Toda a liberdade têm tido estes felizardos, mal-agradecidos. E, desde os mais apressados aos mais tardos, no limoeiro do pátio tinham, há anos, poleiro seguro. Sem medo, sem armadilhas nem enganos, a noite dormiam em sossego. E, em verdade vos digo, não chegava ali unha de gato ladrão, hábil em formar o salto, nem de atrevido gavião sempre do alto a espreitar o chão, onde possa ferrar bico.
Não. “Não me passais a perna”. E decidido a banir a tal arte moderna da minha portada e da minha janela, comprei a mais moderna sentinela pelo homem inventada. Mas que grande invenção! Inspirada no antigo espantalho que lavradores ancestrais punham nos campos para protegerem os milheirais de gaios, melros e Companhia Ilimitada, a sentinela de que falo (não tenham pena!) é de plástico, mas imita que nem regalo o “BUFO REAL” com pena: eia! Oco, cheio de areia, torna-se pesado, amovível, ao chão pegado. De olhos grandes, semelhante a gato grande, orelhas grandes de grande gato, está ali, em sentido, no seu recato, caladinho, até parece um soldadinho à porta de um quartel, sem rendição, nem obrigação de passar a senha: “sentinela alerta! Alerta está. Passa palavra”. A cabeça gira com o vento e quem passou a palavra e a senha foi a passarada grande e pequena que, com a instintiva sageza (mais do pensa a gente), comunica num repente pela redondeza o perigo eminente. E, verdade, verdadinha, desde que ele ali foi posto, quietinho e caladinho, eu fiquei livre da pintura de que não gosto.
Foi um grande invento. Mas valerá por quanto tempo? Lembro bem que o espantalho ancestral, posto no milheiral, só espantava os juvenis (sei lá se todos os imbecis) pois melros e gaios crescidos e experientes, pousavam-lhe em cima e, regalados, nele faziam a gostosa cagada. Sei lá se a rirem-se da gente.
E o camponês, face a tamanha desfaçatez, na tentativa salvar o grão da espiga (não são pilhérias) para tirar a barriga de misérias, mais uma vez, ao espantalho, vestido com roupa velha, juntou a caravela. E ela, esse engenho com ventoinha e cauda de peixe a virar-se obedientemente para o vento...”trem...trem...trem...” só servia por algum tempo.
Dotados de entendimento, senão mesmo impelidos pela lei da sobrevivência, melros, gaios e mais gado alado (mas que ciência!) em breve se habituavam à cantilena, e era um ver se te avias, bicada após bicada, a depenarem sem pena toda a espiga. E, em menos de nada, deixavam-na inteiramente despida. Na leira, vista de de lado a lado, restava o casulo para limpar o rabo. Aquilo só a tiro, só à chumbada.
E saía tiro que dava carne assada. Agora, reformado o espantalho e outros inventos do passado, é o BUFO REAL. Nada mal. Grande invento. Por quanto tempo?
Aos oitenta anos de vida, eu, que de cruzes de pau fiz espantalhos, que ouvi o “trem....trem...trem...” das caravelas, rodando ao sabor do vento, o “trem...trem...trem...” que nem ferreiros a bater em ferro rio, rio dos pássaros saberem a música de cor e neste jogo do “ai se te pego”, nós, dotados de volumoso cérebro e eles cérebro sem tamanho de noz, levarem sempre a melhor.
Assim, tenho cá para mim que o soldado, o soldadinho ali plantado, aquele invento humano sofisticado, mais dia, menos ano, acabará todo cagado e, firme, sem arredar do seu posto, eu, sempre a vê-lo e a rir-me, terei de habituar-me à pintura de que não gosto.
Mas pior, bem pior e ingratidão maior, é o que esse gado alado faz aos poetas e escritores que elevaram o seu canto à escrita, à prosa e à rima. É só ver como cagam em cima das estátuas e bustos deles, levantados nas praças, largos e ruas, em homenagem à sua arte literária. Em letra escrita (novela, ode, hino ou canção) eles puseram o canto mavioso do rouxinol, o grasnar do gaio, o assobio do melro, o arrolar do pombo e estes fabianos, só porque têm asas, porque voam e não receiam queda nem tombo, pousam onde lhes apetece, seja de noite ou de dia, sem pedirem licença, tomem lá disto... que também é prosa, que também é poesia. Mas que mal-agradecidos. Aliviados, em vez de cantarem os seus cantos escritos em prosa ou rimados, deixam pintados e desfigurados os rostos, a cabeça, a vestimenta de quem tão bem os cantou.
É o mundo, vivo e morto, neste jogo profundo de negaças, artimanhas e mais trapaças, entre homens e animais. E melhor fora que fosse somente entre os animais e a gente. Mas não é. Isto de enganos e de trapaça, de borrar a arte e a escrita, é coisa sabida e dita, está na pública praça. Por isso, neste meu olhar profundo, sem pedir licença a Roma pelo “latinorum” declaro como axioma: assim será «per omnia seculae seculorum», assim será até ao fim do mundo.
LINK DE VÍDEO: https://youtu.be/zUB6GKvulqw