Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas GADO ALADO
sexta, 09 agosto 2019 12:04

GADO ALADO

Escrito por 

JOGO ETERNO

Tenho filmado e divulgado no mundo, mais do que uma vez, através do You Tube, o meu gado alado, neste meu trato camponês e rude. Sãos os melros e os pardais que, livres da minha fisga, no meu quintal, no meu telhado e beirais da casa, se acoita e se abriga. Mas esse gado alado, tão paciente e poeticamente cantado, ingrato tem sido para comigo, pois, fazendo poleiro dos peitoris das janelas e portadas resolveram deixá-las pintadas com pintura de que não gosto. E pensei: “não me passais a perna”. Pode ser pintura moderna, digna de exigente galeria urbana, exposta noite e dia, em Belém, mas não é qualquer pássarão sacana que, por bem, faz tela do peitoril da minha janela e das grades do meu portão. Ai pois não! E se tal bicharada não se pisga, se continua assim, outro remédio não resta a mim, senão ativar novamente a fisga.

 

quadro-2-redToda a liberdade têm tido estes felizardos, mal-agradecidos. E, desde os mais apressados aos mais tardos, no limoeiro do pátio tinham, há anos, poleiro seguro. Sem medo, sem armadilhas nem enganos, a noite dormiam em sossego. E, em verdade vos digo, não chegava ali unha de gato ladrão, hábil em formar o salto, nem de atrevido gavião sempre do alto a espreitar o chão, onde possa ferrar bico.

Não. “Não me passais a perna”. E decidido a banir a tal arte moderna da minha portada e da minha janela, comprei a mais moderna sentinela pelo homem inventada. Mas que grande invenção! Inspirada no antigo espantalho que lavradores ancestrais punham nos campos para protegerem os milheirais de gaios, melros e Companhia Ilimitada, a sentinela de que falo (não tenham pena!) é de plástico, mas imita que nem regalo o “BUFO REAL” com pena: eia! Oco, cheio de areia, torna-se pesado, amovível, ao chão pegado. De olhos grandes, semelhante a gato grande, orelhas grandes de grande gato, está ali, em sentido, no seu recato, caladinho, até parece um soldadinho à porta de um quartel, sem rendição, nem obrigação de passar a senha: “sentinela alerta! Alerta está. Passa palavra”. A cabeça gira com o vento e quem passou a palavra e a senha foi a passarada grande bufo-1ae pequena que, com a instintiva sageza (mais do pensa a gente), comunica num repente pela redondeza o perigo eminente. E, verdade, verdadinha, desde que ele ali foi posto, quietinho e caladinho, eu fiquei livre da pintura de que não gosto.

Foi um grande invento. Mas valerá por quanto tempo? Lembro bem que o espantalho ancestral, posto no milheiral, só espantava os juvenis (sei lá se todos os  imbecis) pois melros e gaios crescidos e experientes, pousavam-lhe em cima e, regalados, nele faziam a gostosa cagada. Sei lá se a rirem-se da gente.

 E o camponês, face a tamanha desfaçatez, na tentativa salvar o grão da espiga (não são pilhérias) para tirar a barriga de misérias, mais uma vez, ao espantalho, vestido com roupa velha, juntou a caravela. E ela, esse engenho com ventoinha e cauda de peixe a virar-se obedientemente para o vento...”trem...trem...trem...” só servia por algum tempo. 

Dotados de entendimento, senão mesmo impelidos pela lei da sobrevivência, melros, gaios e mais gado alado (mas que ciência!) em breve se habituavam à cantilena, e era um ver se te avias, bicada após bicada, a depenarem sem pena toda a espiga. E, em menos de nada, deixavam-na inteiramente despida. Na leira, vista de de lado a lado, restava o casulo para limpar o rabo. Aquilo só a tiro, só à chumbada.

E saía tiro que dava carne assada. Agora, reformado o espantalho e outros inventos do passado, é o BUFO REAL. Nada mal. Grande invento. Por quanto tempo?

Aos oitenta anos de vida, eu, que de cruzes de pau fiz espantalhos, que ouvi o “trem....trem...trem...” das caravelas, rodando ao sabor do vento, o “trem...trem...trem...”  que nem ferreiros a bater em ferro rio, rio dos pássaros saberem a música de cor e neste jogo do “ai se te pego”, nós, dotados de volumoso cérebro e eles cérebro sem tamanho de noz, levarem sempre a melhor.

Assim, tenho cá para mim que o soldado, o soldadinho ali plantado, aquele invento humano sofisticado, mais dia, menosquadro-Redz-1 ano, acabará todo cagado e, firme, sem arredar do seu posto, eu, sempre a vê-lo e a rir-me, terei de habituar-me à pintura de que não gosto.

Mas pior, bem pior e ingratidão maior, é o que esse gado alado faz aos poetas e escritores que elevaram o seu canto à escrita, à prosa e à rima. É só ver como cagam em cima das estátuas e bustos deles, levantados nas praças, largos e ruas, em homenagem à sua arte literária. Em letra escrita (novela, ode, hino ou canção) eles puseram o canto mavioso do rouxinol, o grasnar do gaio, o assobio do melro, o arrolar do pombo e estes fabianos, só porque têm asas, porque voam e não receiam queda nem tombo, pousam onde lhes apetece, seja de noite ou de dia, sem pedirem licença, tomem lá disto... que também é prosa, que também é poesia. Mas que mal-agradecidos. Aliviados, em vez de cantarem os seus cantos escritos em prosa ou rimados, deixam pintados e desfigurados os rostos, a cabeça, a vestimenta de quem tão bem os cantou.

É o mundo, vivo e morto, neste jogo profundo de negaças, artimanhas e mais trapaças, entre homens e animais. E melhor fora que fosse somente entre os animais e a gente. Mas não é. Isto de enganos e de trapaça, de borrar a arte e a escrita, é coisa sabida e dita, está na pública praça. Por isso, neste meu olhar profundo, sem pedir licença a Roma pelo “latinorum”  declaro como axioma: assim será «per omnia seculae seculorum», assim será até ao fim do mundo.

LINK DE VÍDEO: https://youtu.be/zUB6GKvulqw

  

Varanda-1

Ler 1251 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.