Trilhos Serranos

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sexta, 25 novembro 2022 13:38

RACISMO PORTUGUÊS? NEM PENSAR...

Escrito por 

TETE - GERALDO, O DESBRAVADOR

Cheguei à cidade de Tete, em Moçambique, no ano de 1962. Conheci ali o Geraldo. Toda a gente conhecia o Geraldo. Ele era o guarda-fios mais antigo dos CTT e morava  numa palhota, nos arrabaldes da cidade de betão, com a mulher negra e uma ninhada de filhos mulatos. Rondaria os 50 anos de idade e chegara à cidade mais quente de Moçambique, uns trinta anos antes de mim.  Foi para ali desterrado, em plena juventude, com o encargo de montar uma linha telefónica que ligasse aquela cidade à povoação de Chicoa, bem perto do sítio onde, muito mais tarde, veio a construir-se a barragem de Cabarobassa, no rio Zambeze.

 

PRIMEIRO

Africa-Por do solA distância que separava os dois pontos rondaria os cem quilómetros. E estender uma linha telefónica esticada horizontalmente em postes de madeira,  levantados à  distância de 40/50 metros cada, atravessando matas de espinheiras, acácias, embondeiros, mangueiras e todas as mais árvores e arbustos que revestem a savana africana, incluindo o indesejável feijão macaco, mais comichoso e incómodo do que a mais incómoda e comichosa micose conhecida na ciência médica,  não era trabalho fácil. Tinha de se montar, desmontar e remontar o acampamento, tantas quantas vezes necessárias, à medida que se avançava para o destino. E o medo, o pavor sempre a rondarem por perto. O urro do leão, a estridente  e ameaçadora risada da hiena, o rufar dos tambores, vindo de longe e de perto, a transmitir mensagens codificadas, insondáveis. Isto só ouvido, vivido, respirado, visto e sentido. Armas de defesa contra o inimigo natural, autêntico ou imaginado? Uma espingarda, a valentia, o arrojo, a manha, as fogueiras,  as catanas, machados, alicates e demais ferramentas do ofício. Em sentido contrário funcionava o encanto do canto variado e inconfundível das aves africanas, das rolas, muitas  e de variados tamanhos, algumas pouco maiores que pardais, cauda comprida, tru-tru-tru, aos bandos que não cabem na memória, nem na descrição. O salto acrobático das gazelas que se furtavam ao tiro certeiro da espingarda 7.7 distribuída pelos serviços à brigada, pois a caça era a principal fonte de alimentação. E o nascer e por do sol? Impressionante! O que fariam os pincéis de Monet se ele se desse ao cuidado de os transportar para a tela? Só vistos. Só sentidos. Inesquecíveis, tal como as queimadas sazonais, dragões flamejantes, ondulantes, quilómetros de comprimento, uma realidade africana, simultaneamente trágica e bela.

SEGUNDO

ABÍLIO-TETEEle, o Geraldo era o chefe da equipa. Uns tantos negros, recrutados para o efeito, seguiam as suas ordens. Cova aberta na terra vermelha, poste levantado e aprumado, isolador de porcelana enroscado numa haste de ferro em forma de S,  aqui e além uma estaca de cobre espetada na terra junto ao poste, sem a qual a linha aérea era ineficaz na comunicação, toca a seguir em frente. Vamos a outro. Assim por diante, durante dias, semanas, meses a desbobinar e a esticar o fio, de poste a poste, quilómetro a quilómetro. E foi assim que o Geraldo, europeu de origem, e a sua equipa de negros, naturais da zona, prestando diligentemente esse serviço ao Estado, chegaram à Chicoa. Desbravadores de matos e pioneiros nas comunicações telefónicas do tempo entre os dois lugares, a partir daí, estavam reunidas as condições para o melhor funcionamento do Posto Administrativo da Chicoa, onde se hasteava a bandeira das quinas. Ali também era Portugal e, agora, bastava rodar a manivela do telefone com velocidade bastante para, do outro lado, no terminal da linha, trimtrim, trimtrim,  alguém atender e saber as razões da ligação.

Mas para que isso pudesse acontecer, o Geraldo, que para lá foi na flor da idade, teve de se habituar ao meio, ao espaço e às gentes. Rodeado de negros e negras, a conviver e a viver com eles e com elas, negro se tornou nos hábitos, no comer, no beber, no divertir, no falar e, ignorando, em absoluto, o histórico conceito «em Roma sê romano» ele assumiu-o aculturadamente, na prática,  «em África sê africano». Habituou-se a dormir na casota de capim, sobre a esteira de capim, acompanhado da negra que resolveu segui-lo na sua saga e que ele assumiu como esposa a vida inteira.

TeteChegados à Chicoa, terminada a montagem da linha, cumprida a missão, o  Geraldo regressou a Tete e, ali,  tinha, agora, por função montar novas linhas telefónicas e dar assistência à rede montada. Era um pioneiro das comunicações numa cidade apelidada de frigideira de Moçambique, por ser lá que o mercúrio dos termómetros mais alto subia e razão para se dizer que nela se estrelava um ovo no tejadilho de um automóvel, desde que ele estivesse ao sol.

A vida que foi forçado a levar, no cumprimento do seu dever profissional, fez dele um «branco cafrealizado» no dizer pejorativo de outros brancos e brancas que chegaram muitos anos depois e que vierem a conhecê-lo, como eu, sempre caído nas valetas,  ao fim do dia, bêbado como um cacho.  

Eles, que ignoravam tudo o que se relacionava com passado distante e recente da cidade e das gentes pioneiras. Eles que já iam à livraria, ao clube, ao café e ao cinema, na sala do Abdul  & Ca., em cuja sala de máquinas, durante dois anos, me sentei à noite a projectar as fitas anunciadas, a bobinar e desbobinar filmes, sempre de olho no automatismo dos eléctrodos que se atraíam mutuamente e provocavam o arco voltaico de luz. Parassem eles, ficasse o écran às escuras e garantida estava a costumeira sapateada dos espectadores a pensarem que a fita tinha sido censurada. Nunca incluí no meu currículo profissional esta tarefa, mas como ela fez parte do filme da minha vida, aqui  a deixo à laia de fotograma.  

No tempo a que me reporto, anos 60 do século XX, a Estação dos Correios tinha dois chefes: um responsável pelo departamento postal e outro pelo departamento técnico. Ambos com formação humanista bastante para tolerarem que o Geraldo, um funcionário público, desse aquele espectáculo diário, apesar de lhe pedirem, reiteradamente, mais recato nos seus hábitos. Não tinha emenda. E, de resto, como podia ter emenda uma doença de trinta e tantos anos, começada no «mato» no cumprimento de um dever, onde ao sabor das comidas e das bebidas cafreais se juntavam os suores e os tremores das febres palustres, em resultado do ataque dos mosquitos, sempre prontos a desfrutar o manjar de sangue, onde quer que o sentissem? E onde paravam os comprimidos de quinino para prevenirem e combaterem as febres? Calor de abafar, água potável bebida de bruços, pescoço estendido sobre os pequenos charcos, como gazelas. E isto, só depois coada através de fieitos ou folhas que sobre ela se colocavam. Toca a beber e viva o velho, salve-se quem puder!  

TERCEIRO

Arte-4Mas a chefia da estação foi substituída. O novo chefe, indiferente ao passado daquele «desbravador» que venceu os medos e os pavores das noites africanas, iluminadas pelas estrelas e penetradas pelos sons da terra, que calcorreou distâncias a pé com materiais e tarecos necessários à missão e ao ofício,  resolveu acabar com a «triste figura» que ele fazia na cidade. De um dia para o outro, o Geraldo, que se tornara um ícon local, mau grado o seu comportamento, mas também pelo papel de pioneiro que desempenhou nas comunicações, desapareceu. Não longe d a  idade da reforma, foi remetido para Lourenço Marques, como carta metida no correio com destinatário conhecido. Ali, a mil e muitos quilómetros de distância dos seus amigos, dos seus espaços e passos de vida, da sua companheira negra e da filharada, longe do tempo, dos afectos e vícios que lhe moldaram o corpo e o espírito, ali estava só, não conhecia ninguém. Um velho desterrado pela segunda vez. E se, em Tete, se embebedava ao fim do dia, em Lourenço Marques passou a embebedar-se o dia inteiro.

Por malhas que o destino tece, conheci-o nas duas cidades, com as diferenças anotadas e mais uma, de não somenos importância: em Tete, quando estava bêbado e já não se segurava de pé, cantarolava, assobiava e chorava de alegria. Era feliz a seu modo. Em Lourenço Marques, longe da família e dos amigos, quase no fim da vida, era infeliz e chorava de tristeza. Lamentava-se de,  depois de tanto trabalho a vencer distâncias, matas e  medos,  o terem  arrancado dos espaços que lhe comerem a juventude, de lá, de Tete, onde fora o Geraldo Sem Pavor, o Geraldo aventureiro sem medo da selva africana.  Aqui e agora, numa cidade moderna, era o Geraldo Com Pavor, o Geraldo com medo da selva humana, com receio de acabar os seus dias numa valeta, sem ter por perto uma mão amiga ou uma voz conhecida.  

ALUNOS- 1-2O acaso levou-me ao seu encontro. Ao deparar comigo, soluçando, lágrimas a rolar-lhe pelo rosto abaixo, velho, lançou-se-me nos braços como se eu seu filho fosse. Este acto fez-me lembrar imediatamente o meu pai, no momento na minha partida para tão longes terras. Não sei se foi por isso, se foi por sentir uma réstia de humanidade que sempre fica no coração de alguns homens do PODER, ao ver que as chefias dos CTT em L. Marques, face aquele farrapo humano, perdido e desorientado na floresta citadina, reviram o currículo de «GERALDO, O DESBRAVADOR» e  passaram-lhe guia de marcha de retorno à cidade de Tete, onde faleceu, junto da família, sem se dar conta da construção da barragem de Cabarobassa , levantada perto do Posto Administrativo até onde ele estendeu a primeira linha telefónica. Sem se dar conta da construção da ponte de betão sobre o rio Zambeze, a ligar a cidade ao Matundo. Sem se dar conta, sequer, das Lutas de Libertação e da Descolonização.

E, de resto, que lhe importava a ele que o Governo de Moçambique passasse de brancos para negros, se negra era a mulher que toda a vida o acompanhou nas boas e más horas, que sempre lhe governou a vida, mulher a quem, a par dos afectos, ele sempre entregou o ordenado mensal para alimentar a caterva de  filhos, ficando somente com o bastante para a bebedeira diária? 

QUARTO

As voltas que o mundo dá! Não sei explicar a razão por que me lembrei dele, passados tantos anos. Aquilo que, sem mais quê, me saltou dos escaninhos da memória e trouxe à luz do presente espaços, ambientes, factos, valores e pessoas que ali se acomodaram na minha juventude. Mas talvez isso seja porque, exactamente na minha juventude, por força de ganhar a vida, longe da minha família, dos meus pais, amigos e conhecidos, pisei os caminhos que ele desbravou. Talvez porque, moço ainda, sempre compreendi o estado da degradação humana a que ele chegou. Talvez porque sempre reprovei o acto do novo Chefe dos Serviços que, ali chegado, em nome da boa imagem institucional, o arrancou do seio da família, dos conhecidos e amigos, sem uma pontinha de sensibilidade humana. Mas era chefe. Mandava. Tinha poder. Confundia poder com autoridade, e  esta sua atitude autoritária me fazer lembrar, então, o ditado que o pai citava com frequência: «Deus nos livre de autoridades novas e de paredes velhas». 

  NOTA: Este texto, publicado, há um bom par de anos, no meu velho site «trilhos serranos» foi incluído integralmente no meu livro «PEGADAS MINHAS», ed. em 2022.

 



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.