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segunda, 15 fevereiro 2016 17:13

PÓVOA DO MONTEMURO - GANDIVAO EM 1258

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Póvoa do Montemuro: «Villa de Gondivao» no século XIII» ?

"Os comissários régios enviados pelo reino chamavam a cada freguesia os homens mais antigos ou mais conhecedores da situação e história dos diversos herdamentos ou propriedades e, deferindo-lhes juramento, inquiriam as tradições de cada uma dessas propriedades."

 

Lê-se no livro "Castro Daire", editado pela Câmara Municipal em 1986, que a vila de Gondivao, referida nas Inquirições de 1258, «desapareceu completamente» e que nem a sua «localização sabemos» (1).

Estas afirmações acicataram a minha curiosidade. Sem notícia histórica de qualquer abalo telúrico que fosse por isso responsável, uma povoação não se afunda assim nas entranhas da Terra sem deixar rasto. E convencido que a aldeia de Gondivao, ou sinais dela, deviam existir algures, (as ruínas do Bugalhão, povoação contemporânea de Gondivao, lá estão a atestar a sua existência), comecei por reler as Inquirições (2) levando em conta os aspectos formais e intencionais que rodeavam esse tipo de inquéritos, vistos assim por Alexandre Herculano:

"Os comissários régios enviados pelo reino chamavam a cada freguesia oshomens mais antigos ou mais conhecedores da situação e história dos diversos herdamentos ou propriedades e, deferindo-lhes juramento, inquiriam as tradições de cada uma dessas propriedades."(3)

Assim sendo, e na convicção de que as informações sobre os foros régios de Gondivao seriam prestadas por pessoas idóneas naturais da própria povoação ou das povoações vizinhas, por serem as mais conhecedoras do meio, atentei na referência feita à identidade e naturalidade das testemunhas. É o que mostra o seguinte quadro: 

NOME DAS TESTEMUNHAS NATURALIDADE

Petrus Dominici - Gondivao

Stephanus Johannis  - Juiz de Moção

Petrus Martini ?

Egeas Johannis ?

D. Johannis ?

Dominicus Robertiz ?

Johannes Veegas - Cetos

Garsea Pelagi - Cetos

O quadro mostra que os comissários régios, no tocante a Gondivao, das oito testemunhas identificadas, só referiram a naturalidade de quatro: uma era de Gondivao, outra de Moção e duas de Cetos. Assim sendo, e partindo do princípio que os inquiridores recorriam aos «homens mais antigos ou mais conhecedores da situação e história dos diversos herdamentos ou propriedades», admiti, com toda a probabilidade, que Gondivao não estaria longe de Cetos. Além disso constatei que a vila «desaparecida» não era, no universo das povoações inquiridas, das menos importantes, pois, três povoações que se lhe seguiram na ordem do inquérito, isto é, Bugalhão, Picão e Cetos a tomaram por modelo, relativamente a alguns foros devidos ao monarca.

Ora veja-se.

Bugalhão: «...debent dare Regi in festo Nahtalis Domini corazil de porco vel gallinam cum una taliga de centeno, sicut dant de villa de Gondivao».

Picão: «...dant de quolibet focare corazil vel gallinam et una taligam de centeno, sicut dant de Gondivao». Cetos: «...dant per usum de unoquoque focare in festo Nahtalis Domini corazil vel gallinam et una taligam de centeno, sicut dant de villa de Gondivao».

A partir desta constatação atentei nos topónimos Seara e Piornais, referidos nas Inquirições, identificando terrenos situados no termo de Gondivao. De facto, o Bispo de Lamego tinha no "termino de Gondivao unam bonam bauzam que vocatur Seara", e que esta era, ao tempo, trabalhada por pessoas de Faifa. Que os frades da Ermida tinham "unam bonam hereditatem de termino de Gondivao in loco dicitur Piornaes".

Póvoa MontemuroPerante isto necessário se tornava saber se os topónimos Seara e Piornais tinham resistido à voracidade do tempo e saber, também, onde se situavam as terras que designavam. Em caso afirmativo, a sua localização ajudaria a confirmar a minha suposição. As investigações de campo revelaram que os topónimos tinham resistido. Tinham chegado até aos nossos dias. E as terras que designavam (e designam) situam-se a norte de Cetos e Póvoa do Montemuro, tendo Faifa a Oeste e Carvalhosa a Este. Os Piornais, para o lado da Carvalhosa. E a Seara, (hoje Vale da Seara) para o lado de Faifa, exatamente a povoação de onde era o casal que explorava essa propriedade em 1258. Gondivao não estaria longe, por certo. Mais: uma levada nascida no Chão dos Frades, terrenos contíguos dos Piornais, descia, em tempos idos, a água utilizada pelos frades da Ermida, tal como o poeta popular Mestre Zé de Cetos, em 1950, referiu numa das suas décimas.

Dela transcrevo os seguintes versos:

Chamavam chão dos frades

Donde o rego deu saída

Para o Passal da Ermida

Regalia dos Abades.

(...)

Fora direito perdido

Pela grande feitoria

E agora pertencia

à limação da terra

Com água vinda da serra.

 Tendo presente o conteúdo das Inquirições e as afirmações do poeta calcorreei a Serra do Montemuro e cada vez mais me convenci que Gondivao estaria, algures, perto de Cetos. Fixado nestas congeminações fui investigar os Arquivos. E eis que encontrei dois testamentos feitos nos meados do século passado. Eram (são) dois documentos de especial importância para o caso vertente.

O primeiro é de José Duarte Trulho, da Póvoa do Montemuro, freguesia de Pinheiro. Assinado em 27 de Maio de 1852 ali se diz que sendo ele testador o "cabecel de hum Prazo do Ilustríssimo Cabido de Lamego o nomeio à mesma minha irmã Luisa e ella será a senhora de o nomear por sua morte em quem quiser"(4).

O segundo é exatamente o da citada irmã, Luisa Duarte Trulha, também do lugar da Póvoa do Montemuro, assinado aos 26 de Março de 1853. Deste último transcrevo o seguinte:

«E (...) deixo à minha sobrinha Margarida a minha ametade da terra do Carvalhal a que parte com o pai e a minha ametade da terra do peorneiro (...) e deixo a meu sobrinho Manoel, filho do meu irmão Manoel a minha amettade do porto do teixo e do gandivao (...) bem como lhe deixo ao dito meu marido o meu Prazo do Cabido de Lamego» (5)

Retomei as Inquirições do século XIII para relacionar o que nelas se diz com o que dizem os testamentos do século XIX: elas referem que o Bispo de Lamego tinha no termo de Gondivao "unam bonam bauzam", trabalhada, ao tempo, por um casal de Faifa. Os dois irmãos, ambos da Póvoa do Montemuro, englobam nas suas deixas o "Prazo do Cabido de Lamego". A interrogação impunha-se: a «bona bauzam» que o «Episcopus de Lameco» tinha «in termino de Gondivao» e o «Prazo do Cabido de Lamego», no termo da Póvoa, não seriam a mesma propriedade? A sê-lo, os topónimos Gondivao e Póvoa não designariam, também, a mesma realidade?

Admitindo ser isso verosímil, quedei-me no topónimo Gandivao referido no testamento de Luisa Duarte Trulha. De facto, deixando ao seu sobrinho «amettade do porto do teixo e do gandivao», e tendo já especificado, linhas antes, que o que deixava no porto do Teixo era «a moita por cima do lameiro» e no gandivao «é o que parte com elle» ela, natural da Póvoa do Montemuro, proprietária de terras no Gandivao, mostrava, sem dar por isso, um «gato escondido com o rabo de fora».

gandivão - redzEm face disso, acompanhado dos senhores Manuel J. G. Araújo e Gama, ex-director de Finanças de Castro Daire, e de Manuel A. Duarte Pinto, natural de Cetos, mais conhecedor da geografia e toponína locais que qualquer catedrático, corri em demanda das terras que o topónimo designava. E lá estavam elas. Ali, na bacia formada pelas linhas de água que, descendo da serra, confluem no rio Teixeira (ver mapa). Ali, ao lado da Póvoa do Montemuro e nas costas do outeiro que deu guarida a Cetos. Ali, num covão de acesso difícil, onde, admitir, em qualquer tempo, o berço de uma povoação, seria uma afronta à inteligência humana. Bem ao contrário do local onde está implantada a Póvoa do Montemuro (ver foto).

Em face de tudo isto impõe-se a conclusão: até que a arqueologia prove o contrário, tem de admitir-se que a povoação de Gondivao não desapareceu. Esta povoação, aquela que em 1103 recebeu carta de foro passada por Hermígio Moniz, carta que os comissários régios viram, v.g. que «nos vero inquisitores vidimus», mudara simplesmente de nome. Algures no tempo, passou a chamar-se Póvoa do Montemuro. E o nome de batismo - o nome Gondivao (com o) que figura nas Inquirições do século XIII e Gandivao (com a) no testamento do século XIX - tal como cão escorraçado pelo dono, aninhou-se nos arredores, à espera que o chamassem a terreiro. Sem dignidade bastante para se manter como nome de povoação, passou a designar bouças, moitas e lameiros.

Dizem-no os documentos. Dizem-no os habitantes da Póvoa e de Cetos que herdaram, que possuem, que vendem e/ou compram terras naquele sítio e com o nome desse sítio matriciadas nas Finanças. Dizem-no «os homens mais antigos e mais conhecedores da situação e história dos diversos herdamentos ou propriedades», aqueles que, tal como no século XIII, conhecem, no século XX, a geografia e a toponímia locais melhor que ninguém. E dizem-no as conclusões a que cheguei depois de toda esta minha pesquisa de campo e de arquivo. Os arqueólogos que façam o resto. Gandivao espera por eles. E, já agora, pelos filólogos também.


 NOTAS:

in NCD nº 171 de 10 de Março de 1998

(1) VAZ, João Inês, "Castro Daire", edição da Câmara Municipal, 1986, pp. 43

(2) Versão impressa no livro "Castro Daire", Edição da Câmara Municipal, 1986, pp. 343-379

(3) HERCULANO, Alexandre, "História de Portugal", Liv. Bertrand, s/d, tomo IV, pp. 142

(4) in Livro II (ms) das "Copias dos Testamentos de 1852 e 1853", fls. 13r, Arquivo da Câmara Municipal de Castro Daire recuperado da fogueira onde desapareceram outros após a deslocação feita para a cadeia comarcâ duarnete as obras de acrecento no edifício municipal.

(5) Idem, fls. 46 r/v

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.