DEVOTO DE DIANA (3)
Já deixei claro que, neste meu livro, em muitos passos, fui acompanhado por Aquilino Ribeiro, o meu escritor de eleição. Várias foram as suas obras que me fizeram passear por cidades, vilas, aldeias, montes e serras do Portugal bárbaro do seu e do meu tempo, cujos habitantes, analfabetos, o não liam, mas que lhe serviam de matéria plástica para a sua escrita e pensamento. É ele próprio que o diz. Com ele estive na imponente Catedral de Córdova, com ele estive noutros monumentos nacionais citadinos e, com ele, acabei por fixar-me numa aldeia sem localização geográfica, pois mais não é que a designação de uma terra que integra uma sua peça de teatro: "Tombo no Inferno".
Ele coloca o leitor/espectador junto do Santuário da Nossa Senhora das Angústias, onde era capelão o Padre Facundo. Ali se faziam os exorcismos às pessoas e cães danados, pois a "raiva" era um mal que, nesses tempos, muito apoquentava as comunidades. E bem se gabava o Capelão de que, em vinte anos que levava de múnus, só duas pobres almas terem sido vítimas desse mal. A primeira tinha sido o "brutamontes que morava nas Quintas do Vouga, que estava amancebado com a mulher de outro e já não se confessava havia muitos anos". A segunda era um jovem, namoradeiro que atraía as mulheres como as flores atraem as abelhas, o mesmo que, com o recato merecido, já tinha enfeitado a cabeça de alguns homens casados e acabou preso às ordens do regedor, não por isso, mas por ter sido mordido por um cão danado.
Graças a uma das namoradas conseguiu escapar do calabouço no momento em que o povo estava reunido no templo para assistir ao exorcismo desse mal. Ao vê-lo solto, a coisa só podia dever-se ao Porco Sujo e tudo grita:
"- Mata, mata, que é danado!
E a escapar à morte deste jeito, Mestre Aquilino manda "CAIR O PANO", dando por finda a peça "Tombo no Inferno", escrita no intervalo de outras obras suas, para agradecer ao seu amigo Robles Monteiro e digníssima esposa, D. Amélia Rey Colaço, a trunfa de dolicocéfalo louro fornecida por eles, quando, em 1928, preso no Fontelo, pensava disfarçar-se na fuga. Fugiu sem fazer uso dela, mas agradeceu escrevendo a peça.
Não sei se ela subiu ao palco e se recebeu muitos ou poucos aplausos da plateia nacional. Por isso, porque estou a escrever muitos anos depois e sei, por experiência própria, que em todo o campo de semeadura, por mais experimentado e sabedor que seja o homem da rabiça, por melhor que conheça a terra, há sempre um cantinho onde não chega o bico da relha, cantinho que disponível fica para uma cavadela de enxada, pronto a receber mais um pé de couve ou de alho-porro, um que seja, peço licença ao leitor/espectador para não virar repentinamente as costas ao palco e, no lento cair do pano, possa ver ainda este acrescento da minha lavra, desta minha cavadela.
Foi assim: o Evaristo (Varistinho para certa dama de Seixos Rubros) pois esse era o nome do foragido, deixando a morte danada à porta do Santuário (templo com o interior povoado de imagens de santos e santas em altares com favos de relicários) acossado pela assuada raivosa, de posse de todas as suas faculdades, físicas e mentais, ouvindo o zumbir dos zagalotes perdidos em seu redor (um deles só não levou consigo a sua alma por um triz) agradeceu, mais uma vez, o gesto humano e amoroso da menina Branca, aquela que ele já tinha "levado ao castigo" por intermédio da alcoviteira da terra. E lembrou-se dos tempos em que punha a arma à cara e a disparava na direção do alvo que tinha na mira. Coisas do Demo, coisas do Porco Sujo! Com tais ideias a bailar-lhe no cérebro, escapuliu-se nos bosques. Ele, um exímio caçador que foi, transformado se viu, de um momento para o outro, numa esquiva peça de caça. E não tardaria que, por montes e outeiros de todos os poviléus das Beiras, se ouvisse o toque das cornetas, clarins, búzios e trombetas, apelando ao ajuntamento dos moradores, estadulhos, forquilhas e forcados em punho, caçadores e caçarretas de trabucos, polvorinhos e chumbeiras a tiracolo, dispostos a participarem na caça ao homem, tal como faziam nas batidas aos lobos, tão abundantes em redor. Ele, um caçador encartado, conhecedor de todos os barrocais e almuinhas da serra, das madrigueiras das raposas, tocas e luras de coelhos, de lameiros e leiras de feno que pariam codornizes como os fornos do Santuário da Lapa, fornada após fornada, pariam bolos de trigo em tempo de novenas e romeiros, agora em lobo solitário transformado. Ele, sociável e afável entre os demais habitantes das aldeias vizinhas, prestável a toda a gente, namoradeiro, não passava agora de um fauno dos bosques, o monstro semelhante ao papa-moças que arregimentou meio mundo beirão para ser caçado, o mítico homem das mulheres escondido nos montes, terror das mães e das pastorinhas que cresciam e envelheciam na serra a guardar gado e, entre matos, forçadas ou por consentimento, perdiam os "três vinténs", único tesouro com que nasciam. Tudo isso até ao dia em que, cansado de fugir, cansado de se acoitar, alternadamente, em tudo o que era gruta e choça escondidas nos fraguedos, onde se acoitava a fauna bravia, portas sempre abertas, donde ele tantas vezes tinha feito sair coelhos, cansado abrigar-se na caverna do "castro celta de Ariz", lá no alto do fraguedo, ninho de águia em ruínas sem certidão de idade, fatigado de botar mão a tudo o que era fruto selvagem ou cultivado nas hortas, depois de ter sobrevivido meses a fazer uso das armadilhas primitivas de caça para poder ferrar o dente no coelho, lebre ou perdiz que nelas caíssem, depois de recorrer aos primitivos meios de fazer fogo, batendo com uma torrinha de quartzo na ponta da navalha (objectos inseparáveis de qualquer serrano precavido, por serem raros os fósforos e proibidos os isqueiros), dirigidas as chispas, resultantes daquele embate, repentino e repetido, a uma mancheia de palhas secas, fogueira feita, (tarefa que não era para qualquer figurão) churrasco consumido, farto hoje, famélico amanhã, barba crescida, cabelos desgrenhados, roupas gastas, corpo manchado de sangue, cicatrizes dos arranhões das silvas, chamiços e gravetos secos, lancetas traiçoeiras perdidas na serra por cirurgião rural em trânsito a canimho de uma sangria solicitada algures, foi num aspecto físico assim, irreconhecível, nesse lastimável estado de corpo e alma, um autêntico Cristo, que resolveu mostrar-se aos olhos do mundo, entocado no interior de um daqueles castanheiros centenários, que levam "300 anos a crescer, 300 anos em seu ser e 300 anos a morrer". Uma daquelas árvores expostas em souto aberto, que levaram Miguel Torga a dizer: "o artista velho lembra-me o toco daqueles castanheiros centenários, só casca, ocos por dentro. O cerne foi-se todo em castanhas". (Continua)