«Das perfeições inefáveis deste Senhor Supremo, e só verdadeiramente Senhor, e todos os pontos tocantes à nossa Fé e direcção da vida cristã e virtuosa fala o autor tão alta e doutamente que neste livro se admira um prodigioso compêndio de Teologia Escolástica, Expositiva, Dogmática, Moral e Mística ou Ascética, a que se ajuntam vastas e sólidas notícias de um e de outro Direito Civil e Canónico, da Filosofia, Matemática, Medicina, enfim, todas as ciências, em tal forma que neste livro terão os doutos copiosamente, não só livro, mas livraria».
Capas cosidas com fio norte, não andou mal o sapateiro «ir além do chinelo»
Não é um «livro», é uma «livraria».
Face ao juízo de tão douto analista, pergunto-me qual o serrano de letras gordas, que transpira mais a assinar o seu nome numa folha de papel do que a lavrar uma jeira de milho, iria adquirir semelhante obra. O seu conteúdo afigura-se-me artilharia pesada demais para a generalidade das pessoas de Cujó, que, século XIX e primeira metade do século XX, digamos que, no campo da escrita e da leitura (ainda que houvesse quem soubesse ler e escrever) estavam na fase do canhangulo de carregar pela boca.
Não um é «livro», é uma «livraria».
O autor partindo de um dito histórico, filosófico, moral ou ético, discorre e constrói o edifício que chegou aos nossos dias. E diga-se de passagem, alguns dos seus ensinamentos, bem ao contrário de outros tantos, tem plena actualidade.
Já lá muito no interior da «Floresta», no título da «Amizade» encontrei a seguinte «flor» ou «sylva», como queiram:
«De Diógenes Filósofo» «Perguntado Diógenes que tratamento dava El-Rei Dionísio a seus amigos, respondeu: «usa deles como de vasos, enquanto cheios, despejá-los; quando já vazios, despedi-los».
A seguir de tal «apotegma» o Padre Manuel Bernardes, acrescenta:
«REFLEXÃO E SINÓNIMOS» Conforme a isto, o estado de Dionísio era de Rei, mas a condição era de vulgo, porque: «vulgus amicitias utilitate probat». Para com o vulgo a amizade avalia-se pela utilidade». (pp 143)
Quem dirá que esta sentença perdeu actualidade? Quem é que não cultiva as suas amizades por pura conveniência e interesse? Mas a sentença latina parece assentar mais em «filhos de algo» do que no «vulgo», na gente humilde, onde as amizades e solidareidades nos parecem mais sólidas. Feito este reparo, adiante.
Lá muito mais para a interior, no capítulo da «Avareza», podemos ler:
«Alguns lugares ludosos, onde o porco avarento se revolve e engorda».
E logo a seguir:
«Apontam-se aqui alguns casos particulares, ou ocasiões em que a sordidez deste vício se exercita para que uns o deixem, outros o evitem e todos o abominem. Primeiramente começando da Casa de Deus, é avareza: Exercitar o clérigo negociação e mercancia e dos benefícios eclesiásticos entesourar o remanescente à sua côngrua e honesta sustentação, devendo-se dar de esmola aos pobres, conforme a sentença de todos os teólogos, ou por obrigação de justiça, como uns dizem, ou ao menos de caridade, como dizem outros. (?) Obrigar os criados, os escravos e aprendizes a trabalhar nos dias de guarda, sem racionável necessidade, só para acrescentar os lucros, ameaçando castigo, ou expulsão se não obedecerem, como se não estivessem em primeiro lugar obrigados a obedecer ao preceito divino eclesiástico». (pp. 429-430)
Parece-me que, nestes princípios do século XXI, penetrar na «Floresta» do Padre Manuel Bernardes, não é dar por perdido o tempo que se passa a cirandar por entre as suas páginas e a reflectir sobre os apotegmas que ele deixou no vernáculo ou em latim.
Prosseguiremos em próxima crónica.
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