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quinta, 12 dezembro 2019 22:31

ANDRÉ FREIRE - UM LUSO-BRASILEIRO

Escrito por 

ANDRÉ FREIRE, O MÉDICO POETA

Conhecemo-nos há muitos anos. Mal ele era chegado do outro lado do Atlântico, do país que se diz descoberto por Pedro Álvares Cabral, o mesmo país onde Jesus (o do futebol) se tornou, ultimamente, muito popular e flamejante.

RETRATO

Nunca fomos amigos chegados, mas conversávamos vezes bastantes sobre história, letras, política e cultura. Chegámos a ser simultaneamente colaboradores do jornal “Notícias de Castro Daire”, onde cada qual, à sua maneira e gosto, comunicava com os leitores desse periódico. Ele mais focado em assuntos pessoais, intimistas, familiares e de carreira. Convívios de amigos, profissionais e outros. Estilo tropical e efusivo. Eu, por força da investigação, formação, diferentemente dele, mais focado nos assuntos de interesse geral e histórico. E num periódico regional, num órgão da IMPRENSA LOCAL, tudo tem interesse e tem lugar. Que o digam os naturais ausentes quando lá, onde trabalham e ganham vida, recebem novas da sua terra. E, sabido é que cada colaborador projeta no papel a mundividência que carrega no bornal da experiência e caminhos andados. O homem e o meio.

Ele, o cidadão e médico André Freire, desde logo colheu a minha simpatia. Era um PROFISSIONAL DE SAÚDE disposto a fixar-se nesta parte do território que, em si próprio, tem mais de repulsivo do que de atrativo. E ele, médico, resolveu fixar-se neste interior de couve troncha e deixar as alcatifas dos grandes Centros Comerciais citadinos.

É, pois, de justiça que aqui deixe os traços curriculares que figuram no livro ofertado:

André Luiz Castilho Freire, 1959, luso-brasileiro, médico, escritor e pintor. Membro da Academia Brasileira de Poesia, Academia Friburguense de Letras, Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES), Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique (AMEAM) Tertuliano Residente da Tertúlia Artes e Letras de Lamego e presidente da União Hispano-americana de Escritores (UHE), em Portugal”.

Médico de profissão, casado com uma senhora natural de Castro Daire, o casal acabou por radicar-se em Lamego e, por via disso, deixarmos de nos ver com a costumeira frequência. Mas, todas as vezes que nos encontrávamos aqui, ocasionalmente, nas ruas da vila, nunca faltaram os cordiais e civilizados cumprimentos.

Esteve cá há dias. Encontrámo-nos no Café Central e, gentil como sempre, ofereceu-me o seu último livro: “Cidades da Minha Vida, Poemas” , com afetuosa e expressiva dedicatória.

Feito isso, sentados à mesa, eu fui só ouvidos. Há muito tempo sem nos vermos, naquela sua ânsia de comunicação, naquele seu estilo brasileiro, as palavras e os assuntos jorravam da sua boca, sem cessar, como jorra em abundância a água na Fonte dos Peixes. Falou-me dos temas tratados no livro, das gentes e lugares. Tudo ligado por uma cadeia de conhecimentos, afetos e odores. Discorrendo fluentemente sobre memórias e vivências, aquelas que o acompanham desde a infância e outras somadas ao longo da vida. Lá e cá. Lá, no Brasil. E cá, em Portugal. E vieram as aventuras vividas nas favelas e cidades e praias brasileiras e nas cidades e ruas portuguesas. O pai, a mãe, os amigos. Não eram palavras “digitalizadas”, conversas online, vogais e consoantes juntas, e juntas tornadas frases a transmitirem conhecimentos a “amigos virtuais”. Embrulhadas num olhar triste (pressenti algo não dito) eram palavras que, eloquentemente, exalavam humanidade, música e poesia, referências a eventos culturais por ele promovidos ou em que participou, fosse qual fosse o ângulo de abordagem e o lugar no fio tempo em que foram penduradas na cronologia da sua vida.

CÂQMARAE eu sempre a ouvir. Às vezes é necessário saber escutar. Devemos mesmo escutar. E ouvindo, ouvindo, ouvindo sempre, isso me deu a oportunidade de pensar num invento que vi há dias num canal da TVCABO e associá-lo ao momento deste nosso encontro. Uma invenção impressionante. Que invenção? Um jovem criou e implantou uma câmara de filmar num globo ocular no espaço vazio do olho natural que tinha perdido. Vi os testes do vídeo feito depois da sua implantação e só havia que melhorar a carga da bateria.

Face a tal invencão, rendido à ciência e imaginação humanas, eu a ouvir o médico e poeta André Freire era como se ele me tranmitisse as imagens de que falava vistas e gravadas na sua mente, lá nos confins do mundo, ou sítios onde eu não estive.

Entusiasmante. É que também eu uso nos meus textos a trilogia: “olhar, ver e sentir”.

A câmara ocular inventada por aquele jovem, associa e conjuga os dois primeiros elementos. Regista em vídeo as imagens focadas. Olha e vê. Mas falta-lhe o terceiro elemento: “sentir”, esse atributo exclusivo (por enquanto) do ser humano.

É isso.

Eu li, mas não era preciso ler o livro. Ele próprio, André Freire, o médico e o poeta, é um livro. Mostra o que “olha, vê e sente”. E, não nos vendo há muito tempo, nem por isso deixámos de “olhar, ver e sentir” o mundo que nos rodeia, discorrendo e ajuizando sobre as mutações nele operadas para o BEM e para o MAL, através da escrita, durante esta nossa ausência.

CAOAFixo-me no seu poema “MAR DA MORTE” que ele designa com toda a propriedade “MORTERRÂNEO”. São os nossos encontros inesperados no mundo das letras e do pensamento:

Ele “olhou, viu e sentiu, assim:

“(...) Escorraçados pelas guerras e medo, conduzidas pela Esperança, de fugir da morte em solo pátrio....para depois afundarem em águas daqueles países que os odeiam e repudiam. ‘Estamos em pleno mar...assim declamava o jovem poeta, o baiano Castro Alves, o Poeta dos Escravos. Nesse Morteterrâneo consentido por muitos, juntamos os trapos e milhares de vidas afogadas num desejo. Contamos os resistentes e os isolamos em cadeias, oferecendo um cobertor e alguma comida, enquanto aguardam um retorno para a terra da fuga. Meus queridos leitores, o genocídio desses miseráveis faz parte do Moderno Holocausto” (Cidades da minha vida, p 37, 2017)

Eu “olhei, vi e senti”, assim:

“(...) houve o Mediterrâneo, o "mare nostrum" dos romanos conquistadores e o Mediterrâneo, o "cemiterium" deles, dos refugiados de hoje; ele houve e há campos de concentração; muros e arames farpados; ele houve e há povos inteiros dominados; ele houve reinos e califados; ele houve e há exploradores e explorados; ele houve e há colonizadores e colonizados”.

(in “Homo Sapiens, Homo Demens”, Trilhos serranos.pt, 17 de setembro de 2015)

“(...) Recentemente, o Mediterrâneo, que banha a Ásia, a África e a Europa, tornou-se um cemitério. E na Palestina, na Galileia, Belém e Jerusalém, terras de Abraão, de David e Josué, chão dito Terra Santa, mas terra Santa não é, não. Lá, a guerra é permanente. Lá onde pulsa o coração de três continentes,  matam-se à bala, à pedrada e à facada. O terrorismo, lá e noutros sítios,  é escalracho em terra lavrada. Emigrados, refugiados, de todas as religiões, provenientes de regiões diferentes, onde não há paz, fogem da terra natal, fogem dos infernos e carregam consigo a cultura e os afetos paternos. Muitas mortes, muitos lutos, muitos dós” (idem, “Conto de Natal”, 2017)

Que mais não fosse, só por este nosso encontro ocasional, ambos a “olhar, ver e sentir” aquele drama dos refugiados, imperativo era que eu escrevesse este apontamento e dele desse público conhecimento, aqui mesmo, neste meu espaço online.

E advirto os meus leitores que ele não empresta sentido à expressão latina “asinus, asinum fricat”. Somos amigos há muitos anos mas, nem ele, nem eu, que me lembre, nos referimos publicamente, em tempo algum, aos trabalhos publicados. Bem diferente de certas “avis raras” que, mútua e descaradamente, se elogiam umas às outras nos foruns onde têm poleiro, pois, sem isso, ignorado seria o seu serviço em prol da comunidade.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.