre sem indecência, eloquente sem pompa, discreto sem afectação. O que mais me agrada neste claríssimo autor é a distinção e clareza com que propõe e resolve os pontos altíssimos que trata. Este é o génio da verdade, andar acompanhado da luz: «emitte lucem tuam & veritatem tuam».
Assim me parece. Mas depois do que deixei escrito nas crónicas anteriores é tempo de dizer as razões deste meu entusiasmo de a gora pela leitura integral da «Floresta ou Sylva?» do Padre Manuel Bernardes.
A foto ao lado mostra Cujó nos 50, do século XX. Chegada da procissão ao Largo das Marinheiras. Casas cobertas de colmo até onde a câmara alcança. Foto de autor desconhecido.
É que morando este livro, esquecido em qualquer copeira fumarenta na aldeia de Cujó, minha terra natal, o meu primeiro contacto com este autor, figura grande da nossa Literatura, foi a milhares de quilómetros de distância da terra onde nasci e cresci, nesse mundo serrano e rudo, onde, segundo as estações do ano, eu fazia, aprendia e lia tudo, Almanaques, Bordas d´Aguas, Seringadores, Evangelhos novos e velhos, a «Rosa do Adro» e os seus amores, menos pôr a mão e a vista na «Floresta, ou Sylva?»..
Quando isso aconteceu, pelo processo que já referi, logo me transportei a Lourenço Marques (hoje Maputo), cidade banhada pelo Índico, e vi-me nos meus tempos de liceu, na qualidade de trabalhador-estudante, agarrado ao Latim e às demais disciplinas do campo das Letras, incluindo a «História da Literatura Portuguesa», onde figuravam, cronologicamente, os autores, as obras por si produzidas e o estilo pessoal e/ou de escola como marca de distinção.
Uma das que constava no rol da produção do Padre Manuel Bernardes era a «Floresta ou Silva de Vários Apotegmas»», mas essa (primeiro tomo) ficara em Cujó, guardada em qualquer copeira, a absorver o fumo das giestas verdes que, à falta de lenha seca, eram queimadas para aquecimento das casas. Essa, dizia, ficara a servir de arquivo aos recibos de pagamento de impostos e apontamentos sobre como cuidar do gado, como já referi em crónica anterior. Ali a História, a Literatura e a Escrita lia-se e escrevia-se em «bustrophedon», mesmo por aqueles que almejavam não passar a vida inteira agarrados ao arado ou à charrua, rego para lá, rego para cá, em diálogo permanente com os animais: «tente Roxa* ó rego».
A foto acima mostra-nos as medas de centeio na eira da Fraga das Pombas. Foto de A.P.Carvalho, 1975
A floresta (não a «Floresta» das letras) mas a das árvores, carvalhos e amieiros necessários às armações das casas, à lenha para lareiras e cepos para tamancos, existia nos lugares distantes da Filharada, do Porto da Grade, em Vale Carvalhinho, na Touça e outros sítios onde a natureza era pródiga. As silvas (não a «Sylva» do P. M. Bernardes), era uma trabalheira dar-lhes luta para elas não conquistarem o terreno conquistado para pastos, semeadura e plantio de um ou outro bacelo americano, para se produzir o vinho «catovo». Escolhos da vida. Vinho morangueiro hoje proibido, bebê-lo naquele tempo era melhor do que nada. O vinho digno desse nome, baptizado ou não pelo taberneiro, licor dos deuses que, na altura, mantinha as tabernas alegres e era usado na Consagração na Missa vinha da região do Douro, Lamego, Tarouca e Eira Queimada.
Mas diga-se de passagem que, tirando os dias de festa, domingos, dias santificados e romarias, segadas e malhadas, o serrano não dispunha de adega, tonéis ou pipos ao seu dispor quotidiano. No vinho, como em tudo, praticava a abstinência, o jejum forçados e sabia isso muito bem, mesmo sem as lições do Padre Manuel Bernardes: Vejamos:
«De D. João de Palafox Abominando este Prelado o uso do vinho puro dizia: «que só era bom para consagrar, porque ali totalmente muda de substância e que o pecado mais digno de perdão era o dos taverneiros que aguavam o vinho, porque com esta transformação atalhavam muitos danos de corpo e alma».
E, exposta a muleta em que vai apoiar o seu argumento, aqui como em todo o livro, O Padre Manuel Bernardes escreve:
«EXPLICAÇÃO E PARERGON. «Fala do vinho que se prepara para a missa ao consagrar-se já não deve ser puro, mas temperado com água (por preceito da Igreja em muitos concílios) ainda que modicíssima, como diz o Florentino. Porém se a não pudesse o calor do vinho converter em si antes da Consagração ainda assim querem gravíssimos AA. Que sobrevindo a Consagração, fica transubstanciada imediatamente no Sangue de Cristo e que nada está naquele Cálice que os fiéis não devam adorar. Ocorre-me de caminho que não somente o vinho para a missa deve ser puro, senão que talvez se conserva puro o vinho por virtude da missa. S. Pedro Maurício, chamado o Venerável, Abade da memorável Família Cluniacense nas suas Constituições ordena que o monge que tiver a sue cargo tirar vinho para as missas de noite de Natal, tire um pouco de cada tonel ou vasilha de todas as que estiverem na adega, porquanto diz que há experiência certa de que a vasilha donde se tirou o vinho para as Missas daquela felicíssima noite, não se turva, nem esfria, nem azeda» (pp 11).
Esta última foto mosra a malhada na «Eida dos Tamques». Foto de A.P.Carvalho, 1975
Em Cujó, terra de lavradores, pedreiros, clérigos, doutores e freiras, continua a não haver, adegas, tonéis e pipas, dispostas a darem o seu contributo à Consagração, segundo o conselho de S. Pedro Maurício, o Venerável. O solo e o clima não são propícios à produção da uva de mesa, à trincadeira, ao quilhão-de-galo e mais umas tantas que são as delícias de outras terras e de outras gentes.
Mas já que, segundo o Venerável, «há ciência certa» de que os vinhos extraídos do vasilhame na noite de Natal com destino às missas, não turvam nem azedam, excluindo, claro está, Cujó, creio que os enólogos do século XXI, aqueles que hoje fazem chegar à mesas portuguesas e estrangeiras vinhos de alta qualidade (do Douro, do Dão, do Alentejo e outros) nada perderão com os ensinamentos extraídos, agora mesmo, da «Floresta ou Sylva?» do padre Manuel Bernardes, que aqui deixo. Eu por cá continuarei em próxima crónica.
* Para saber mais sobre a vaca Roxa ler artigo específico neste site.
Abílio Pereira de Carvalho
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