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sábado, 11 abril 2020 12:27

REGIONALIZAÇÃO EM DEBATE - 1998

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ASSEMBLEIA MUNICIPAL - 1998

1 - QUANDO O «CU» TEM POUCO A VER COM AS «CALÇAS»

Tanto quanto me é dado saber a Assembleia Municipal reuniu no dia 25 de Novembro p.p., não por iniciativa própria, não para discutir algo que lhe desse no goto, não para deliberar se a serra do Montemuro devia ser arrasada a fim dos ventos do litoral penetrarem mais facilmente no interior e, por essa via, se esbaterem as assimetrias regionais. Não. Não foi assim. Ela reuniu para dar cumprimento ao que lhe foi solicitado oficialmente, nomeadamente, participar nas iniciativas legislativas que correm na Assembleia da República sobre a regionalização.

 

REG-1 - CópiaDe facto, aprovados que foram na generalidade os projetos de lei que visam regionalizar o País e prevendo-se que o referendo venha a fazer parte do processo depois de revista a Constituição, substituindo aconsulta orgânica às Assembleias Municipais”, este era o momento único para os nossos autarcas se pronunciarem sobre a Região Beira Litoral, era a fase decisiva para as Assembleias Municipais poderem “participar com o seu parecer no processo legislativo até à aprovação da lei da criação das regiões administrativas, matéria da competência exclusiva da A.R.” (1)

Em discussão esteve, pois, o Projeto de Lei nº /VII  (parece que há mais, mas só este esteve presente) projeto que no artº  13º determina claramente o objeto que levou a Assembleia Municipal a ser chamada. Assim:

1 - A organização do processo de consulta às assembleias municipais compreende, necessariamente, uma deliberação expressa de concordância ou discordância relativamente à criação da respetiva região, nos termos do número 1 do artigo 12º.

2 - Nos casos de discordância devem as assembleias municipais explicitar os fundamentos de tal posição, podendo apresentar, designadamente, propostas de:

         a) Fusão ou integração da região noutra ou noutras regiões contíguas;

         b) Acerto de delimitação geográfica entre municípios com contiguidade territorial”.

Foi isto que se fez? Ou foi algo bem diferente aquilo que os nossos deputados e ilustres autarcas discutiram e deliberam? Cingiram-se eles ao assunto configurado no instrumento legal em discussão, ou deambularam por campos que sãomatéria da competência exclusiva da Assembleia da República”?

O produto final, traduzido nas propostas apresentadas pelo PSD e pelo PS, fala por si. Eis as propostas:

REG-2 - CópiaPROPOSTA DO PS.

 “É inquestionável a importância que a criação das regiões administrativas têm no desenvolvimento e no bem estar das populações, bem como na atuação rápida e desburocratizante.

Pela sua composição e pela sua situação geoestratégica e de comunicação é a região da Beira Litoral que melhor serve os interesses do nosso concelho.

É parte integrante do programa deste Governo o projeto de criação das regiões administrativas.

Neste sentido, os deputados do grupo parlamentar do Partido Socialista votam favoravelmente a lei de criação das regiões administrativas e, implicitamente, a inclusão do nosso concelho na região da Beira Litoral”. (6 votos a favor, 1 abstenção e 28 contra) 

 PROPOSTA DO PSD:

 “Atendendo a que se irá proceder a referendo sobre a criação das regiões administrativas, esta Assembleia não deverá pronunciar-se hoje sobre esse tema, não só por falta de informação suficiente, mas até porque os munícipes do nosso concelho e nós próprios voltaremos a ser consultados individualmente na nossa qualidade de simples cidadãos, podendo surgir uma contradição entre o resultado de hoje apurado e o do próximo referendo”.(27 votos a favor, 2 abstenções e 6 contra)

Por onde andaram os deputados para chegarem a tão esclarecido produto final? Os do PSD (poucos foram os oradores, os restantes, se o regimento os não obrigasse a levantarem a mão, contentar-se-iam em dizer que sim com a cabeça como os discípulos de Santo Hilário) arengaram o despesismo que a regionalização poderia acarretar, arengaram derramas que se poderiam lançar sobre as populações, arengaram o aumento das instituições e cargos políticos (só não referiram quanto custa o funcionamento de uma Ass. de Freguesia, de uma Ass. Municipal, de um Executivo e de tantas outras instituições democráticas),  citaram o “grande timoneiro”, não o professor Cavaco Silva, declaradamente contra a regionalização, mas Mao Tsé Thung para lembrarem, como ele, que dez milhões de habitantes cabem no hotel. Para quê dividir o País com índice demográfico tão baixo? Havia que aguardar o referendo, não fossem os eleitos entrar em contradição com os eleitores quando estes forem chamados ao escrutínio.

Os deputados do Partido Socialista, não sei se defendendo ideias próprias, se fazendo eco das linhas traçadas pelo Partido relativamente a esta matéria, foram os arautos da Regionalização, concluindo pelaintegração do concelho de Castro Daire na região da Beira Litoral”. Mais: votaram favoravelmente a “Lei da criação das regiões administrativas matéria que não cabe a autarcas, por ser da “competência exclusiva da Assembleia da República”.

 2 - «TENTE RAMALH’ Ó REGO»

 

Atendendo, assim, à proposta do PSD, a única que foi aprovada, proposta certamente promovida à categoria do parecer solicitado pela Assembleia da República, apetece dizer, tal como a Banda de Lá: “tente ramalha’ó rego”.

A expressão não é despropositada. Usada pelo lavrador de antanho com vista a não perder tempo e avançar na lavra, ganhando o pão com o suor do seu rosto, título de um álbum pertença de um grupo que se dedica à investigação e divulgação de música antiga, a atitude destes deputados, manifestamente contra a regionalização com alibis e subterfúgios, está em consonância com o diapasão tradicional pelo qual Castro Daire sempre afinou, maioritariamente,  nos momentos mais cruciais da nossa História. Sempre se opôs, maioritariamente, à mudança em defesa do “status quo. O leitor quer exemplos? Aí vão:

CRAVOSEm 1820, foi, maioritariamente, miguelista e não liberal. Em 1910, foi, maioritariamente, monárquico e não republicano. Em 25 de Abril de 1974, não vale a pena falar. A História é recente e, portanto, sobejamente conhecida.

No caso da regionalização, como noutro qualquer que o devir possa eventualmente trazer, Castro Daire estará sempre, maioritariamente, na retaguarda. É o destino. Só avança por pressão ou por arrastamento.

3 - ASSUNÇÃO DA CIDADANIA

 

Coisa diferente seria se cada castrense, cada cidadão, cada autarca refletisse sobre o seu percurso de crescimento pessoal e social. Se penetrasse no campo arqueológico da sua mente; se descesse ao estrato mais fundo das suas ideias e mirasse o cadinho que moldou a sua maneira de pensar e agir. Que se interrogasse porque pensa e age desta ou daquela maneira quando é chamado, entre outras coisas, a participar nos destinos da sua região e do seu país.

É que a centralização político-administrativa que se quer combater com a regionalização não é de agora. As inconveniências da centralização que decorrem para as populações periféricas foram denunciadas por homens da craveira intelectual como Almeida Garret e Alexandre Herculano. Ambos apegados em combater o centralismo levado a cabo pelos partidos liberais, nos meados do século XIX.

Assim disse Almeida Garret:

“Temos uma infinidade de Governadores Civis que não sei se governam bem, mas sei que trabalham muito porque escrevem muito; porque assinam muitos ofícios, recebem muitos, respondem a muitos outros; mas que nada fazem porque nada podem fazer; porque não são pagos, porque não têm tempo, porque nada podem ver nem ouvir, nem pensar, nem prover às necessidades dos povos que conhecem e no meio dos quais, por mais zelosos e inteligentes que sejam, têm de permanecer como estafermos que a autoridade central ali põe para dissimular a sua impotência e fingir que vela pela prosperidade pública” (2)

 Assim disse Alexandre Herculano:

“Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização (...) Obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências. Seria o suicídio. Daí vem a sua incompetência e nenhuma autoridade do seu voto nesta matéria. É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias acabe com o país nominal inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que é e do funcionalismo que quer e que há-se ser”(3)

REG-3 - CópiaAs maiorias não ouviram as vozes autorizadas destes homens de letras e os resultados estão à vista. Será que tais palavras estão, assim, tão desatualizadas? Santo Deus, já passaram cerca de 140 anos!

CRAVOS.1.2.3.4 - Claro que o centralismo político-administrativo não emergiu, paradoxalmente, com os liberais. Ele tem raízes profundas na História de Portugal. Não só em Portugal, mas também noutros países da Europa, espaço geopolítico, cultural e económico em que estamos integrados. Veja-se o que nos diz Régine Pernoud, relativamente à França:

“A partir do século XVI é na cidade que residirão os órgãos do governo e de administração, as escolas, numa palavra, os centros do saber e do poder. Igualmente nos séculos XVII, apesar dos esforços muito clarividentes de um Sully, não haverá mais actividade intelectual em meio rural senão num grau muito enfraquecido”(4)

 “Na cidade residirão os órgãos do governo e de administração ...não haverá mais atividade intelectual em meio rural, senão em grau muito enfraquecido”,  sublinho. Lá como cá, mais cá do que lá, quem pode negar a necessidade de inverter a marcha do centralismo que no século XVI imprimiu ritmo acelerado, passou pelo absolutismo de D. João V e D. José I culminando com as reformas liberais? Quem nega a abulia cultural que caracteriza as nossas vilas, aldeias e, até, cidades de província neste final do século XX?

Os nossos autarcas fugindo ao verdadeiro objeto de discussão, perderam-se em divagações que vão do Minho ao Algarve, de Portugal à China, recusando-se a elaborar um parecer sobre o perfil geográfico-administrativo da região Beira Litoral.

Face à sua atitude, recusando-se o PSD a elaborar o parecer solicitado e, votando o PS alei da criação das regiões administrativas, que dirão os deputados da Assembleia da República quando fizerem a radiografia dos pretextos e dos textos produzidos? Conhecedores das palavras de Garret, Herculano e Régine Pernoud, os deputados otimistas, aqueles que querem acabar com  “o país nominal inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes e nos jornais, aqueles que  acreditam no aprender fazendo dirão certamente: já que esta atitude é, hoje, o retrato do país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias”  é mesmo preciso fazer a regionalização. É mesmo preciso que a atividade intelectual retorne ao “meio rural”, é mesmo preciso que cada um assuma a sua cidadania. A assunção da cidadania é um ato cultural. Assumir o papel responsável numa democracia participada é um ato de cidadania. Os outros, aqueles que se opõem à regionalização, face aos textos e pretextos produzidos dirão que têm razão. Oporem-se à regionalização é, não só um ato de lucidez política, mas também a maneira de evitar uma calamidade na gestão político-administrativa das coisas regionais. 

(1) Ofício do Presidente da Comissão, Eurico de Figueiredo, dirigido ao Presidente da Assembleia Municipal de Castro Daire, solicitando-lhe o debate.

(2) GARRET, Almeida - “Relatório e Bases Para a Reforma Administrativa” (21 de janeiro de 1854) in Discursos Parlamentares, 1904, pp. 138-145.

(3) HERCULANO, Alexandre - “Carta aos eleitores de Cintra” (1858), in Opúsculos, tomo II, 2ª edição, pp. 229-239

(4)  PERNOUD, Régine - “O Mito da Idade Média”, Europa-América, 1989, pp. 65

NOTA: O tema da «regionalização» foi amplamente discutido na imprensa e defendido por mim, ora sob o pseudónimo Rocha de Castro («Lamego Hoje») e nome próprio, antes do referendo que se fez para o efeito.  Cf. «Notícias de Castro Daire» de 10 e 24 de Outubro de 1998 e também no meu velho site histórico «Trilhos Serranos», donde migrou para este. São crónicas, escritas para «memória futura». 



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.