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quinta, 14 janeiro 2016 16:22

O LAGAR E O LUGAR DO VINHO NA HISTÓRIA

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 Num diálogo que resolvi travar com uma divindade desconhecida sobre o vinho, ela, como que adivinhando o que eu lhe ia perguntar, antecipou-se:

- E antes que me perguntes algo sobre o lagar e lugar do vinho ao longo da história humana,  digo-te já que quem conhece a tosca e pesada prensa do azeite, conhece a tosca e pesada prensa antiga do vinho: uma vara de madeira com uma das extremidades metida numa abertura da parede com folga bastante para poder ter um movimento vertical e apertar, de cima para baixo o bagaço obrigada pelo fuso que nela entronca em cujo extremidade inferior se encontra um enorme peso de pedra.

E não é preciso lembrar-te que o professor António da Silva Gonçalves, quando se referiu ao poeta epicurista Correia Garção no estudo que fez sobre a influência da Musa de Horácio na casa Lusitana diz a dada altura:

"Os parafusos dos cheirosos lagares rangem ao longe, a vara frita, descendo pelas roscas" acrescentando:

....por entre chuvas de bagaço
Um vulto pelos ares vi batendo
Compridas asas; mas não tem cabeça
Não tem pés, não tem mãos:
Áh! Já na terra pousa:
Vamos elpino ver; um odre, um odre"
És tu baco, evoé (1).

vinho2Outras técnicas mais elementares terão sido usadas para pisar e prensar o vinho através dos tempos. Mas a prensa de vara, como muito bem sabes,  já se encontra desenhada numa iluminura do Apocalipse do Lorvão, ms. do século XII, divulgada hoje por tudo quanto é compêndio escolar de História. E sobre o vinho devo acrescentar mais o seguinte para melhor saboreares mais um produto clássico:

A personagem principal de "António Marinheiro", obra dramática de Bernardo Santareno, versão portuguesa da tragédia do "Rei-Édipo", passa a vida à porta de uma taverna na esperança de se libertar dos remorsos que o atormentavam por ter morto um homem que, na mesma taverna, gastava o dinheiro da sua jorna.
Não teria sido por acaso que Bernardo Santareno escolheu um cenário de vinho e de fado. É que o vinho, já na civilização grega, era a bebida que não só fazia parte integrante dos grandes festins, mas também do quotidiano da vida.

Elpenor, um companheiro de Ulisses, como bem sabes, gostava de saborear a pinga. Ele...

"não se mostrava muito valente na batalha e não tinha o espírito bem firme. Longe dos seus companheiros na sagrada morada de Circe, ele procurava a frescura e deitara-se entorpecido pelo vinho. Ouvindo a agitação dos seus companheiros, as vozes e os passos, levantou-se sobressaltado e esqueceu-se onde estava. Tendo recuado para chegar até à grande escada de cabeça para baixo, quebrou as vértebras do pescoço e a sua alma desceu ao Hades"(1).

O resultado de uma bebedeira foi o que deu: pescoço partido e morte imediata.
Ulisses, tendo regressado a Ítaca disfarçado de mendigo, querendo experimentar o seu porqueiro Eumeu, disse-lhe que tinha grande vontade de desabafar com ele e com os companheiros e... 

 "o que a tal me impele é o vinho que perturba a razão; é ele que leva mesmo o mais sensato a cantar, a rir com ar afável  e faz levantar para a dança, faz brotar palavras que melhor seria não ter proferido"(2)

 Durante o cerco de Troia, Heitor, no palácio de Priamo, ouve estas palavras da mãe:

"Meu filho (...) vou buscar-te um vinho doce como mel. Primeiro farás com ele libações a Zeus, o pai, e aos outros imortais, depois ganharás tu próprio em bebê-lo. O vinho dá um grande ardor ao homem fatigado e tu fatigaste-te muito a proteger os teus parentes"(3)

O mesmo Heitor, vendo que Zeus se inclinara a dar-lhe algumas vantagens sobre os Aqueus, incita os Troianos à batalha e ao montar os seus cavalos excita-os desta forma:

"- Xanto, e tu, Podargo, Eton e divino Lampo, agora compensai-me dos cuidados que vos prodigou Andrómaca (...) ao servir-vos, a vós, antes de todos, o doce frumento, vertendo-vos vinho quando o desejáveis, antes de me servir a mim que me ufano de ser o seu esposo florescente"(4)

 Não havia festim grego em que o vinho não corresse das "crateras" para as taças e animasse a festa. O vinho alegra os homens, põe-nos a dançar, a cantar e a falar de mais. Liga os homens aos deuses através das libações e os cavalos divinos de Heitor, comem as "sopas do cavalo cansado" para ajudarem o guerreiro. Os almocreves e todos os que lidam com alimárias de carga conhecem bem os efeitos das sopas avinhadas.

Fica sabendo, amigo, que o uso deste precioso néctar remonta à Pré-História. Que o processo da sua transformação atribuem-no os Egípcios a Osíris, os Gregos a Dionísio, e Noé, por inexperiência, sofreu os efeitos dos excesso do vinho (Gen. 9,21). Que o vinho teve lugar proeminente nos ritos e costumes dos Hebreus, bem como nas festas dos antigos Gregos e Romanos. Tornaram-se muito conhecidos dos vinhos de Cós, Lesbos e Frígia, o pramnico da Grécia, o masico e falerno de Roma.

Durante a Idade Média a técnica do vinho foi aperfeiçoada sobretudo nos mosteiros em ordem ao seu uso na liturgia. A vinicultura desenvolveu-se em França a partir do século XVI e daí se propagou a outros países. Atribui-se ao beneditino Don Perignon ((1638-1715) a introdução do vinho espumante.
Na P. Ibérica, apesar de alguns historiadores terem como certo que o vinho fazia parte dos hábitos dos Lusitanos, não falta quem atribua aos gregos o desenvolvimento da cultura da vinha, quando, por volta do século VII a.C., estabeleceram as primeiras colónias na Península.
Os Romanos, chegados mais tarde, em 218 a.C. como já sabes, terão feito o mesmo, disseminando a vinha por todo o território, levando Estrabão (séc. I a.C.) a referir a cultura da vinha na região do Douro(1).

No Douro, onde o Marquês da Pombal, em 1756, fez a primeira região demarcada do mundo.

vinho3aE posto isto, percebes, agora,  o valor das tavernas e a sua escolha para cenário de convívio, do riso, do fado e da tragédia.
E por certo não ignoras as "confrarias" que por aí vão nascendo em torno de certas marcas de vinho. Não ignoras que o vinho alegra romarias, as festas religiosas e/ou os arraiais profanos. Não ignoras o culto ao vinho e bebidas espirituosas que, sempre sendo bebidas ao longo dos tempos, por aí vai em crescendo na sociedade dita burguesa. Sabes bem que a casa pode não ter um espaço destinado a uma Biblioteca, mas tem com certeza uma sala de estar que exibe num canto um bar trabalhado na mais cara madeira. Pode até haver uma estante com uns tantos livros clássicos de lombada dourada, comprados a metro, para "inglês" ver. O que não é para "inglês" ver são as garrafeiras! Ai estas!...Incrustadas nas paredes, feitas de tijolos tipo favo de abelhas, são autênticos relicários em cujos nichos, em vez de relíquias de santos, se aninham as garrafas com as marcas dos vinhos mais consagradas da região, do país ou do mundo. Não ignoras a simples tasca da esquina, onde, a qualquer hora, o português comum pede um "copito":

- Tinto ou branco?
- Cheio!

 Não ignoras  os "rituais" dos políticos e homens de negócios reunidos em torno de uma mesa bem recheada de iguarias e boas marcas de vinho, qual festim grego ou romano. O vinho faz parte da agricultura e da cultura portuguesa. Faz parte do quotidiano. E do quotidiano faz parte a leitura dos homens informados do teu tempo. Ora lê os respigos da conversa entre uma jornalista e um político durante uma  entrevista, em Lisboa, no "Via Latina":

"O melhor do jantar foi o vinho (...) coma carne para bebermos um tinto bom.
- Nem pensar, opto por comer peixe e beber à mesma, um tinto bom.
- Douro ou Alentejo?
- Douro - digo eu - com filetes prefiro vinho do Douro.
Não havia reserva especial da Ferreirinha, o meu parceiro escolheu Vinha Grande. Gostámos os dois. Daqui a meia hora ainda está melhor.  precisava de estar aberto há mais tempo.
Estava ótimo o vinho, mesmo assim. E dali a meia hora, estava realmente, melhor ainda"(2).

  A devoção ao vinho suplantou a devoção às antigas relíquias de santos. Ah! Falta referir-te as pipas de vinho que, durante o ano, se consomem nas missas do norte ao sul de Portugal.

Em suma:

vinho-3 - Red - Cópia"Se se consultar a história romana ver-se-á que Catão, que era um romano às direitas, tomava a sua touca sem cerimónia nenhuma; Alexandre Magno, n'esse não falemos e mais era o conquistador das Índias; esse amiguinho tomava cada moafa de rachar. E os gregos, que não eram nenhuns tolos, concederam um diploma de divindade ao grão borrachão, Bacho, e até lhe associaram Minerva, como quem diz que o vinho vigorisa o engenho.

Folheando a Escriptura Sagrada vemos que ella diz que o vinho alegra o coração dos homens.

(...)
Dionysio era um tyranno, e para que o povo não desse por tal, decretou uma coroa de prémio aquelle que mais vinho bebesse em qualquer festa. Nero, que foi um verdugo do genero humano foi um dos maiores enxuga-botelhas do seu tempo. Maurício, duque da Toscana, fundou em 1600 uma sociedade chamada de Temperança e um dos artigos do estatuto determinava que nenhum dos sócios bebesse ao dia mais de sete copos de vinho; mas não consta na história toscana se os copos eram de meio quartilho ou de canada. Enfim um principe inglês, sendo obrigado a escolher o genero de morte, preferiu afogar-se em um tonel de malvasia.
Por tanto, pelo lado da história tudo abona a excellencia do pifão. Pelo lado da sciencia, vemos graves médicos aconselharem o uso do vinho, não o vinho mao, mas o bom, descrevendo as suas qualidades tonicas e diaforeticas, que dão força aos fracos e saude aos enfermos. Vê-se por tanto que a medicina também é a nosso favor, e tendo nós pelo nosso lado a historia e a medicina não precisamos de mais nada. D'onde se conclui que a piteira é boa, útil e necessária.
Os gregos foram os inventores d'esta parvoice de misturar agoa com vinho; mas como eles não sabiam as siencias physicas tem desculpa. O vinho mistuyrado é prejudicial á economia, pois se a sua virtude está no espirito, é claro que, quanto mais agoa tiver, menos espirito terá.
(...)
Por estas e outras rasões que não diremos, o uso e até o abuso do vinho é a coisa melhor que há n'este mundo e cremos que também no outro.
(..)
Ah! O leitor é devoto so S. Martinho?... Tanto melhor. Vamos fazer-lhe juntos uma saaude e depois entregar-nos-hemos regaladamente nos braços de Morpheu"(1).

Convém saber que este jornal "O Camões", nº 1, no "prospecto" da sua apresentação dizia taxativamente ser um...

 "Jornal exclusivamente destinado à educação do povo, o jornal que por meio da penna e do buril infiltre nas camadas populares o gosto pellas bellas letras, que instrui deleitando, que vise a um fim mais alto e mais nobre do que a diária e mesquinha digladiação dos partidos, que promova enfim a morigeração e os bons costumes por meio da instrucção do povo.

 Publicava-se regularmente todas as segundas feiras de manhã. E  nº 1, donde extraí o excerto que te ofereci, saiu a 30 de Agosto de 1880. A sua Redacção era na praça de D. Pedro, 131, Porto.

            O vinho ajudou a conquistar e a consolidar os impérios da Antiguidade e os impérios que lhes sucederam. Assim foi com os romanos e assim foi com os portugueses em cujas naus, a par dos canhões, militares, soldados e clérigos, embarcavam centenas de baris cheios deste precioso líquido para as terras de além mar. Quem lidou com os povos colonizados sabe bem o apreço em que era tida a "água de Lisboa", expressão com que era designado o sumo da uva.(a)

(a) Extrato do meu trabalho «Influência da Cultura Clássica na Cultura Portuguesa» (inédito)



(1) GONÇALVES, António da Silva - ob. cit. pp. 37
(1) HOMERO, “Odisseia”, pp. 119
(2) Idem,idem  pp.160
(3) Idem, "Iliada", pp. 94
(4) Idem, idem, pp. 115

(1) "Enc. Luso Brasileira de Cultura", Editorial Verebo,Lisboa, 1977, vol. 18, pp 1247
(2) LOPES, Inês Serra - in  Revista "Vida"  do "Independente" nº 418 de 17.05.96, pp. 80
(1) in "O Camões" Semanário Popular Ilustrado, Anno I, nº 12, Porto, Novembro, 1880, pp. 95



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.