Ali vemos que muitas das testemunhas ouvidas pelos inquiridores incumbidos se de apurarem do caminho ou do descaminho dos foros reais, tinham o nome e/ou apelido Pelágio, o nome do herói de Covadonga, aquele que, em 718, derrotou os Mouros, dando início à Reconquista Cristã.
Ora, para melhor entendermos esse facto, convém recordar que, em 1249, D. Afonso III, expulsou definitivamente os mouros do Algarve, prosseguindo a luta iniciada por aquele guerreiro fundador do reino das Astúrias, cujos feitos o tornaram popular em toda a Península Ibérica. Tão popular quanto o foi, cerca de 200 anos depois, um menino com o mesmo nome, Pelágio, natural da Galiza, sobrinho do Bispo de Tui.
Aconteceu que, por volta do ano 920, num recontro entre cristãos e mouros saíram derrotados e cativos os cristãos que foram levados e metidos nas masmorras do Emir Abdemarrão III, de Córdova. Entre eles estavam o bispo Hermígio e o seu sobrinho Pelágio.
Tratando-se de um menino de belas feições não tardou a ser cobiçado sexualmente pelo Emir que,«ardendo nos seus mais torpes desejos lhe fez grandes ofertas (?) e querendo acariciá-lo, tocou-lhe brandamente o rosto, dizendo-lhe palavras aliciadoras», mas Pelágio repeliu as carícias e retorquiu-lhe: «desvia-te, ou pensas por acaso que eu sou algum dos teus afeminados lacaios?»
Face a tal recusa, o Emir encarregou alguns dos seus cortesãos de «perverterem o nobilíssimo mancebo», sem que o tivessem conseguido.
Abdemarrão, vendo gorados os seus intentos, mandou que esquartejassem o menino cristão e atirassem as partes do seu corpo ao rio Guadalquivir. Tinha apenas 13 anos de idade e decorria o ano de ano de 925.
Neste ponto da narrativa (dando de barato o raciocínio adulto da criança na palavras que ela dirige ao Emir, donde ressalta claramente a falsidade dela) convém ter presente que as lutas da Reconquista Cristã decorriam sem tréguas e, divulgando o resultado das intenções e acções sodomitas do Emir mouro, o episódio prestava-se muito bem a acirrar os ânimos dos cristãos contra os infiéis, ainda que o gosto de acariciar meninos, como o tem demonstrado a História, não se circunscreva àquele tempo, nem seja exclusivo de mouros, como muito bem sabemos pelos media do século XX, ao denunciarem os casos de pedofilia praticados por alguns padres e bispos cristãos, ferida que o Vaticano tenta sarar a todo o custo.
Mártir em nome da fé cristã, o menino foi levado aos altares com o nome de São Pelágio e o seu culto veio a tornar-se muito popular em Portugal.
2: A FORÇA DA MEMÓRIA
Temos assim que o nome Pelágio, seja o do guerreiro de Covadonga ou seja o do mártir de Córdova, se popularizou em Portugal e, por largo tempo, foi adoptado por muitos pais e padrinhos.
Não estava ainda em moda dizer-se, aquém fronteiras, que «de Espanha nem bom vento, nem bom casamento» e, por isso, tal nome aparecer a identificar algumas das testemunhas de nobre condição que, em 1258, depuseram nas Inquirições de D. Afonso III. E havia, pois, razões de sobra para que o culto e o nome do herói de Covadonga, bem como o nome do menino retalhado em nome da sua fé, se projetassem no espaço e no tempo, durante as lutas entre Mouros e Cristãos.
Então, como agora, pôr o nome de um herói, de um santo, ou de uma figura prestigiada a um filho ou a um afilhado, não é coisa de somenos. E quer o Pelágio guerreiro, quer o Pelágio santo, tinham fama e auréola bastante para que o seu nome fosse adotado, com honra e glória, tal como atualmente se adotam os nomes de alguns jogadores de futebol, protagonistas de romances, artistas de telenovelas ou, então, de pessoas que, por uma qualquer acção extravagante e sem qualquer sentido ou valor, se tornam heróis e ídolos através da Internet, basta que no Youtube ou no Facebook, obtenham o maior número de «clics».
Assim sendo, vejamos, agora e em rigor, todos os que, com o nome ou apelido Pelágio, aparecem referidos nas Inquirições, relativamente às terras hoje integradas no nosso concelho, alguns deles com o título de «Dom» anteposto ao nome:
Reriz, isto é, na Quinta do Rabaelo: Martinho Pelágio; Alva: Gontina Pelágio; Carvalhal: Pedro Pelágio; Arcas: Pelágio Rodrigo, prelado da Igreja de S. Miguel Mamouros; Casal: D. Pelágio e Pelágio Moniz; Ribolhos: Pedro Pelágio e Martinho Pelágio filho de Plágio; Castro Daire: Mauro Pelágio, juiz; Braços: Pelágio Pedro; Farejinhas: D. Pelágio, Pelágio Mendes e Martinho Pelágio; Lamelas: Pedro Pelágio filho de D. Pelaio, Pedro Mendes e Pelágio Pedro; Covelinhas(1) : Miguel Pelágio, Lourenço Pelágio, João Pelágio e Pelágio, filho de Pelágio, ambos testaram à Igreja de Castro Daire, duas leiras foreiras ao rei, de jugada, sitas no termo de Covelinhas: uma em Vale cuterra e outra perto de Rosada;Folgosa: D. Pelágio, Pedro Pelágio, pai de D. Pelágio; Pedro Pelágio Pereira, sogro de D. João de Folgosa; Folgosinha: João Pelágio; Mosteiro: Pedro Pelágio; Baltar: Maria Pelágio, D. Pelágio, Mendes Pelágio; Domingos Pelágio, filho de Pelágio Domingues; Fareja: Martinho Pelágio filho de Pelágio Mendes; Pelágio Pedro, neto de Maria Pelágio; Ribas: Miguel Pelágio e Martinho Pelágio; Moção: D. Pelágio; Gandivao (2) (Cetos): Garcia Pelágio; Parada: João Pelágio, prelado da Igreja de São João de Parada; este prelado disse que viu D. Lourenço Pelágio possuir a terra de Parada vindas da mão de D. Pedro Portucalense, seu sogro, e este deu um seu escudeiro, Estêvão Viegas, vilão Dornelas e Vila Maior, metade destas duas vilas; Nodar: Gelvira Pelágio Gaga; Savariz: Pedro Pelágio e Pelágio Pedro; Pelágio Chão, dono da quinta.
Ora, sabendo nós que as testemunhas ouvidas pelos «Inquiridores» eram pessoas idóneas, conhecedoras da história local e da identidade dos proprietários de bens rústicos e urbanos, constatámos que entre os indivíduos com o nome e/ou apelido Pelágio havia juízes, clérigos e outros que antepunham ao seu nome o título «Dom» próprio da nobreza de sangue e também dos cavaleiros-vilãos.
E, face a isto, uma pergunta se impõe: que é feito atualmente do nome Pelágio entre nós? A lista da «Onomástica Portuguesa», disponível na Internet, inclui o nome Pelaio, uma derivação de Pelágio, tal como e são as derivações Palaio e Paio.
Procurei, mas não encontrei nas terras concelhias, pessoas que atualmente usassem o nome Pelágio, Palaio, Pelaio ou Paio. O mais que encontrei foi São Pelágio (dito nas suas derivações, Palaio, Pelaio ou Paio) oragos de Vila Boa e de Vila Pouca, sendo que São Paio era igualmente o nome do lugarejo atualmente integrado em Vila Pouca, tal como se vê numa sentença de 1860, relativa à demanda que opunha os moradores de Fareja aos de Vila Pouca e Baltar de Cima. (Cf. neste site artigo próprio, onde o assunto está tratado desenvolvidamente)
E isto me leva a concluir que ao desaparecimento de tal nome bem pode estar ligado o tipo de relações políticas e militares existentes entre Portugueses e Espanhóis registadas no decurso da História. Daí, também, a expressões populares, «virai costas a Castela» e «de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento».
Diferente deste meu raciocínio linear resultante desta minha romaria em torno do nome Pelágio, visando extrair das «Inquirições de 1258» a identidade dos protagonistas da História Local, a sua categoria social, as suas relações com os bens materiais e espirituais, bem como a força da memória e a prova histórica do culto de heróis e santos verificado através dos tempos, é a conclusão de Manuel de Sousa ao afirmar que o apelido Sampaio ou São Paio é de «raízes tipicamente toponímicas, por ter sido tirado do da honra desta designação, em Trás-os-Montes», pois ssim o diz no seu livro «As Origens dos Apelidos das Famílias Portuguesas».
[2] Idem
Abílio Pereira de Carvalho