Trilhos Serranos

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segunda, 06 julho 2015 12:38

ROTA DA TRANSUMÂNCIA EM CASTRO DAIRE

Escrito por 


Em 1990 era presidente da Associação Recreativa e Cultural de Fareja, Joaquim Almeida Ferreira da Silva e presidente da Assembleia Geral, vários mandatos seguidos, a pessoa que escreve e assina esta crónica. Grande parte da correspondência trocada com as entidades oficiais ligada à construção da sede saiu das teclas do meu computador.
Foi o ano em que, pela primeira vez, se filmou e gravou, em cassete VHS,  a "costumeira" ligada ao Pinheiro de São João, com o objetivo de, por essa via, se dar a conhecer ao mundo, uma das nossas tradições mais falada em todo concelho, pelo volume e peso da árvore. Não é exclusivo desta aldeia, mas nas restantes onde antigamente se punha o «pau a pino» (nalgumas delas ainda hoje se faz,  por e exemplo em Cujó e Relva) o protagonista não passa de um «estadulho» de amieiro, comparado com o de Fareja, sempre PINHEIRO.

Por ser assim, António Argentino, homem do cinema, do teatro, do entretenimento, da cultura e, acima de tudo, meu amigo, morador em Reriz, prontificou-se a sair da cama cedo e estar em Fareja a horas com o equipamento necessário para filmar o evento nas suas fases distintas: primeira, o seu corte e transporte para a aldeia; segunda, a descida do velho pinheiro que permaneceu ereto o ano inteiro, junto da capela; terceira, a «erguedela» do pinheiro novo na véspera de São João. Isso e o mais que se relaciona com a «costumeira».

Nesse ano o protagonismo coube a um pinheiro que nasceu e cresceu nos montes vizinhos do Mosteiro, entre os rios Paivó e Paiva. Para ali nos dirigimos todos manhã cedo e, chegados ao sítio, respeitando a tradição, «serra-que-serra-traçador-vai-traçador-vem-serra-que-serra», o pinheiro que, altaneiro, passou anos a vigiar as redondezas, abandonou a sua posição vertical e, à força e jeito de homens e animais foi transportado para Fareja.
Decidido que foi, nesse ano,  a Associação Recreativa e Cultural de Fareja registar em vídeo esta «costumeira» aconteceu passar na vila de Castro Daire, no próprio dia de São João, um rebanho da Serra da Estrela, evento que o presidente da Associação, natural desta aldeia, mas a residir na vila, correu a filmar para, com essas imagens, enriquecer o «vídeo/documentário» em projeto.

Transumância 3Ciente de, com isso, registar para a posteridade um documento raro, senão único, serviu-se da máquina de filmar que possuía (daquelas que, na altura, se punham ao ombro, tal era o seu tamanho e peso, e que, por isso mesmo, face à evolução tecnológica que houve nesse domínio, são hoje autênticas peças de museu) apontou a objetiva, premiu o gatilho e fez o registo.
Apanhou o rebanho a contornar o Jardim Público à subida para a Feira das Vacas, acompanhou-o pela estrada fora até ele se escapulir do alcance do seu olhar, mas não antes de, à laia de repórter experimentado,  perguntar a um dos velhos pegureiros quantas cabeças iam ali.  A resposta saiu pronta da boca onde se adivinha ter gastado os dentes nestas andanças: 3.600. (foto ao lado) 

Por deficiência de som e qualidade do equipamento, as suas palavras não se ouvem a «viva voz», mas qualquer pessoa treinada na comunicação labial, saberá que ele disse isso mesmo. Impressionante!  Aquilo não é um rebanho. Aquilo é um mar ondulante de gado que deixa embasbacado, não apenas o vilão, mas todo o lavrador serrano habituado a ter meia dúzias de rezes ovinas ou caprinas nas suas lojas, ou mesmo quando as leva a pastar nos seus lameiros ou baldios em redor. Só comparando podemos apreender e aprender os conceitos de PEQUENÊS e de GRANDEZA. Em 1990 o rebanho não parou na Feira das Vacas. Foi pernoitar na Sedorninha, naquela ampla lameira sita às portas de Vila Pouca. E também já não estávamos na altura de Castro Daire correr ali com vasilhame diverso a buscar leite. A DIGNIDADE HUMANA traduz-se em comportamentos. E não é por acaso que, naquele mesmo espaço, onde se fazia a feira quinzenal, o «pente de piolhos» passou a ser vendido e designado por «pente de caspa».

E foi assim que esse registo singular, senão único, pelas mãos de António Argentino, passou para a cassete VHS com a minha colaboração que à sua morada me desloquei alguns dias, à noite, ao fim das aulas, umas vezes acompanhado do presidente da Direção e outras não. Graças a essa iniciativa e gravação é que as imagens do evento puderam agora renascer e, sob outro formato e composição, eu as pude colocar no mundo trabalhadas e melhoradas, fazendo uso das novas tecnologias. (Ver links: dois dos CINCO que alojei no Youtube a tal propósito)

PRIMEIRO: https://youtu.be/QtWXvWtghnA

SEGUNDO: https://youtu.be/2nnrh1rjojk

No que respeita ao rebanho elas permitem-nos estabelecer comparações com o recente evento que o Executivo Municipal levou a cabo no dia 27 de junho deste ano, numa tentativa de «RECONSTITUIÇÃO DA ÚLTIMA ROTA DE TRANSUMÂNCIA» com objetivos turísticos. 
Transumância 1Nestas coisas, como em tantas mais, não há como estar documentado e fundamentado. E eu, que menino de escola guardei ovelhas na serra, que as levei ao pasto em dias de chuva e frio, que fiquei sem voz quando um lobo esteve a poucos passos de mim disposto a ferrar os dentes numa rês, que, já professor,  trabalhei estas imagens em 1990, que ajudei a colocá-las um fita VHS, nem queiram saber o trabalho e o tempo que perdi à procura do original para poder vertê-lo e  apresentá-lo em formato digital, por forma a esclarecer a REALIDADE que se pretende RECREAR vestida de FOLCLORE.. Triste REALIDADE.

Creio poder dizer sobre este vídeo o que se passou com um livro da Confraria de São Miguel, em Castro Verde, (Alentejo) em 1727. O Provedor da Comarca, que precisava de «tomar as contas» da Confraria, por mais que procurasse esse livro não o encontrava. E, quando ele lhe foi à mão, escreveu ironicamente em latim: «et nemo poterat aperire neque respicera illum nec videre eum». Latim que, traduzido para Português, diz que ninguém poderia abri-lo e lê-lo.
Mutatis mutandis, quando eu pude «videre et aperire eum», só tive de vertê-lo para formato digital e colocar no mundo as imagens certificadoras das preocupações que, numa atitude indiscutivelmente pioneira, tivemos na elaboração de um DOCUMENTO sobre a nossa «história, usos, costumes e tradições». Hoje, não faltam por aí intelectuais emergentes que enchem a boca com a «defesa do nosso património material e imaterial», sem se darem conta das contradições em que caem, assumindo a defesa e a implementação do que, à luz evolutiva das civilizações e das mentalidades, não tem qualquer razão de ser. A EVOLUÇÃO não se compagina com a REGRESSÃO. Arriscam-se até a falar do que não sabem, que não conhecem, ou que interpretam erradamente. A Transumância 2ressurreição da ROTA DE TRANSUMÂNCIA em Castro Daire é quase uma ofensa aos protagonistas que, a suar os esforços da vida, se deslocavam da serra da Estrela para a serra do Montemuro, guiando os seus rebanhos. É só ver o seus passos cansados, os seus rostos sofridos, olhar,  no conjunto, o esforço de gado, cães e pastores, apreciar o seu vestuário e comparar com os improvisados pegureiros que, com o aspeto festivaleiro e folclórico, procuraram revestir a dita RECONSTITUIÇÃO. Não faltaram pífaros, bombos e gaitas de foles. Pois bem, sugiro que, numa atitude empática, assumamos verdadeiramente o lugar desses homens.  Se o fizermos o melhor que temos a fazer é pedir-lhes desculpa do ARREMEDO que pretendemos fazer das suas vidas. Eles, a ganhar honestamente o SEU calcorreando quilómetros de «canadas» e os inventores deste festival, a delinearam rotas e programas ditos de DESENVOLVIMENTO,  sentados à secretária atrás de um computador, a ganhar o NOSSO e a exibirem caprichos que longe estão de se tornarem turísticos e trazerem de retorno o dinheiro gasto. Além de que, nos tempos que correm, as organizações defensoras dos DIREITOS DOS ANIMAIS jamais silenciarão o castigo que, para prazer dos homens,  eram submetidos os chibos, aqueles que, com colar e chocalho de meio metro ao pescoço, eu apelidei de autênticos COMENDADORES DO FOLCLORE.

Mas há mais. Apelando ao costumado brado do «rapazio» da vila, «aí vem o rebanho, aí vem o rebanho», forma de o vilão adulto se posicionar embasbacado nos miradouros convenientes, não se apercebem que tal era o grito de alerta para a preparação de tachos, púcaros e mais vasilhas de alumínio, de zinco, latão ou barro e todos correrem à Feira das Vacas buscar leite e tirarem a barriga de misérias. Tal como aquelas crianças que se juntavam à porta do Forno das Pimponas, ao lado do Coreto, em 1907 (assunto já tratado por mim noutra crónica), tal qual à Feira das Vacas acorria o povo na década de QUARENTA do século vinte, a pedir, para comer, a ALFARROBA que o Corpo Montado da Guarda Nacional Republicana trazia para alimentar os cavalos. Tal qual à Feira das Vacas acorria o povo, quando, por esse mesmo tempo, a Legião Portuguesa ali fazia ajuntamento de legionários,  povo munido de vasilhame para cada pessoa levar para casa parte do «rancho». E a pedinchice não incluía somente os mais necessitados. Até «pessoas de sociedade» para usar a terminologia dos  meus informantes idóneos, mandavam lá as suas criadas buscar «rancho».Transumância 4 

Quem se predispõe a fazer a HISTÓRIA da nossa terra, a falar do PASSADO E DO PRESENTE necessário é que se informe e fundamente primeiro. Necessário é saber que, historiador que o é, estuda o passado para se libertar dele e não para o RESSUSCITAR. 
Ilustro esta crónica com cinco fotos. Não com fotos do rebanho, pois essas imagens o leitor vê-las-á nos vídeos cujos links anexo. A primeira mostra-nos o  pastor que disse serem 3.600 cabeças; a segunda, o magote de crianças à porta do forno das Pimponas, à espera de um cibo de pão; a terceira, uma turma de alunos da Escola António Serrado,da época,  alguns deles de tamancos nos pés. A quarta e quinta são excertos do texto que Amorim Girão escreveu sobre a passagem dos rebanhos da Serra da Estrela por Castro Daire e  correria do «rapazio» gritando: «aí vem o rebanho, aí vem o rebanho» e vestuário dos pastores. 

Transumância 5 Felizmente os tempos mudaram para melhor, ainda que nem bem para todos. Mas quem nega que estamos nos tempos dos telemóveis, Ipads, câmaras de fotografar e filmar acessíveis a todos os adultos e crianças, que disparam em direção de tudo e de nada? Quem nega que tais fotos já se vão vendo na Internet e no Facebook como registos fotográficos e fílmicos do concelho e fora dele? E tantos esses registos são que tornam este espaço um caldeirão onde, a granel, se misturam futilidades sem importância nenhuma e documentos cheios de substância que os historiadores e estudiosos sérios reconhecem e agradecem, em qualquer tempo.

Abílio/julho/2015

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.