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segunda, 16 maio 2016 12:36

CUJÓ - RETALHOS DE HISTÓRIA III

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No parecer favorável à impressão do livro «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas» elaborado, em 1702, pelo o censor da Mesa do Santo Ofício, este, a linhas tantas, sublinha o supremo valor da obra. Vejamos em ortografia actual as suas palavras:

 

IMG 1684«Das perfeições inefáveis deste Senhor Supremo, e só verdadeiramente Senhor, e todos os pontos tocantes à nossa Fé e direcção da vida cristã e virtuosa fala o autor tão alta e doutamente que neste livro se admira um prodigioso compêndio de Teologia Escolástica, Expositiva, Dogmática, Moral e Mística ou Ascética, a que se ajuntam vastas e sólidas notícias de um e de outro Direito Civil e Canónico, da Filosofia, Matemática, Medicina, enfim, todas as ciências, em tal forma que neste livro terão os doutos copiosamente, não só livro, mas livraria».
 

 Capas cosidas com fio norte, não andou mal o sapateiro «ir além do chinelo»

Não é um «livro», é uma «livraria».

 Face ao juízo de tão douto analista, pergunto-me qual o serrano de letras gordas, que transpira mais a assinar o seu nome numa folha de papel do que a lavrar uma jeira de milho, iria adquirir semelhante obra. O seu conteúdo afigura-se-me artilharia pesada demais para a generalidade das pessoas de Cujó, que, século XIX e primeira metade do século XX, digamos que, no campo da escrita e da leitura (ainda que houvesse quem soubesse ler e escrever)  estavam na fase do canhangulo de carregar pela boca.

 Não um é «livro», é uma «livraria».

 O autor partindo de um dito histórico, filosófico, moral ou ético, discorre e constrói o edifício que chegou aos nossos dias. E diga-se de passagem, alguns dos seus ensinamentos, bem ao contrário de outros tantos, tem plena actualidade.

 Já lá muito no interior da «Floresta», no título da «Amizade» encontrei a seguinte «flor» ou  «sylva», como queiram:

 «De Diógenes Filósofo»
 «Perguntado Diógenes que tratamento dava El-Rei Dionísio a seus amigos, respondeu: «usa deles como de vasos, enquanto cheios, despejá-los; quando já vazios, despedi-los».

 A seguir de tal «apotegma» o Padre Manuel Bernardes, acrescenta:

 «REFLEXÃO E SINÓNIMOS»
 Conforme a isto, o estado de Dionísio era de Rei, mas a condição era de vulgo, porque: «vulgus amicitias utilitate probat». Para com o vulgo a amizade avalia-se pela utilidade». (pp 143)


 Quem dirá que esta sentença perdeu actualidade? Quem é que não cultiva as suas amizades por pura conveniência e interesse? Mas a sentença latina parece assentar mais em «filhos de algo» do que no «vulgo», na gente humilde, onde as amizades e solidareidades nos parecem mais sólidas. Feito este reparo, adiante.   

Lá muito mais para a interior, no capítulo da «Avareza», podemos ler:

 «Alguns lugares ludosos, onde o porco avarento se revolve e engorda».
  

E logo a seguir:

«Apontam-se aqui alguns casos particulares, ou ocasiões em que a sordidez deste vício se exercita para que uns o deixem, outros o evitem e todos o abominem. Primeiramente começando da Casa de Deus, é avareza:
 Exercitar o clérigo negociação e mercancia e dos benefícios eclesiásticos entesourar o remanescente à sua côngrua e honesta sustentação, devendo-se dar de esmola aos pobres, conforme a sentença de todos os teólogos, ou por obrigação de justiça, como uns dizem, ou ao menos de caridade, como dizem outros.
(?)
Obrigar os criados, os escravos e aprendizes a trabalhar nos dias de guarda, sem racionável necessidade, só para acrescentar os lucros, ameaçando castigo, ou expulsão se não obedecerem, como se não estivessem em primeiro lugar obrigados a obedecer ao preceito divino eclesiástico». (pp. 429-430)

Parece-me que, nestes princípios do século XXI, penetrar na «Floresta» do Padre Manuel Bernardes, não é dar por perdido o tempo que se passa  a cirandar por entre as suas páginas e a reflectir sobre os apotegmas que ele deixou no vernáculo ou em latim. 

Prosseguiremos em próxima crónica.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.