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segunda, 26 agosto 2013 05:47

ÁGUIA DO MONTEMURO

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Persistindo na divulgação dos cidadãos empresários que levaram longe, por bons motivos, o nome do concelho de Castro Daire e dos produtos que cá que fabricavam, é hoje a vez do senhor Valentim Monteiro. Para isso, como venho fazendo, socorro-me do meu livro «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura», editado pela Câmara Municipal, em 1995, produto da «investigação aplicada» que fiz no uso da «licença sabática», quando era professor na Escola Preparatória de Castro Daire, direito/regalia que criou engulhos a alguns colegas que jamais se abalançaram a tal empreendimento e que, hoje, a troco de uma «planificação de aula» exigem o grau de «excelência». Aí vai:

«Tendo por logótipo uma «águia a sobrevoar as cinco tetas da serra do Montemuro» existiu em Castro Daire uma fábrica de refrigerantes da qual saia o famoso e acessível pirolito, garrafinha de pescoço apertado, onde se baloiçava berlinde de vidro a servir-lhe de rolha, depois de pressionado pelo dedo.
A iniciativa pertenceu a Valentim Monteiro, nascido em 1907 e falecido em 1983. Natural de Picão, manteve-se na aldeia até aos dezoito anos de idade, ajudando os pais nos serviços da lavoura e da pastorícia. Gabava-se de ter «aprendido a ler e a escrever enquanto guardava as ovelhas».

Antes de assentar praça tentou governar a vida, em Lisboa, como estivador. Concluído o  serviço militar regressou à aldeia e aí se estabeleceu com mercearia e taverna, cuja gestão entregou à esposa a fim de  se  dedicar à profissão de tanoeiro. Fazia pipos, canecos e baldes que depois vendia nas feiras da redondeza.

Em 1941 muda-se para a sede do concelho e, como o exercício da sua profissão de tanoeiro o obrigava a comprar madeiras, aproveita as suas deslocações às povoações da serra para  comprar porcos, cabritos e outras rezes, cujas carnes negociava, depois, na sua casa de pasto, ali, em frente do coreto. Cinco anos gastos entre madeiras, pipos e carnes, consegue algumas economias e com elas se abalança a montar a fábrica de refrigerantes «Águia do Montemuro». Cansado de fazer e vender vasilhas de madeira vazias, eis a maneira como passou a vender vasilhas cheias, vasilhas não de madeira, mas de vidro, com rótulo e logótipo próprios.
A serra do Montemuro, com as cinco tetas recortadas em silhueta e uma águia a sobrevoá-la, passa a identificar o produto da fábrica recém fundada, ali, na rua de Santo António. Não houve outra. 
Dela saíram a laranjada de marca «Valmon», os pirolitos, as gasosas, xaropes e licores nunca mais esquecidos por aqueles que tiveram a sorte de os saborear um dia numa roda de amigos ou ao balcão improvisado das festas e romarias. E muito menos as crianças. As crianças da serra que, por dez tostões, emborcavam um pirolito e se apressavam a partir a garrafa para ficarem com o berlinde que lhe servia de rolha.  E as crianças da vila que se arramalhavam à volta da Fábrica, aproveitando o mais pequeno descuido para surripiarem garrafas vazias e fazerem a mesma coisa. 

Pirolito-Gaz-2Utilizando a laranja seleccionada do Algarve, o fabricante procurava na qualidade da matéria-prima, a qualidade do produto acabado. Mas não era só a qualidade da fruta que determinava a qualidade do produto. Valentim Monteiro, que foi criado na serra e na serra pastoreou os magros rebanhos que seus pais possuíam, levando-os a pastar e a beber onde era necessário, sem recorrer a análises feitas por sofisticados laboratórios, mas valendo-se de um saber de «experiência feito», tinha  conhecimentos bastantes sobre a qualidade das águas que brotavam do ventre da, então, «Serra Mais Desconhecida de Portugal», para utilizarmos o subtítulo que Amorim Girão deu ao estudo que fez sobre o Montemuro. E tal como o melhor do «Scotch Whisky» é a água da Escócia, o melhor dos refrigerantes que saíam da «Águia do Montemuro», apesar da fruta seleccionada, era a água que descia dos lençóis que o outeiro da Ouvida, ao tempo arejado e despoluído, ocultava no seu subsolo. Água que descia canalizada até à sede do concelho. Água que, sendo de nascente, era bem diferente da que actualmente se consome, bombada do rio Paiva.

Foi uma fábrica extemporânea para o meio. Há homens que vivem fora do seu tempo e Valentim Monteiro terá sido um deles. Indústria familiar, filhos a tornarem-se autónomos por via do casamento, mão-de-obra extra familiar mais cara, equipamentos um tanto ou quanto artesanais, sem poderem competir com outras fábricas do ramo com tecnologia mais sofisticada, acabou por se converter numa fábrica de «concentrado de pasta de laranja» e nessa qualidade fornecedora de matéria-prima às fábricas de maior projecção no País. Antes, porém, e por pressão do público consumidor de Castro Daire, que se afeiçoou às bebidas «Valmon», ainda a «Provir, Lda de Viseu, utilizando o vasilhame da marca original, engarrafou o líquido que saía de Castro Daire em «bidons» com vista a não ser descoberta a fórmula de preparação. Foi por pouco tempo.

Em 1977, acompanhada da sobrinha Odete, que sempre ali trabalhara e, por isso, «estava enfarinhada nessas andanças», assumiu a gerência da fábrica, Maria Isaura Santos Monteiro Vicente, filha do empresário fundador.

Pessoa dinâmica e expansiva, o seu nome há-de estar para sempre ligado ao diploma e à medalha com que foi distinguida em 1988, pela «Quality Control Review Limited, InternationalQuality and Standard Organization» cuja carta, é datada em Londres, a 25 de Março de 1988. 

         Com a ocorrência do 25 de Abril de 1974 deu-se a desorganização temporária do aparelho produtivo português que estendeu os seus tentáculos até Castro Daire. A firma «Valente & Pereira» com sede em Algés, na altura a principal distribuidora dos produtos «Valmon», deixa de satisfazer os seus compromissos de tesouraria e, em desespero de causa, sem solução para o problema, reconhecedora da qualidade do produto, concede a identificação de algumas firmas suas clientes. E é assim que a partir de 1978, aparecem como distribuidoras dos produtos «Valmon» as firmas de grande prestígio, a saber: a «Uprel de Estarreja», a «Santos Quintódio, Lda» de Faro, a «Maias & Maias, Irmãos, Lda, de Aveiro, e a multinacional «Sipren», de Lisboa.

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Os ventos, porém, não sopravam a favor do negócio. Algumas firmas que, depois, vieram a entrar no circuito da distribuição, deixaram de satisfazer os compromissos assumidos e, com algumas dezenas de milhar de contos fora  dos cofres, desiludida com o comportamento de tais clientes, a fábrica de refrigerantes «Águia do Montemuro» convertida em fábrica de «concentrado de pasta da laranja» fecha as portas.  


E é assim que, laranjadas, pirolitos, xaropes e licores de marca «Valmon», não falando de uma garrafa ou outra que ficou como documento histórico e dos rótulos do «ANIZ Escarchado» bem como o rótulo da laranjada destinado a informar o consumidor da composição da bebida - «A laranjada Valmon é fabricada com pasta de laranja, essência de laranja, açúcar castor, ácido cítrico, gás carbónico, água potável e corante. CORADO ARTIFICIALMENTE», só existem na memória das pessoas, tal como os equipamentos de produção e engarrafamento.

Do equipamento relacionado com «Fábrica de Concentrado de Pasta de Laranja» resta a lembrança, rótulos avulso, a máquina «JOMATE» umas tantas caldeiras de alumínio e muitos «jarricans» de plástico, aqueles  onde era transportada a pasta com destino às fábricas produtoras de laranjadas e sumos que, antes de serem rotulados com marca própria, ocultavam a «marca» e «rótulo», fruto da iniciativa, do engenho e do trabalho das gentes de Castro Daire.

Abílio/2013

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.