Quem se meter em tal aventura e, atentamente, cirandar pelas terras do CRESCENTE FÉRTIL, aquelas que englobam a Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates. Na África, o Nilo, ao longo de todo o Egito e, bem assim, todo o Próximo e Médio Oriente (com os seus desertos e oásis) verá, com os seus próprios olhos a fixação do homem à terra. Verá o aparecimento os primeiros povoados, as primeiras ferramentas agrícolas e as primeiras vasilhas líticas, de olaria e de madeira destinados à preservação dos produtos arrancados ao solo arável. Foi a REVOLUÇÃO NEOLÍTICA na trajetória histórica da HUMANIDADE.
A caminhada nómada, em busca de alimentação, de frutos silvestres próprios de cada estação do ano e das condições favoráveis ou adversas do clima, eram tempos idos. Mas coletor e caçador o homem se manteve até aos tempos de hoje.
Claro que nada disto foi assim tão linear, nem igual em todas as zonas do planeta onde o homem, este “bicho da Terra tão pequeno” punha e põe o pé descalço e se vestia e veste com as peles dos animais que abatia e comia. E quanto tempo consumiu ele nesta sua épica saga até ser cantado no épico verso lusíada? Assim:
No mar tanta tormenta, e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano
Onde terá segura a curta vida
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
( Lusíadas, est. 106)
E vem isto a propósito do aparecimento das primeiras alfaias agrícolas, nomeadamente aquela que viria a ser designada por arado de pau. E não custa a crer que essa primeira alfaia tivesse saído do ramo de uma árvore, ao jeito de poder ser puxada por um ou mais homens, outro a segurá-la e um dos bicos espetado no solo a rasgar um campo de cabo-a-rabo.
E, feita essa conquista técnica de tração humana, inteligentemente se passaria à domesticação dos animais e tê-los como companheiros e ajudantes na lavra e no transporte.
O homem já não estava só na companhia dos seus irmão bípedes. E, de bois atrelados ao arado, nesse vai-e-vem ao fim da jeira, rasgando-a, semeando-a, cultivando-a com a ajuda desses quadrúpedes, viria a nascer não apenas a semente atirada ao solo, mas também escrita BUSTROFÉDON. Nunca ouviram falar? O Google e o Youtube explicam. Façam o favor.
Na sua trajetória histórica, acumulando saberes e experiências, as alfaias agrícolas aperfeiçoavam-se, multiplicavam-se e, consequentemente, acompanhadas eram pelo vasilhame destinado à preservação dos produtos semeados e recolhidos, bem como todas as indústrias conexas à sua transformação para consumo.
E surgem os moinhos manuais movidos a energia humana. E, num saltinho mais, a energia eólica e a energia hidráulica a pouparem o homem desse esforço. Surgem os moinhos de vento e hidráulicos. E os teares e os pisões. Todos os equipamentos e as ferramentas necessárias à sobrevivência da tribo, da comunidade, da família. Uns e outros, equipamentos, utensílios e ferramentas, a testemunharem, no TRIBUNAL DO TEMPO, a extensão material da inteligência humana sem métrica de medição, a não ser o cálculo e a tentativa.
Mas, no domínio das técnicas e alfaias agrícolas, faltava dar um passo de gigante. Faltava inventar a CHARRUA DE AIVECA MÓVEL, capaz de partir do estremo de uma jeira, virar a leiva para um dos lados e, chegada ao estremo oposto, retornar e dobrar a leiva nova sobre a anterior. Assim, ora vai, ora vem, até ao fim da vessada. lavrar a leira toda. Tornar uma manta de terra verde numa manta terra negra. Pôr ao sol, leiva sobre leiva, as raízes herbícolas de lameiros e terras fortes de regadio e de sequeiro, pronta a ser terra de semeagura.
No meu livro “Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva” editado em 1993, deixei uma tabela com os nomes das aldeias e proprietários que, por estas bandas, possuíram as primeiras charruas desse género.
Em CUJÓ (retorno sempre ali, à minha terra natal, por ser lá que eu próprio pratiquei a dita escrita “bustrofédon com uma mão na aguilhada e outra na rabiça do arado a lavrar leiras de ponta a ponta) o primeiro habitante a possuir tão inovador equipamento terá sido o meu avô, António Terezo. Comprado em 1919, terá custado 16$00. O informante foi o seu filho e meu pai, Salvador de Carvalho, referido na tabela. Na altura, para além dessa preciosa informação (tal qual a dos demais informantes das restantes aldeias) ele referiu o espanto que causou na população o aparecimento de tal “bicho” técnico. E contou mesmo que um dos habitantes, de seu nome Frederico, avançado na idade, encostado a um cajado, tente não caias, se deslocou às terras lavradias do giestal para ver e acreditar. Não era caso para menos. Passando a vida inteira a usar o arado radial celta, a riscar terras centeeiras, de alqueive em alqueive, aquilo se não era bruxedo até parecia. Um espanto. Mais uma maravilha da inteligência humana que, laborando nas terras do norte da Europa, na Idade Média (séculos XII e XIII) só nos últimos anos do século XIX e princípios do século XX se atreveu a subir a estas terras do Montemuro e arredores.
E, vejam só. Muito antes de eu ter recolhido esta informação que deixei impressa em livro, lá longe, nas terras de Moçambique, para onde emigrei e onde troquei a aguilhada pela caneta, lá longe, dizia eu, a lembrar-me saudosamente da minha terra natal e das tarefas que nela exerci na juventude até partir, escrevi o poema que aqui deixo. Um daqueles que, ligados à terra e às gentes da serra, já publiquei na imprensa há muito tempo, a par de outros tantos que mantenho inéditos. Assim:
A VESSADA
Em Maio
Mal desponta no horizonte
A estrela da manhã
Começa a vida.
E, logo, com afã,
O camponês se atira
À eterna e árdua lida.
Barulhentas
As ferramentas
Denunciam quem madruga.
O tamancar ruidoso
E apressado
Desperta o preguiçoso
Acorda o mais descuidado.
No campo, depois,
O que é aqui, é além:
A charrua vai e vem
Puxada pelos bois
Rasgando a terra crua
Leiva sobre leiva.
E o lavrador, agarrado
À rabiça do arado
Entre coisas mais
Pragueja, berra, ralha
Com os animais,
Pica-os com a aguilhada
E, com o pé, quando calha,
Ajusta a leiva mal virada.
Atrás dele
Ao longo do sulco aberto
Nas húmidas lameiras
Homens e mulheres conjuntamente
Preparam a terra p’ra semente
E enterram o estrume mal coberto.
Esvoaçando muito perto,
Às vezes pousadas
No timão do arado,
Picam o cibo desenterrado
As boieiras descaradas
Caudas nervosas, arrebitadas.
Para cá e para lá
A vessada chega ao fim:
O que é aqui é além,
Todos os Maios é assim.
Os antigos, por amor
Que tinham à terra
Para a cultivarem melhor
Dividiam-na em folhas
E este nome lhe fica bem:
- Pois a terra lavrada
Não é uma folha pautada
Onde honrados lavradores
(quais Cincinatos ou Serranos!)
De apagada memória
Numa folha e noutra folha
Escreveram anos e anos
Com trabalhos e suores
A sua vida, a sua história?