Tida e usada como marca de carácter do homem transmontano, em geral, carregando em si o sentido de independência e de aversão dos naturais aos poderes impostos de fora, podemos perguntar onde é que ela foi buscar o sentido e, com ele, se projetar no tempo e no espaço, ao ponto de ser aproveitada por poetas, escritores e políticos, sempre que sentem necessidade de sublinhar essa maneira de ser transmontana. Isto, sem curarem de saber se o sentido que a expressão transporta assenta numa verdade histórica documentada, verdade em que ela tem cavalgado, sem perder o fôlego, através dos cerros, dos montes, dos lugares e dos tempos.
É certo que a passagem dos séculos, a falta de memória, que é como quem diz, o abandono a que, no panorama nacional, a História Local tem estado votada, associada à prevalência atávica da comunicação oral sobre a comunicação escrita, por razões ligadas ao nulo ou frágil grau de literacia, bem evidente até tempos muito próximos, são, em grande parte, responsáveis pelo desconhecimento dos factos documentados que, ou jazem nos arquivos à espera de investigação e divulgação, ou desapareceram na voracidade dos tempos e desmazelo dos homens, sempre mais preocupados com a resolução dos problemas básicos de sobrevivência e subsistência do que com a história e identidade cultural dos povos e das regiões devidamente fundamentadas.
Face a tal realidade, são a vox populi, os escritores e poetas que, substituindo-se aos historiadores, mantêm vivos os resquícios de acontecimentos longínquos, de contornos não raramente adulterados pela liberdade poética ou pelo bairrismo local ou regional.
Mas se interrogarmos a História Nacional e Local, se vasculharmos arquivos mortos e sem vida, eles podem responder-nos, carregados de vida e clareza bastante, para emprestarmos à expressão - para cá do Marão, mandam os que cá estão - o sentido histórico que, parece, dela tem andado arredio.
Para atingirmos esse desiderato temos de recuar ao ano de 1775, ao tempo de D. José I e do seu ministro Marquês de Pombal. É bem conhecida a política pombalina visando o reforço do aparelho de «Estado absoluto, em dificuldade no fim do reinado de D. João V, quer nas alfândegas, quer nos tribunais». (DHP, vol. III, pp 420)
É nessa linha de pensamento, atuação e contexto político que podemos inserir o Alvará dado em Sintra, em 22 de Novembro de 1775, relativamente à «Província de Trás-os-Montes», terras que se subtraíam judicialmente à Correição da Comarca de Lamego, nomeadamente o concelho de Penaguião, com as suas catorze e populosas freguesias.
Terras de gente abastada, o rei, respondendo aos clamores contra os abusos que «os mais poderosos» faziam «arrogantemente» contra os que «julgam que lhes são inferiores», bem como as injúrias que esses mesmos poderosos e abastados faziam aos «juízes ordinários, almotacéis e todos os outros oficiais de justiça», o Rei e o Marquês, a fim de poderem administrar a «Justiça na plena liberdade que é indispensável aos meus vassalos, habitantes no sobredito concelho, na paz pública e no sossego que entre eles deve haver», resolvem pôr fim a toda «a isenção em que até agora esteve o dito concelho da Correição da Comarca de Lamego», para o que ficava, desde logo, «inteiramente cassada e abolida e extinta, como se nunca houvesse existido», tal isenção, ficando autorizados a partir daí, «os corregedores da referida Comarca» a entrarem «anualmente em o dito concelho, como em todos os outros dela, sem diferença alguma, derrogando, como por este derrogo, para esse efeito, (...) todas as doações ou títulos em que até agora estabeleceram a dita exceção, não obstando que tenham as cláusulas de remuneratórias de onerosas e de perpétuas ou quaisquer outras ainda mais exuberantes, porque todas hei por presentes como se neste Alvará fossem insertas, palavra por palavra, para que todo o interesse particular de quaisquer donatários que possa vir a ser no referido concelho, haja sempre de prevalecer a utilidade pública da livre administração da Justiça e do sossego público dos povos, que até agora padeceram tantas opressões tão incompatíveis em Países civilizados e regidos pela obediência das leis e pela sujeição às regras da Polícia». ((Livro em que se escrevem as ordens de Sua Majestade que vêm para esta Vila de Entradas», Anos de 1764-1768, fls.51r/52». Entradas é uma aldeia que fica 10 quilómetros de Castro Verde a caminho de Beja.
Está visto. Fora da alçada da justiça régia, os donatários do concelho de Penaguião, até aí isentos de prestarem contas às justiça régia, senhores do seu estatuto senhorial, usando e abusando do poder que tinham até à chegada do Marquês, bem podiam ufanar-se de que nas suas terras mandavam eles. Não havia corregedor régio que pudesse ali entrar e, consequentemente, o sentido histórico da expressão «para cá do Marão, mandam os que cá estão» atribuída à província de Trás-os-Montes, teve em Santa Marta a sua origem histórica. Bem, mas o melhor é transcrever o Alvará na íntegra, pois trata-se de uma peça imprescindível à história local, independentemente dos efeitos práticos que teve no imediato relativamente à administração da Justiça e de ter sido ou não publicado noutros estudos por nós ignorados.
Segue transcrição no livro. (*)
(*) Do meu livro inédito «JOAQUIM JOSÉ ALVARES, DE SOLDADO A GENENRAL». (existe um resumo deste livro online in trilhos-serranos.com)
NOTA: publicado, hoje, dia da inauguração do TÚNEL DO MARÃO, obra lançada por José Sócrates. Entenderam ou querem que eu faça um desenho?