Ora, sendo certo que «termino», segundo Viterbo (Ilucidário, vol. II pp. 606), significa «termo, limites, confrontações, balizas» e, segundo o Lello Universal «termo» significa« região próxima, circunvizinhança» podíamos concluir, sem mais pesquisa, que este afluente do Paiva, que dá pelo nome de Paivó, já em 1258 passava próximo da Relva.
Podíamos concluir isso, mas não o fazemos. É preciso ir mais longe na investigação, encontrar outras fontes de informação, cotejá-las e só depois avançar hipóteses ou conclusões. Vamos, pois, continuar no encalço do rio Paivó na tentativa de adquirirmos conhecimentos suficientes a seu respeito e só depois dizermos, com segurança, «donde ele vem e para onde ele vai». É um modesto contributo da História à Geografia. O link que se segue dá uma ajudinha. http://youtu.be/bH5hYJ68Z0s
No inquérito mandado fazer por D. José em 1758, lê-se o seguinte acerca dos povos que constituem a freguesia de Monteiras:
«É esta terra do termo da vila de Castro Daire e compreende em si mais três lugares ou aldeias um chamado Colo de Pito tem vinte moradores e vizinhos, das Carvalhas dezanove e da Relva vinte e seis»..
E depois, referindo-se aos rios que correm na freguesia diz:
«Os regatos que tem esta terra, um chama-se o da Louçã e outro Payvó. Estes nascem em um monte chamado Cervela (...) Sempre tem mantido o mesmo nome (...) Morrem no rio chamado Paiva junto à vila de Crasto Daire».
Dois «regatos (...) que sempre mantiveram o mesmo nome» - Louçã e Paivó - atravessam, pois, a freguesia das Monteiras. Ora, sendo certo que em 1258 o lugar da Relva se situava nas proximidades do Paivó e que a Relva pertence à freguesia das Monteiras em 1758, estamos quase tentados a afirmar que este afluente do Paiva, cedo recebeu o seu nome de baptismo, cedo passou a exibir a sua certidão de idade, nela atestando o lugar do seu nascimento e a região onde se atreveu a dar os primeiros passos, diferentemente do seu irmão de aventura que, partindo muito próximo de si, seguiram encostas diferentes para se encontrarem uns quilómetros mais abaixo. De facto, como dois meninos desavindos no ventre materno, dois rios resolvem romper as águas e vir ao mundo nas vertentes opostas do Monte dos Testos (a Cervela de hoje perdeu a abrangência do século XVIII).
Separados à nascença com alguma experiência de vida correndo entre montes e vales de curtos horizontes, escorropichando gemedoiros e fontes ao longo dos seus cursos, resolvem confluir no sítio da Louçã e, irmanados, com um só nome, descerem ao rio Paiva, para depois este entrar no Douro, chegar ao Atlântico.
Um desses rios, encontra o primeiro alento na fonte da Lameira do Abade e logo a seguir na fonte de Chã de Medas, toma o nome de Paivó e o outro há de hesitar durante muito tempo entre chamar-se Aguinaldo, Delobra ou Louçã. Este, depois de ter tentado roubar o nome ao irmão (cf. Carta do Exército 1945), parece ter adoptado definitivamente o nome Delobra, dando o seu a seu dono.
Mas estará tudo tão claro assim? Basta o cotejo destes dois documentos para afirmarmos categoricamente que o rio Paivó é o que passa ao pé da Relva?
Para quem conhece a toponímia e a geografia local, branco é...galinha o põe, mas, fora disso, a verdade é que ainda não estamos habilitados a dizer sim, pois a referência que o Cura das Monteiras faz aos regatos da sua freguesia carece de pormenores relativos ao curso de cada um, e aos lugares por onde passam, deixando-nos, assim, sem saber qual deles é o Louçã e qual deles é o Paivó. Urge, pois, continuar a pesquisa.
Demos, então, mais um salto de dois séculos. Chegamos ao ano de 1961, mais propriamente ao dia 3 de Abril. Ora, como reza uma acta arquivada nas Juntas das Freguesias de Monteiras e de Cujó, estas duas Juntas vizinhas resolveram reunir-se para «acordarem entre si sobre os limites que para o futuro ficará a ter a zona baldia existente dentro do termo da freguesia de Monteiras, mas usufruída também pelos habitantes da freguesa de Cujó» e na sequência do acordo estabelecerem uma linha divisória entre as duas freguesias de molde a cada qual saber até onde chegava a sua jurisdição.
Dessa acta transcrevemos alguns passos da linha divisória, pois isso nos ajuda a preencher a lacuna deixada em aberto em 1758, pelo Cura, Manuel Cardoso, relativamente à identificação e localização exacta do rio Paivó. Assim:
«(...) segue dali em direcção ao terreno de José Pereira Vaz, seguindo a linha de água ao fundo do lameiro de José Teixeira onde estão gravadas duas cruzes numa fraga no regato no sítio denominado Morgado e dali segue pelo ribeiro abaixo até entroncar no rio Paivó seguindo pelo curso deste abaixo até à passagem das poldras do Sabugueiro onde estão gravadas três cruzes numa fraga e dali segue pelo caminho do Sabugueiro até à bifurcação dos caminhos desviado da poça das Margaridas, cerca de oitenta metros para o lado de sudoeste da referida poça (...)».
Assim sendo o rio Paivó é mesmo aquele que passa ao pé da Relva, aquele que foi referido nas Inquirições de 1258, que foi referido no Inquérito de 1758 e que, em 1961, foi referido e escolhido pelas Juntas das Freguesias de Cujó e de Monteiras para que uma parte do seu curso servisse de fronteira entre as duas freguesias.
E, face a isto, podíamos ficar por aqui. Podíamos dar a pesquisa por encerrada. Mas quem sabe? Embora este afluente do Paiva tenha mantido o nome desde o século XIII até meados do século XX, será que resolveu mudar de identidade de há 50 anos para cá?
Para tirar as dúvidas não há como recorrer ao saber das populações locais e vizinhas. As populações de Cujó, da Relva e das Monteiras, aquelas que tendo os seus lameiros e terras de cultivo nas suas margens sabem não só o nome mas também «donde vem e para onde vai» o rio que lhes irriga as propriedades.
- É o rio Paibó. Sempre foi o rio Paibó - dizem os naturais da Relva e Monteiras.
- Se temos de ir lá p´ra lá da Santa Bárbara e ou p´ra lá do Mancão, dizemos que bamos p'ra Paibó - dizem os de Cujó. P´ra´quela banda é tudo Paibó.
Pois é. É isso mesmo. E eu só agora dou por mim a lembrar-me que também sou de Cujó. Que nado e criado naquela aldeia banhei-me vezes sem conta no rio Paibó, no Poço da Galboeira, juntamente com a demais rapaziada. Só agora dou por mim a perguntar-me por quê toda esta incursão histórica, todo este carrear de documentos para, ao fim e ao cabo, provar que sabia o que sempre soube, desde pequenino? O saber que vinha de longe, transmitido de geração a geração, sem apoio de manuscritos, de livros, mapas ou cartas geográficas, civis e/ou militares?
Sim! Para quê todo este esforço, todas estas pesquisas, leituras e demonstrações? Para que o Serviços Cartográfico do Exército, dentro do espírito científico que caracteriza os seus agentes, tal como já apagaram (e bem) nas cartas editadas mais recentemente o topónimo Paivó que figura nas cartas mais antigas (1945) a designar parte do rio Delobra, apaguem também o topónimo Miravaio que, no sítio do Miravai ([1]) aparece a designar um troço do curso do rio Paivó, recusando-se este, por absurdo, a interromper ali a sua identidade, retomá-la pouco depois e apresentar-se ao Paiva com o nome que, desde a nascente à foz, carrega consigo há séculos.
É que a defesa do nosso património também passa, seguramente, por respeitar os topónimos e a História.
[1] Nota: Sendo esta a história do rio Paivó, baseda em documentos escritos e orais, muito se estranha que um grupo de «exploradores» da Relva, que sempre souberam de onde vinha a água para lhe regar as hortas, venham agora chamar-lhe Miravai só porque a carta militar diz isso. Pelos vistos quem fez a carta sabia mais da toponímia local do que os próprios residentes. Isto tem que se lhe diga em termos de mentalidades.