Trilhos Serranos

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sábado, 06 abril 2019 13:29

ARTES TRADICIONAIS

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O GOSTO DE COMUNICAR

 Este gosto de comunicar por escrito (ou oralmente)  sem ser jornalista encartado, nem ser usurpador de funções, nasce com a pessoa. Não é um simples documento passado pela mais prestigiada instituição que leva ao exercício da cidadania e nos empurra para a “notícia” ou para o evento digno dela. Algumas pessoas ligadas à imprensa conheço eu (coitados) que, à falta desse instinto natural, não veem, nem noticiam o que de importante ou insólito lhes passa à frente do nariz. Têm «carteira», mas não têm “faro”.

BICICLRTA

1 -AMOLADOR

Vem isto a propósito do último vídeo que alojei no Youtube. E quem é o protagonista desse registo? Um humilde AMOLADOR de tesouras, facas e mais ferramentas de corte, uma  “avis rara” por estas bandas, do Montemuro, nos tempos que correm. Por isso, apetrechado com a utensilagem mental e digital, digamos com hardware e software atualizados, eu corri a fazer-lhe uma espera de frente.

AMOLADOR-ROSTO-1 - CópiaFoi assim. Estava eu no Café Central quando me chegou aos ouvidos a música característica e identificadora daquela profissão: “óóóóóééééiiiii.....iiiiiiiiiiiééééóóóó... óóóóééééiiiiii.....iiiiiéééééóóóóó”...

Vi que direcção levava e presumi a volta que iria dar. Não me enganei. Câmara de filmar em ação foi só aguardar o momento. Colhi imagem de frente e de lado  em andamento e, gaita nos lábios, soprando e tocando: óóóóééééiiiiiii...iiiiééééóóóó....iiiiééééóóóó...só não davam por ele os surdos e cegos..

Depois corri atrás dele com o objetivo de saber da sua disposição para uma “conversinha pessoal”. Aceitou. Fiz vídeo. Sou um homem de sorte, ciente embora, de que às vezes a sorte dá muito trabalho. Coloquei no mundo um profissional e uma profissão que, neste primeiro quartel do século XXI, está em vias de extinção. É, portanto digna de registo e de divulgação. Digamos, digna de  NOTÍCIA.

ESMERIL-1 - CópiaNatural de Leiria, ele desloca-se numa carrinha com a bicicleta e restante artilharia dentro. Corre Portugal inteiro, de aldeia a aldeia, todo o povoado onde chegue estrada. Não há tesoura, faca e outras ferramentas de corte, que, chegada às suas mãos, fique romba. Outra profissão? Não senhor. Só acompanha, por vezes, “a sua esposa nas feiras, onde ela vende roupas interiores”.

As fotos que ilustram estas linhas, mostram-no em ação, montado na bicicleta a pedalar e a fazer rodar o par de mós (esmeril apropriado) para darem fio às ferramentas de corte. Não é tarefa de aprendiz. Analisa o alinhamento das lâminas, o aperto do eixo, dá-lhes a inclinação adequada, assenta-as no esmeril e toca a pedalar, a rolar e a “amolar”. Passa a mão pelo fio, AMOLADOR-TOCA - Cópiapega num retalho de pano que traz a preceito na “bagageira” da bicicleta, testa o corte, arruma a tesoura amolada e passa à seguinte. Depois do trabalho feito entrega ao cliente e despede-se “até à próxima”.

Cinquenta e cinco anos de idade, rosto sofrido, lavrado com rugas, não lhe arranquei um sorriso. De olhos fixos na objetiva, flauta de pã nos lábios (adaptada, sei lá se herança remota de gregos, etruscos, celtas, lusitanos e romanos, que já foi de cana, de chapa e agora é de plástico) prossegue os trilhos da vida por este Portugal acima e abaixo.

Aqui deixo o registo. Era meu dever fazê-lo. Eu, que passei parte da minha vida ligado à imprensa, sem ser jornalista encartado, nem propenso a usurpador de funções, eu, que tanta vez ouvi este som na juventude a afiar as tesouras da minha mãe, não tenho a certeza de voltar a ouvi-lo por aqui e sinto até uma certa angústia...é da idade!

VÍDEO AMOLADOR

 https://youtu.be/cykDiTQBsCI

2 - LAVRADOR

J1-SEBEaá me reportei, em vídeo (vários) às diversas profissões e tarefas que o tempo e as novas tecnologias vão sorvendo. Os ferreiros da aldeia de Cujó e da vila de Castro Daire. As suas forjas com fole (e sem ele) safra, bigorna, malhos, martelos e tenazes. Já coloquei no mundo o senhor Abel Ferreira, o último sapateiro tradicional com oficina aberta ao lado dos Paços do Concelho. Ele e as suas sovelas de meia cana, fios, cera e sedas de porco enroladas na ponta dos fios a servirem de agulha.

2-MARTINHO3Desta vez desloquei-me a Cotelo, freguesia de Gosende, para filmar e fotografar as técnicas e os materiais com que se faz uma SEBE de carro de vacas. Dessas que tão úteis são ao lavrador para o carreto de estrumes para as leiras e recolha dos produtos semeados. Era dentro de uma sebe dessas que, enjaulados no chedeiro do carro de vacas, o meu pai, todos os anos,  ia de Cujó, vender os leitões de criação doméstica, à feira de Tarouca.

A tarefa da sebe estava nas mãos do senhor Martinho, nado e criado em Cotelo, uma vida inteira agarrado ao campo. Veio ao mundo em fevereiro de 1940 e não aprendeu as primeiras letras. Disse-me que “era rude”, significando com isso que não tinha  «jeito para lidar com o alfabeto”. Rudeza que não obstou a que aprendesse as artes da lavoura e a cultivar 600 alqueires de cereais por ano. Assim o disse a viva voz. E com 80 anos de idade feitos, dá gosto vê-lo a entrançar os vimes e a ver crescer o objeto dos seus cuidados. Ele afirma que ainda vai usar dela para “umas carraditas”.

CARRIÇOAs terras que granjeou estão todas, ou quase todas, de monte. Na agricultura, diz ele “só ficaram os tolos”. Faço-lhe ver que esta atividade é tão digna como outra qualquer, que eu próprio fui agricultor na minha juventude… mas ele ficou-se na sua.

Em Cotelo chegou a haver mais de 200 vacas. Agora ainda há alguns desses animais, os eternos auxiliares do homem do campo, todo aquele serrano que aprendeu a manejar uma aguilhada e uma charrua melhor que alguns “jornalistas” manejam o verbo, a caneta ou o teclado dos computadores.

Nas suas lojas (nas aldeias chamam-se “lojas” aos espaços térreos inferiores das habitações assobradadas) existem TRÊS bois de luta, tratados pela filha, a única que ficou na aldeia ligada à terra e aos animais. Filmei e fotografei o “Carriço” e o “Bonito”. E são dignos de apreço o carinho e o afeto que a criadora e tratadora lhes dispensa, quer falando com eles, quer afagando-os, segura de não investirem contra mim, receoso disso.

BONITODeixo aqui fotos bastantes, mas vejam o vídeo. E olhem que seguro me não senti frente ao Bonito. Os seus gestos de cabeça, ameaçando “marrada”, o “escavar” o chão com as patas dianteiras e “roncar” contínuo, puseram-me em estado de alerta, apesar de eu saber dos livros que tais comportamentos de gado bravo são mais reveladores de medo do que de valentia. Mas...pelo sim, pelo não...mantive-me de “olho vivo e pé ligeiro”...até acabar a filmagem.

Despedi-me. E o senhor Martinho lá ficou agarrado à tarefa. No fim do dia a sebe estaria pronta. Estamos nos princípios de Abril de 2019.

COTELO

 https://youtu.be/nRU8tMpz1eY

 

 

TRATADORA

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.