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sábado, 25 fevereiro 2023 13:51

A FEIRA DO «CRASTO»

Escrito por 

«COMÉRCIO SERRANO»

As povoações trabalhadoras, quer viventes nos meios urbanos quer nos meios rurais, cedo tomaram consciência, individual e coletiva, de que as FEIRAS eram a melhor oportunidade para venderam os produtos que produziam em excesso e para adquirirem os que lhes faziam falta nos seus místeres. E os nossos primeiros reis, no sentido de desenvolverem o COMÉRCIO e cobrarem impostos, logo se mostraram pródigos a fundá-las, ainda que algumas delas tivessem o estatuto de FEIRAS FRANCAS isentas de impostos.

 

PRIMEIRA PARTE

AGUILARA feira do “Crasto”, cujo período “quinzenal” é conhecido desde os meus tempos de juventude, era mensal em 1844. Fui buscar essa informação ao requerimento incluído no espólio que recebi da Casa Brasonada Aguilar (oferta da minha colega Alice Guerra, entretanto falecida) que, nesse ano, a Câmara Municipal, cumprindo a decisão tomada na sessão do primeiro de dezembro, dirigiu ao «Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor António de Lemos Teixeira de Aguilar», do seguinte teor:

"Tem V. Exa. junto à Praça pública desta vila um terreno que na frente confina com a continuação da rua que dirige para o Largo da Praça e de um lado parte com as casas que foram de José de Almeida Botelho e hoje são de Rita Simões, viúva de João Figueiredo e do outro com casas  da viúva e herdeiros de José Teixeira de Lima, desta mesma vila.

Este terreno que antigamente era o solo de casas que foram  demolidas não rende atualmente alguma utilidade a V. Exa. Enquanto nele não fizer reedificar as casas demolidas, ou outra alguma obra que o tape sobre si e destine a algum uso útil.

Mas este terreno enquanto assim está aberto e vago pode prestar a este Município alguma utilidade, franqueando-o a Câmara às Regateiras, ou Tendeiros, ou a Vendilhões ambulantes, especialmente nos dias de Mercado Mensal que se faz nesta vila. E apesar de este mesmo terreno se achar presentemente pejado e ocupado em grande parte com terraço, cascalho e entulho das casas do dito Botelho que novamente anda reedificando a referida viúva Rita Simões Viúva a quem já fizemos desentulhar e desimpedir e ela desentulhou e desimpediu a parte da Praça Pública a que o mesmo terreno, cascalho e entulho tinha abrangido. Contudo se V. Exa. se designar conceder-nos interinamente o uso daquele terreno para o sobredito fim, nós tomamos ao nosso cuidado o fazê-lo limpar e desimpedir do terraço,  cascalho e entulho de que esteja pejado”.

brasão-1

Mas, “atrás dos tempos, tempos vêm” como reza o ditado popular, muito usado pelos meus pais e, seguramente, pelos avós dos nossos avós. Ditado da “literatura oral” encontra paralelo no verso camoniano “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. E nova vontade teve, pelos vistos, a Câmara Municipal, pois de “mensal” que era, a feira do “crasto”, em data que não consegui apurar, virou “quinzenal” e o local de venda deixou de circunscrever-se ao espaço acima requerido pela Câmara Municipal, isto é, na PRAÇA  AGUILAR para se estender a todas as ruas e largos da vila.

E se as Posturas Municipais de 1938, assinadas por todo o Executivo, então presidido pelo Dr. Luís de Azeredo Pereira, estipulam apenas o custo do “assento” (cf. foto mais abaixo) sem a demarcação dos lugares destinados aos feirantes e produtos, as Posturas Municipais de 1969, com a assinatura solitária do Dr. João Duarte de Oliveira, informam isso tudo, por forma a que cada feirante, vendedor ou comprador, soubesse o espaço que lhe estava destinado à venda e à compra. (cf foto mais abaixo).

 

SEGUNDA PARTE

planta da vila -reduzFaçamos uma reconstituição dessa nossa “feira do Crasto” espalhada pelas ruas e largos vila, nos anos sessenta do século XX.

 Assim:

Em duas segundas-feiras de cada mês, pode dizer-se que a sede co concelho de Castro Daire se transforma num íman que atrai todos os produtores e produtos ligados às atividades das redondezas. Aqui desaguam lavradores e artesãos na mira de venderem a produção dos seus misteres e comprarem o que aos seus misteres faz falta. É a feira quinzenal do «Crasto», que em 1844 era mensal, como vimos.

Aqui acorrem almocreves e negociantes de toda a espécie, buscando transacionar, pelo melhor preço, o objeto dos seus negócios. Aqui acorrem pedintes e cantadores de romanceiros populares transmitidos de geração em geração, ou obra inspirada de poetas iletrados, glosando dramas passionais, mortes, facadas, maleitas, calamidades naturais e andaços, poesia encarada e recebida pelo povo como bálsamo que, contraditoriamente, suaviza e alimenta o sentimento e comportamento masoquista de quem sofre e padece as agruras de vida madrasta. É a feira do «Crasto».

A Igreja Matriz, o largo do Hospital da Misericórdia e do Conde Ferreira, assim chamado por ali existir uma escola por ele mandada construir, o largo em frente à casa brasonada dos Aguilares, e as ruas que ligam uns e outros, vivem de 15 em 15 dias o bulício próprio de uma feira de montanha. Lá  no alto, junto ao Calvário, fora da vila, fica a feira das vacas. Cá  em baixo, no coração do burgo, os animais e as mercadorias acantonam-se em lugares devidamente demarcados e identificados pelo hábito e pelo tempo.

Junto da capela da Srª do Desterro, ali mesmo ao pé da Matriz, o grunhido dos suínos, sempre irrequietos e resmungões, mistura-se com o regateio de compradores e proprietários. O ar empestado de um cheiro nauseabundo e porco, não convida a ficar. No largo Conde Ferreira acantonam-se almocreves, lavradores, e artesãos. Na praça dos Aguilares, os tendeiros e suas quinquilharias. O largo Espírito Santo, assim chamado por ali existir uma capela do mesmo nome, vê-se coberto de todo o tipo de aves, mas os galináceos é que predominam. Por isso, "feira das galinhas" se vai chamando em detrimento do nome de batismo, v.g. ESPÍRITO SANTO. O espírito (santo ou não) vai cedendo lugar à matéria.

galo-Há  ali toda a criação: pintainhos, frangos, galinhas e patos. Um galo, crista levantada, cabeça emproada e rotativa, pescoço dourado até à base das asas, dourado que se estende pelo papo abaixo em forma de peitilho, dá-lhe um não sei quê de conquistador agaloado. Tão novo. Tanta vaidade. Tanta exuberância. Tão cheio de vida e já  condenado à morte. Que pena! Mas quem sabe? Talvez não. Talvez comprado por alguém para ser o mandarim de qualquer capoeira dos arredores, relógio de madrugador, ousio para quem sofre de insónias. Porque estava ele na feira exposto aos olhos de toda a gente, prestes a ser trocado por uns tantos mil reis, a cada momento?

FERRADURASPelas ruas fora há muito que admirar. Ele era as albardas e selas, as cilhas e cabrestos, molhelhas, sogas e tamoeiros, obra de correeiros experimentados e clientela assegurada pela qualidade do produto. Ele era as chapas, testeiras e calcanheiras de ferro para tamancos, ferraduras para bestas, forjadas das tendas de Cujó, de ferreiros de nomeada e de crédito: os Camelos e os  Ramalhos. Ele era os tamancos de Baltar e Vila Pouca. Ele era os sapatos vilãos manufaturador na oficina do mestre Silva (à desbanda dos Paços do Concelho)  e seus aprendizes (um deles chamado Abel Ferreira que dono da oficina se tornou e continua a exercer a profissão neste século XXI)  ali na esquina, mas trazidos para a rua, para a feira. Era o primeiro passo que davam a caminho da serra para botarem figura nos domingos e dias santificados, metidos em pés que poucas vezes cheiravam a chulé por fazerem vida descalços, mas muitas vezes cheiravam ao estrume curtido dos animais domésticos na tarefa insana de arrancá-lo das lojas para as terras. Ele era as campainhas e guizos saídos dos cadinhos e formas das fundições das CAMPAINHASMonteiras e da Granja, enfeite do gado serrano e comprazimento dos seus donos.

As pessoas acotovelavam-se, iam e retornavam, olhavam e remiravam, buscavam e rebuscavam, apalpavam, sopesavam  produtos e preços. Ele era uma criança a berrar descontente, por não lhe comprarem um pífaro de barro, brinquedo que todas as crianças almejam possuir. Ele era os pentes de osso, dentes ralos e robustos; ele era os pentes de piolhos, dentes vastos e frágeis, caçadores engenhosos de parasitas esquivos e indesejáveis. Ele era as travessas e ganchos de tartaruga para o cabelo das mulheres que tanto as ajudavam no milagre de segurar, enroladas na nuca, as fortes e compridas tranças. «Quanto custa o espelho, ó senhor». O senhor não ouviu. Falava com um amigo que já não via há muito tempo. Perdia o negócio, mas mantinha o amigo. O cliente que voltasse mais tarde, o fim da feira ainda estava longe.

Ele era os cobradores a receberem os «terradegos» estabelecidos pela Câmara,  nas Posturas Municipais, fonte de receita indispensável à gestão dos negócios públicos, receita engrossada com as muitas coimas, licenças e multas prescritas nas posturas municipais.

 

«Assento» pagam as galinhas, os porcos e tudo o mais que está  à  venda na feira, pois feira franca não é. Ele era a cestaria de Codessais, as brezas e açafates do Rossão, feitas de rolinhos de palha envolvidos em casca de silva, destinadas a transportar merendas para comer no campo ou para guardar o pão em casa.

capoteEle era as palhoças de junco de Campo Benfeito prontas a desafiar as «chuibas» e «saraibadas» do inverno que há de vir. «Como vai o negócio, ó Manel?» «Assim, assim, inda não deu pró assento, mas a feira ainda é uma criança». Ele era as panelas de barro, as caçoilas e os púcaros da olaria de Ribolhos, de resistência garantida por uma cozedura que só mestre oleiro sabe tentear quando as empalheira no forno.

 «Dlim, dlim, dlim», é o tilintar de uma campainha ao ouvido de um pastor. Ele suspende a respiração, afina o ouvido e avalia o timbre e a qualidade do metal fundido naquela forma de sino em miniatura, prestes a saltar para o pescoço de uma rês, a fim de saber onde ela anda, quando entre matos pastorear o rebanho.

Ele era as peças de burel saídas do pisão da Ermida, prontas a ser retalhadas e a ganhar a forma de capuchas, coletes, casacos e calças, assim as fossem levar ao mestre alfaiate, os que atempadamente se previnem contra o Inverno e o frio na serra. Ele era as mantas de trapos cerzidas com fios de algodão nos teares das redondezas, por diligentes tecedeiras. «Bai um chapéu, ó freguês! Há  de todos os tamanhos e feitios, haja cabeças para eles». Eram os chapéus de palha centeeira, fabricados lá para os lados de Feirão, concelho de Resende. Ele era os queijos da serra, não da Estrela, mas do Montemuro, frescos e duros a desafiarem o apetite do mais enfastiado transeunte. Ele era o doce da Teixeira a fazer crescer  água na boca a todos aqueles que no seu dourado punham a vista.

assento-lugares - CópiaDeambulando por lago tempo no coração da vila, caminhando pelas ruas pejadas de gente, animais e mercadorias, respirando e saboreando os ingredientes que caracterizam uma feira de montanha, inserida num meio em que a agricultura é rainha, há ainda,  no alto do Calvário, à feira das vacas, designação que vem de longe, ainda que ali se negoceiem, também, cavalos, muares e jumentos.

À sombra de uma dúzia de carvalhos de larga copa, espalham muitas vacas, na sua maioria de raça arouquesa, também chamadas «paibotas», por serem nadas e criadas na bacia do rio Paiva. Chifres raspados e polidos, correias de campainhas enroladas no pescoço. De fiada única, umas,  de duas fiadas, outras, as campainhas maiores em baixo e as mais pequenas em cima, como que fazendo uma escala ascendente de sons graves para agudos. Fivelas de metal reluzente, desenhos feitos com brochas a condizer, via-se claramente que os donos caprichavam nos enfeites dos animais que possuíam. Eles punham nesses adereços todo o seu amor e saber...sublimação, talvez, do desiderato nunca conseguido e sempre ambicionado, de pendurarem no pescoço da esposa, da filha ou da amante, um colar de pérolas autênticas, uma gargantilha de prata lavrada, como viam ostentar outras matronas de diferente estatuto económico e social.

 «Quanto custa a baca, ó patrão O interessado mirava o animal de cabo a rabo, passava-lhe a mão pelo lombo e pelo amojo, contava-lhe os dentes, via se os olhos estavam limpos ou se tinham indícios de «néboa». Vaca «naifa» não lhe pegava lavrador que se prezasse. Estava condenada a ir para o talho, ou então, vendida por metade do preço daquelas que  têm os quadris no sítio, lá  ia pela mão de alguém que, tendo terras para lavrar, não tinha dinheiro que chegasse para comprar um animal escorreito e sem defeitos.

feira das vacas-1 - Cópia«Barata, amigo. É pegar ou largar, não tem mazelas e é mansa como um cordeirinho». Na feira conjuga-se a qualidade da mercadoria com seu preço e só depois se toma a opção julgada por mais conveniente. Cada um zela pelos seus interesses, mas na feira é que se aprende.

No que toca ao gado grosso, se se chega a fechar negócio este passa pelo ritual de sempre: acertado o preço, as formas e o tempo de pagamento, vendedor e comprador apertam-se as mãos, um terceiro «racha» e depois vão os três beber a «cabrita» na tasca que mais perto estiver improvisada.

Quando a feira chegou ao fim, as ruas voltaram ao aspeto de sempre. Com fôlego para mais quinze dias, a vila respira fundo e volta à pacatez de sempre. Os feirantes, regressando aos pontos de origem, sentem-se ir mais ricos. Feitos os negócios, ainda que tivessem enganado alguém ou por alguém tivessem sido enganados, vão confiantes nas suas capacidades na arte de mercadejar. Chegam cedo e regressam tarde, bem bebidos e bem comidos.

Cada mulher, uma cesta de merenda pendurada no braço, ou uma canastra na cabeça. Cada homem, um varapau de freixo polido pelo tempo e pelo uso. Arma de ataque e de defesa, arma para o que desse e viesse, pois rara era a feira que não terminava com uma cena de pancadaria.

 PRODUTOS E ASSENTO-1 - CópiaA feira chega ao fim. Regressam satisfeitos e transportam consigo os folhetos onde está impressa a literatura avulsa,  veiculada por mendigos e ceguinhos que, infalivelmente, de feira em feira, se deslocam para pedirem esmola e  venderem miséria, mazelas e sonhos.*

A feira do «crasto» com os feirante inicialmente distribuídos por todas as ruas e largos da vila, como acima fica dito, obedecendo às posturas municipais; por força do trânsito dos tempos modernos, nos anos 90 do século XX, teve de deixar para trás esse cariz histórico e fixar-se, primeiro, na antiga Feira das Vacas e ruas adjacentes, depois para a estrada de «circunvalação» e ultimamente para o Parque Urbano, no cimo de vila, à saída para Lamego. 

EPÍLOGO 

Na década de 50 do século XX eu era, a bem dizer, um “menino”. Tenho atualmente 83 anos de vida. E, natural do concelho, pioneiro que sou na investigação e divulgação da HISTÓRIA LOCAL, mal andaria se não historiasse este evento de comércio e convívio humanos. E, por fazê-lo "pro bono",  nem sequer espero o apreço daqueles que, cuidando da “sua vidinha”, desvalorizam a HISTÓRIA como depositária que é de valores de identidade, de cultura, de economia, de formas de viver, de ser e de estar no mundo. Cada pessoa, cada instituição, cada freguesia, cada concelho, cada povo, cada nação, rege-se pela bitola que mais se coaduna com as suas necessidades e anseios de vida  – física e mental - o seu estado civilizacional, as suas aspirações e exigências culturais. E (todos e/ou cada um)  se ficam e acomodam ao gosto e grau do folclore e entretenimento herdados, ou aspiram a somar algo mais à "legítima" que deixam e que honre e não envergonhe os seus herdeiros vindouros 

Da minha parte, como cidadão e profissional de EDUCAÇÃO E ENSINO (que fui) tenho feito o que sei e posso no sentido de preencher o vazio que, neste ramo de saber, herdámos  dos nosso antepassados. Aqui, em Castro Daire. Uma pena. Pois nunca faltaram (nem faltam) por cá muitos «doutores». Mas eles tratam da sua «vidinha»! E isso lhes basta. Um historiador vai um bocadinho mais longe. Busca, lê, interpreta os  DOCUMENTOS e divulga o seu conteúdo.. Escreve a HISTÓRIA. Diz o NÃO DITO. E, simultneamente, produz  DOCUMENTOS para MEMÓRIA FUTURA.  Este texto, não é apenas a HISTÓRIA DA FEIRA  DO «CASTRO». É, em si próprio, um DOCUMENTO que atesta as necessidades do concelho no tempo que passa. 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.