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quinta, 16 janeiro 2020 18:52

GENTE DA TERRA

Escrito por 

O VALOR DA PALAVRA

Neste meu afã de proceder à “migração” de alguns textos que publiquei no meu velho site “trilhos serranos.com” para este novo espaço aberto, coube hoje a vez do apontamento que se segue, publicado em 2012. Até parece um TESTAMENTO. Mas não é, ainda que aparente ter laivos disso.

 CARTA ABERTA AO DIRECTOR DO JORNAL «NOTÍCIAS DE CASTRO DAIRE»

«Por isso dedicou-se de alma e coração à cultura, projetando nos seus livros para o exterior a sua vida interior, fiel ao ensinamento de que sem linguagem falada ou escrita não há pensamento». (J.D.O. in «Notícias de Castro Daire», de 10-11-2012)

O espaço quinzenalmente reservado ao EDITORIAL escrito pelo director do «Notícias de Castro Daire», foi preenchido no nº 523, de 10 de Novembro de 2012, por uma crónica assinada com as iniciais J.D.O, ilustrada com a minha fotografia e o meu nome por título. Sei, mas se não soubesse diria que o senhor director do jornal preencheu o seu habitual espaço com uma inteligente radiografia da minha pessoa e obra. Veio ela na sequência de uma outra crónica assinada pelo Dr. António Duarte Pereira de semelhante teor e de uma «Carta Aberta» que eu dirigi a esse meu conterrâneo, agradecendo-lhe as referências e créditos que ele atribuiu aos meus trabalhos e à minha pessoa.

«Mutatis mutandis», ingrato seria eu se não fizesse o mesmo com o Dr. João Duarte de Oliveira, ainda que, em abono da verdade, deva acrescentar que este seu escrito, não fossem os graves problemas de saúde que ele atravessou, submetido que foi a duas operações cirúrgicas, bem poderia ter precedido a crónica que escreveu o meu amigo e conterrâneo. Veio depois, mas para que fique bem claro, não foi por mim solicitada.

Prometida há muito, por razões que agora não vêm ao caso, o Dr. João entendeu ser o momento de dizer da sua justiça e disse. E águas passadas não movem moinhos.

Escrevendo o que lhe pareceu ser justo, conhecidas que são as divergências que nos separam, patentes nos seus e nos meus escritos, não deixa de ser louvável, altamente louvável, que o ex-presidente de quase todas as instituições do concelho (Câmara Municipal, Assembleia Municipal, Bombeiros, Provedor da Misericórdia, Conservador do Registo Civil e Predial, fundador da Sociedade Montemurense de Ensino (mobilizando para isso professores os clérigos do concelho e alguns quadros técnicos), com responsabilidades directas na construção do edifício do Tribunal, director e um dos fundadores deste jornal, etc. etc.) se tenha preocupado com um cidadão que não perfilha o seu ideário político e religioso. E nós, sempre assumimos isso com frontalidade e educação. Ora, assim sendo, o mérito que ele me atribui acaba por reverter para si próprio, pois ao publicar no jornal de que é director a opinião que tem acerca de uma pessoa que com ele não vai à missa e nem com ele, em tudo, diz àmen, é algo que sobressai e se eleva da mediocridade e da maledicência próprias da nossa rústica paróquia, onde parece que os recursos humanos e valores se apreciam e medem pelo grau de parentesco, de amizade, de capelinha e de cor política.PAIS E FILHO

Digo melhor, decano no foro castrense, ele nunca fez segredo da admiração que tinha pelos meus «escritos», em privado e em público. Esta sua crónica não é pois um escrito de circunstância. Tem raízes no tempo e vem-lhe do fundo da consciência. E prova disso são as palavras a que ele transcreveu agora, mas que foram ditas em 1995, na sessão pública que teve lugar no salão nobre dos Paços do Concelho, aquando do lançamento do meu livro «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura». Disse, então, e repetiu, agora, que eu era «um trabalhador da inteligência, um proletário da mente», E mais, rebuscando os meus pergaminhos de origem acrescentou que eu era «filho de gente humilde, não ganhou o seu nome pelo privilégio do berço. O seu nome advém-lhe das provas dadas pelo estudo, pelo escrúpulo na procura da verdade histórica, pela independência intelectual perante colegas da escrita de renome, dos quais por vezes ele discorda e contradiz com argumentação que inspira confiança da sua veracidade».

Escritas pelo Dr. João Duarte de Oliveira, espírito arguto, conhecedor do meio e das pessoas que nele vivem, corajoso foi assumir publicamente, por escrito, o que pensa de mim, sabendo-me interventor cívico através da imagem, da palavra escrita e falada, mas desalinhado dos poderes político e religioso instituídos. Devo dizer que nem o Robin dos Bosques, agarrado ao seu arco e flecha, seria tão certeiro. Isto num tempo em que o grau de cidadania e de «excelência» não se adquirem por via de provas públicas, mas sim nos fechados gabinetes dos chefes, directores e presidentes, promoções e graduações proporcionais aos salamaleques e «graxa» que os subordinados se prestam a fazer e a dar aos seus superiores hierárquicos.

É sabido que só aqueles que têm alguma projecção pública, e dizem destas verdades, nuas e cruas, criam em torno de si simpatias e antipatias. Por regra, as simpatias diluem-se, por aí, sem rasto ou ficam entre amigos, enquanto as antipatias assumem o papel de anticorpos malsãos que satisfazem os seus apetites de maldizer nas «quatro esquinas» do nosso pequeno burgo, ou anonimamente nos blogs da internet. Na parte que me toca desejo que sejam todos felizes, se é essa a forma de assumirem a sua cidadania, mas quero desde já advertir os leitores que esta minha «Carta Aberta», tal como a que escrevi ao meu conterrâneo, não se encaixam na máxima latina «asinus asinum fricat». Não. Esse não é o meu estilo pelas razões acima referidas. O meu estilo, não sendo «notável», é bastante «notório e público» para todos saberem que nunca sacrifiquei a verdade do meu pensamento ao discurso das conveniências do momento. E já lá vão 73 (setenta e três) anos de vida. É muito ano passado, para mudar agora de carácter.

Acresce que a atitude destes dois licenciados (Dr. António Duarte Pereira e Dr. João Duarte de Oliveira, um formado em HUMANIDADES e outro em DIREITO), ambos conhecedores da nossa História e da nossa Cultura, ambos cientes do grau dos adjectivos da Gramática Portuguesa que aplicam nos juízos que fazem sobre as coisas e as pessoas, direi que sendo ambos de formação e prática cristãs, muito me sensibilizam, devido à objectividade com que reconhecem, por escrito, o mérito de quem não os acompanha em tais práticas e templos. O exemplo que aqui dão por escrito, mostra que a intolerância contra os cátaros e a perseguição feita pelos torquemadas são, para eles, contas de outro rosário. São contas de outros tempos. Uma manifestação clara de adulta e culta CIDADANIA.

E mais! Agradecido pela atitude de ambos, direi que estas suas crónicas, vindas assim, nesta minha idade, para além do aroma de autenticidade que carregam a meu favor, parecem-me exalar também um certo perfume funéreo acetinado. E creio não ser abusiva esta minha sensibilidade a tais odores, pois nenhum de nós é já uma criança. Qualquer dia, por força das leis da NATUREZA, deixaremos de «dar corda aos sapatos» e ala? aí vamos nós: «acta est fabula

Mas se, com ou sem esse perfume, estas crónicas contribuírem para tranquilizarmos mutuamente as nossas consciências, ficando em paz connosco próprios e com o mundo, digo já, por antecipação, que em paz, mas vivas, fiquem as nossas palavras escritas, aquelas que projectaram em público os nossos sentimentos, pensamentos e obras, por ausência, claro está, da palavra falada, emudecida que esta seja para sempre. E nisto não há volta a dar: «verba volant, scripta manent». Com mais este inciso feito pelo meu interlocutor: «sem linguagem falada ou escrita, não há pensamento».

Posto isto, no que respeita ao Dr. João e a mim próprio, formulo dois desejos:

 Primeiro: para ele, homem de missa quotidiana, cumpridor dos mandamentos da lei de Deus, crente na ressurreição, bem como para todos os que comungam a mesma religião e fé, desejo saúde e longa vida e que, chegado o momento, a terra lhes seja leve e que as suas almas tomem o lugar que esperam, em recompensa das suas «boas vontades», das suas «palavras e obras», «ad vitam aeternam». Lá, no Além, em cujo tribunal, dizem, a balança da justiça não pesa «teres e haveres», mas somente «seres».

Segundo: para mim, socialista, republicano e ateu, com pensamento escatológico distinto, dispenso a inumação e, longe do hissope, de paz com a minha consciência, desejo ser cremado e desfeito em cinzas. E, cumprido assim o preceito bíblico «pó és e em pó te tornarás» (Gen:3:19), espero que cada partícula desse pó seja levada pelos ares, soprada por brisa leve ou por ventania de tempestade e, livremente, vagueie pelo espaço infinito, diluída nas cores e nas poeiras cósmicas.

Atenção! “Alto lá e para o baile”! Isto não é um «réquiem» para piano. Não sou músico e não estamos em nenhum velório. Peço perdão aos leitores se, ao terminar esta Carta Aberta, os conduzi a esse estado de alma e pesnsamento. E igual perdão peço, também, por tê-la salpicado e ornamentado com algumas «flores do Lácio», tão anacrónicas nestes tempos do facebook, dos telemóveis, das sms escritas com os polegares. Tenho disso consciência, mas, assumido que sou um «proletário da mente», dito, com acerto, por um experiente advogado do nosso foro, que foi juiz substituto várias vezes, para não destoar do contexto socioprofissional e cultural em que ele ganhou a vida, quis deixar claro que esta «mente proletária», camponesa e rústica, impregnada de (agri)cultura, sabe, não só, cultivar nabos e nabiças, mas também cultivar as «flores clássicas» tão frequentemente usadas nos instrumentos jurídicos produzidos nos tribunais do país, inclusive, no histórico TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTRO DAIRE, que ainda é.

«Quousque tandem?»

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.