ARREDORES DE LAMELAS, CASTRO DAIRE
Se recuarmos no tempo e tivermos em conta todos ingredientes históricos encontrados em manuscritos e textos impressos, poderemos até elaborar uma "estória" de fantasia para encanto de meninos e gente adulta crédula nas mais infantis patranhas. Digamos que, a partir de material histórico, temos pano sobejo para uma narrativa ao gosto popular e de encanto para criancinhas que, ávidas de aventuras fantasiosas e lendárias, ficam, de boca aberta, encantadas com tudo o que lhes contam os adultos, quando os querem entreter e nelas despertar a criatividade, a imaginação e o gosto pelas narrativas que metam ação, heróis vitoriosos e vencidos. Bons e maus. É o que vou fazer a partir de agora, tal como fazia com os meus filhos pequeninos para eles adormecerem inventando "estórias" sem fim e só com eles a dormir o sono dos anjinhos, eu poder prosseguir os meus trabalhos profissionais (corrigir os testes dos alunos) que dispensavam tais estorietas e exigiam o rigor pedagógico e científico na avaliação. Então era assim, escrito em itálico, não vá alguém tomar por verdadeira a "estória" cerzida assim com alguns fios e liços de história autêntica:
"Era uma vez...foi há muito, muito tempo. Decorria o ANNO DOMINI 1058, quando os exércitos cristãos a caminho de Viseu para conquistarem definitivamente a cidade aos mouros, um pouco a norte de Castro Daire, se travou uma batalha nunca vista nem contada nos livros de história. Morreram lá muitas pessoas, soldados, cavaleiros, homens, mulheres e crianças. Na refrega ouvia-se o tilintar das espadas cristãs contra os alfanges mouros, gritos lancinantes de dor de adultos e crianças, cavalos desgovernados e perdidos a correrem em todas as direções. Os animais bravios e o passaredo que habitualmente habitava por perto desarvoraram para longe assustados pela vozeira do acontecimento. Vencidos os mouros, uns fugidos e outros mortos, os cristãos prosseguiram a caminhada para Viseu, abandonando os cadáveres e os feridos no campo de batalha.
Nessa época havia muitos ursos, lobos, abutres e corvos, bichos carnívoros e necrófagos. Dotados pela natureza de faro apurado, no chão e no ar, eles farejaram de longe o manjar deixado ali a céu aberto. Daí os nomes Fareja e Ferejinhas que chegaram até nós. Passaram por Chãos do Mouro e todos, por terra e por ar, se encaminharam para o sítio do festim. Foi um regabofe, um ver se te avias, um fartar de vilanagem. Os ursos e os lobos atestavam os bandulhos, os abutres e os corvos os papos e, mesmo fartos, cada qual procurava levar os bocados que podiam ao afastar-se. Os ursos e lobos serviam-se dos dentes afiados e os abutres e os corvos dos bicos robustos. As cabeças humanas, caídas no campo de batalha, descarnadas, redondas, transformadas em caveiras, eram difíceis de transportar e, por isso, rolaram por ali, por ali ficaram, como cabaças abandonadas num campo cultivado por agricultor descuidado e perdulário. Muitas foram enterradas pela erosão dos tempos, outras desapareceram, mas uma delas, rolando de lado para lado, ficou por ali perdida. Encontrada sozinha foi ela deu o nome ao monte: MONTE DA CABEÇA.
Difíceis de levar pelo ar, mas fáceis de arrastar pelo chão, foram as pernas e os braços. As pernas, que foram feitas para andar, desapareceram para sempre, mas os braços, vencidos e caídos, ficaram por perto e vieram a dar o nome aos dois povos que hoje conhecemos e já existiam no século XIII: os Braços de Cá e de Lá.
Desse monte, com as vertentes poente e sul muito inclinadas, em tempos de trovoada e de chuva, as terras escorriam pela encosta abaixo, originando autênticos lamaçais, lameiros e lameiras, terras de cultivo, à espera de sementes e de gente. No sopé do monte, abaixo de Vila Pouca, ficou conhecida a Quinta das Lamas, campos onde está hoje a Escola Preparatória, onde é suposto ensinar-se HISTÓRIA. E do lado oposto ficaram os lameiros e as lameiras, que viraram Lamelas, as lamas mais escorridas, coadas e leves, onde se fixaram as gentes e se erigiram as casas, formando as povoações. Lá mais ao fundo, as Covelinhas e a seguir os Mortolgos, nome próximo de "MORTÓRIO=FOGO MORTO" que significa "casal desabitado, reduzido a matos e sem cultura", tudo a lembrar o abandono e a MORTE, sítios a recordarem a grande batalha ocorrida ali, naquele monte onde se levantou um cruzeiro gigante, em 1940.
Resta-me falar de São Paio (Vila Pouca) uma das povoações aninhadas ali perto. Essa resultou de ter ido ali parar uma das vítimas da batalha, ainda criança, a qual, em tempos cristãos, vencidos e afastados os mouros, foi associada ao menino que o Emir Abdamarrão III quis incluir no seu harém. Foi ele que deu o nome à terra e que se tornou orago do templo ali levantado muito tempo depois".
Eis, pois, uma "estória", um conto do "faz-de-conta". Ele pode encantar meninos e adultos, mas de história autêntica só tem as linhas e os liços com que eu, tecelão de ofício, sentado no tear das letras, peanha abaixo, peanha acima, pente à frente, pente atrás, pum... catrapum... lançadeira lá, lançadeira cá, pum... ..catrapum....teci a teia de burel que vos apresento. Burel grosseiro, pano com que até aos meados do século XX, data em que o ESTADO NOVO mandou semear CRUZEIROS CENTENÁRIOS por tudo quanto era sítio, se vestiam os camponeses e os serranos que, arrastando a vida, pelos montes e vales da serra do Montemuro e arredores, conquistavam os socalcos para terrenos de cultivo, povoavam corujeiras em sítios difíceis de habitar e lavravam as lameiras e veigas dos senhorios na sua condição de enfiteutas. Uns e outros, conquistando, povoando e lavrando estes lugares inóspitos, cederam de boa mente os cognomes aos primeiros reis: Afonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D. Dinis, o Lavrador, mas, em boa verdade, eram eles, os camponeses e serranos, que conquistavam, que povoavam e que lavravam as terras que dão corpo a este CONTO que vos conto, que não está, nem pode estar, nos livros de HISTÓRIA